19 Março 2022
“Conhece-te a ti mesmo” era a máxima gravada no templo de Apolo em Delfos, base da filosofia de Sócrates, e hoje é possível chegar a conhecer a si mesmo abordando a pergunta imposta pela guerra na Ucrânia, idêntica à da matéria bioética, sobre qual o valor mais alto entre a vida e a liberdade.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 11-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Apocalipse significa literalmente “revelação”. Há momentos nos quais a História bate à porta da consciência e impõe perguntas decisivas, que, ao serem respondidas, tem-se uma revelação.
São os momentos “apocalípticos”. Acho que estamos vivendo um deles, e a pergunta apocalíptica ou reveladora que sinto me pressionar por dentro é a seguinte: vale mais a vida ou a liberdade?
Vida e liberdade são os dois valores decisivos para a existência de cada um de nós: a vida é a nossa dimensão física, a liberdade é a nossa dimensão moral. Entre elas, deveria haver sempre harmonia, porque é claro que sem vida não há liberdade e sem liberdade não há vida humana, razão pela qual cada um de nós aspira a uma vida livre.
Às vezes, porém, a História não permite essa harmonização natural e nos obriga a escolher, e neste caso cada um deve esclarecer a si mesmo qual é o valor-guia para si: a vida ou a liberdade. Acho que é exatamente a mesma alternativa que se levanta à consciência diante do sofrimento extremo quando o território invadido não é a Ucrânia, mas o nosso corpo, e o invasor não é Putin, mas uma doença irreversível e incapacitante que transforma progressivamente a vida real em uma espécie de tortura.
O que vale mais nesse momento apocalíptico no plano existencial: a vida ou a liberdade? A sacralidade da vida física ou a sacralidade da vida livre?
Nessa quinta-feira, 10, a Câmara [italiana], ao aprovar o projeto de lei sobre a morte voluntária medicamente assistida, respondeu implicitamente que a liberdade é mais importante, prosseguindo na afirmação dos direitos do indivíduo acima da própria existência, que iniciou em 1974 com a lei sobre o divórcio.
Mas, desde o dia 24 de fevereiro passado, a invasão da Ucrânia e a sua progressiva destruição também transferiram para o campo da ética social a alternativa que costumamos considerar no campo da bioética, perguntando também aqui: vida ou liberdade, qual das duas tem a precedência?
É claro que existem diferenças, pois no caso da eutanásia só se decide sobre a própria vida e não sobre a dos outros, enquanto no caso da guerra também estão postas em jogo as vidas alheias e, ao aceitarmos participar do conflito (mesmo que apenas indiretamente, enviando armas), não nos isentamos de tirar a vida de seres humanos.
A semelhança, porém, é maior que a diferença, pois o cerne do problema é o mesmo e consiste em esclarecer qual deve ser o princípio-guia da existência, a vida ou a liberdade.
Há quem responda a vida e, por isso, está disposto a submeter a sua liberdade, curvando-se ao invasor e aceitando a submissão, talvez pensando, depois, em resistir de modo não violento mediante formas de desobediência civil. Quem age assim faz isso ou porque nunca poderia abraçar uma arma para suprimir uma única vida sequer, mesmo que a de um impiedoso mercenário checheno; ou porque, ao calcular a magnitude das forças em jogo, acha que resistir é inútil e, pelo contrário, aumenta em muito o número das vítimas.
Por outro lado, há quem responda no sentido da liberdade e, por isso, está disposto a pôr em jogo a vida própria e a alheia, combatendo o invasor com as armas, porque sente o dever moral de defender o próprio país e seus próprios entes queridos, e jamais aceitaria perder a liberdade. Melhor morrer, diz, do que viver como escravo. Essa pessoa faz o mesmo raciocínio de quem está em um leito de hospital e diz primeiro a si mesmo e depois ao mundo: “Desliguem esta máquina, isto não é vida para mim, deixem-me encarar a morte do modo como eu decidir e me ajudem a morrer”.
