11 Abril 2022
"O homem planetário é o homem pós-cristão", ao passo que, ao dizer pós-cristão, ele não entendia abandonar Jesus, mas ser verdadeiramente fiel à sua mensagem: "Está próximo o dia em que se compreenderá que Jesus de Nazaré não pretendia acrescentar uma nova religião às existentes, mas, ao contrário, queria derrubar todas as barreiras que impedem o homem de ser irmão do homem", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, inspirando-se em Ernesto Balducci, teólogo e filósofo italiano, publicado por La Stampa, 09-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "mesmo do ponto de vista teológico, estamos diante de uma transição de época. Ela se concretiza na necessidade de escolher entre Boden und Blut e planetização, entre religião nacional e espiritualidade universal. Esta alternativa é hoje encarnada no cenário mundial por duas figuras: o Patriarca Kirill e o Papa Francisco. De um lado a nação, do outro a ecologia. De um lado 'a força do nosso povo' (palavras do patriarca de 4 de abril de 2022), do outro 'Fratelli tutti' (encíclica papal de 2020). De um lado o regresso ao passado e o consequente 'choque de civilizações', do outro a abertura para o futuro e o consequente 'homem planetário'".
Um pensador se honra pensando, considerando seu pensamento como algo vivo com o qual discutir seriamente aqui e agora. Isso é ainda mais verdadeiro para Ernesto Balducci, cujos escritos teológicos e filosóficos são repletos de atualidade e eventualmente apresentam afirmações que hoje, depois de mais de 30 anos, ainda surpreendem por sua capacidade preditiva. Aqui está, por exemplo, o que ele escreveu sobre os países do antigo bloco comunista em 1989: “Na convulsão da Europa Oriental há sinais preocupantes de uma propensão a rejeitar não apenas o marxismo, mas também a racionalidade iluminista da qual o marxismo foi o desenvolvimento. No limiar da era pós-moderna, renascem todas as nostalgias do passado, que permaneceram sufocadas, mas não extintas durante o triunfo da modernidade. Essas nostalgias poderiam dar à Europa um impulso regressivo com resultados desastrosos”.
Eis então prefigurado Putin e sua guerra criminosa, abençoada pelo Patriarca Kirill. Mas eis também (independentemente das frentes contrapostas na guerra ucraniana) a Hungria de Orban, a Polônia de Morawiecki, os outros estados do pacto de Visegrád e aqueles resultantes da fragmentação violenta da Iugoslávia. Todos sinais daquelas "nostalgias do passado" sufocadas pela modernidade e intuídas por Balducci diante de suas sangrentas manifestações, que, mais do que o pós-moderno, remetem ao pré-moderno, àquela maligna Idade Média que os nazistas evocavam ao falar de "Blut und Boden", "sangue e solo", querendo indicar a identidade de um povo e de um ser humano, e que hoje também se manifesta com Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil e, claro, as forças soberanistas na Europa, muito fortes em nosso país (omitindo a análise das outras áreas do planeta, mas não me parece que a situação seja muito melhor). Parece, portanto, necessário concluir que, apesar da agudeza de algumas de suas previsões, Balducci não tenha adivinhado globalmente ao imaginar o "homem planetário" (o título de seu livro mais belo), visto que o mundo está indo exatamente para o outro lado, para trás, em direção ao homem "identitário". Parece que estivesse mais certo Samuel Huntington quando, no mesmo período, previa O Choque de Civilizações.
Mas o que Balducci entendia com "homem planetário"? Ele estava convencido de estar um ponto de virada decisivo na história, pois a bomba atômica havia definitivamente posto fora de jogo o instrumento com o qual a história sempre havia sido feita até então, ou seja, a guerra, e nisso ele viu um ponto sem volta da evolução que chamava de "planetarização". Em sua opinião, "Darwin também aludia a isso quando afirmava que uma vez que a espécie humana passasse a se perceber como um todo único, as relações de simpatia dentro da espécie se estenderiam até a extremidade do planeta". Em suma, o homem planetário é o contrário do soberanismo.
Foi justamente nessa perspectiva que Balducci chegou a escrever algo muito surpreendente para um padre católico: "A qualificação de um cristão me pesa". É interessante notar que para os soberanistas essa qualificação não pesa nada, ao contrário, competem para exibir cruzes e rosários, enquanto para Balducci pesava porque para ele toda qualificação identitária levava à divisão dos seres humanos. Por isso, ele buscava uma autocompreensão inédita, capaz de abranger a todos, e depois de ter dito que pesava sobre ele a qualificação de cristão, continuava: "Sou apenas um homem: eis uma expressão neotestamentária na qual minha fé melhor se expressa". Foi por isso que Balducci cunhou a qualificação de homem planetário, explicando: "O homem planetário é o homem pós-cristão", ao passo que, ao dizer pós-cristão, ele não entendia abandonar Jesus, mas ser verdadeiramente fiel à sua mensagem: "Está próximo o dia em que se compreenderá que Jesus de Nazaré não pretendia acrescentar uma nova religião às existentes, mas, ao contrário, queria derrubar todas as barreiras que impedem o homem de ser irmão do homem".
Desta nova identidade teria resultado um novo estilo de vida que ele definia como “cultura de paz” e baseado em dois pilares: política e ecologia. A nova política geraria paz entre os seres humanos, e a ecologia, a paz com o planeta.
Sob este último ponto de vista, Balducci foi um dos primeiros a compreender não apenas a urgência, mas também o valor espiritual da ecologia. Ele declarava: "A questão ecológica está se tornando a questão central". Os jovens de hoje, tão sensíveis à dimensão ecológica, mostram a fundamentação desta afirmação. No entanto, é inevitável questionar-se: a guerra ucraniana não tornará impossível a conversão ecológica de nossas economias? Não sei responder, mas é evidente que uma política ecológica verdadeiramente eficaz só é possível por comum acordo entre as economias mundiais, enquanto a situação atual prefigura um cenário geopolítico cada vez mais dividido e conflituoso.
No entanto, a função do pensamento permanece sempre aquela de indicar o ideal rumo ao qual se direcionar. Sem profecia e utopia não pode haver teologia, nem mesmo uma filosofia que faça jus ao seu nome que significa "amor à sabedoria". É necessário amar a sabedoria que o mundo muitas vezes não tem para realmente fazer philo-sophia. Balducci fez isso toda a sua vida. Teologicamente falando, esse amor por uma sabedoria maior que o mundo se chama amor a Deus, isto é, por uma Verdade diferente da verdade do mundo. Que a Verdade é a verdade do mundo era a convicção de Hegel, Nietzsche, Sartre e todos aqueles que afirmam a imanência; que não o seja, era a convicção de Platão, de Jesus, de Kant, de Wittgenstein e de todos aqueles que afirmam a Transcendência, independentemente de como depois a chamem.
Mas atenção: mesmo do ponto de vista teológico, estamos diante de uma transição de época. Ela se concretiza na necessidade de escolher entre Boden und Blut e planetização, entre religião nacional e espiritualidade universal. Esta alternativa é hoje encarnada no cenário mundial por duas figuras: o Patriarca Kirill e o Papa Francisco. De um lado a nação, do outro a ecologia. De um lado "a força do nosso povo" (palavras do patriarca de 4 de abril de 2022), do outro "Fratelli tutti" (encíclica papal de 2020). De um lado o regresso ao passado e o consequente "choque de civilizações", do outro a abertura para o futuro e o consequente "homem planetário".
Não sabemos qual das duas perspectivas no longo prazo resultará