Trata-se de duas opções legítimas e respeitáveis, por trás das quais existem filosofias e espiritualidades dignas da mais alta consideração. A pergunta justa, portanto, neste momento não é “quem tem razão?”, porque nunca saberemos: não há tribunal absoluto da história (para quem crê, existe o Juízo universal, mas que é no fim, fora da história). Aqui e agora há apenas o tribunal relativo da consciência de cada um de nós e, portanto, a pergunta justa é: você, de que lado está? O que é mais importante para você, a vida ou a liberdade? A dimensão física ou a dimensão moral da existência?
Se para você a vida for mais importante, você ajudará quem luta com uma condição terminal por meio de cuidados paliativos, mas nunca aceitará o seu pedido de suicídio medicamente assistido. Do mesmo modo, você ajudará os ucranianos do ponto de vista humanitário e diplomático, mas nunca do ponto de vista militar, porque para você isso equivale a jogar gasolina na fogueira, aumentando a perda de vidas humanas.
Se, por sua vez, para você a liberdade é mais importante, você acolherá o pedido de quem quer ir embora do seu corpo porque não aguenta mais e, da mesma forma, você vai querer que os ucranianos, além de humanitária e diplomaticamente, sejam ajudados militarmente.
Quem, como eu, seguem este segundo caminho, faz isso porque acredita que o caminho diplomático e o caminho militar se reforçam mutuamente e, sobretudo, porque acredita que, para um ser humano, não há nada mais importante do que o senso de justiça, de dignidade e o desejo de liberdade. Esta é a lição de “Bella ciao”: isto é, o fato de alguém, ao encontrar o invasor, dizer a si mesmo: “Sinto que vou morrer” e se tornar um partigiano. E fica claro que aquele “sinto que vou morrer” não expressa um desejo de morte, mas sim um desejo de vida, mas de uma vida livre, porque quem canta assim sente que, se não for livre, a vida não é humana.
Vêm à minha mente as palavras que Dante faz Virgílio pronunciar em resposta a Catão. De fato, aconteceu que este, como guardião do acesso ao Purgatório, se havia oposto à entrada de Dante, vivo, naquele reino dos mortos, ao que Virgílio, em defesa de Dante, lhe disse: “Graciosamente então sua vinda aceita: / liberdade ele busca, que é tão cara / quão sabe-o quem por ela a vida enjeita” (Purgatório I, 70-72 [trad. port. Italo Eugenio Mauro]).
Às vezes, pela liberdade, pode-se até rejeitar a vida, como, aliás, o próprio Catão havia feito, suicidando-se para não cair nas mãos de César, e que Dante, cuja fé cristã era muito intensa, não coloca, ao contrário de Pier della Vigna e dos outros suicídios, no Inferno, mas no Purgatório, atestando assim que às vezes, pela dignidade da própria existência, é lícito optar por ir embora mais cedo. Seja em um leito de hospital, seja em um campo de batalha.
Fazer esse discernimento no teatro da própria consciência moral significa enfrentar o mais alto trabalho filosófico e espiritual ao qual somos chamados hoje pela dança macabra que a História está realizando nas cidades e nos campos ucranianos e nos seres vivos (humanos, animais, vegetais) que os habitam ou os habitavam.
Hoje mais do que nunca, a tarefa do pensamento consiste em levantar questões de princípio, radicais, existenciais, e não importa que talvez não se durma ou se acorde no meio da noite: não nascemos para dormir. Também é verdade que o trabalho sério sobre si mesmo acaba compensando no fim, leva a se libertar da raiva e da angústia, dá a boa luz que provém do honesto conhecimento de si mesmo.
“Conhece-te a ti mesmo” era a máxima gravada no templo de Apolo em Delfos, base da filosofia de Sócrates, e hoje é possível chegar a conhecer a si mesmo abordando a pergunta imposta pela guerra na Ucrânia, idêntica à da matéria bioética, sobre qual o valor mais alto entre a vida e a liberdade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que vale mais: a vida ou a liberdade? A guerra obriga a escolher. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU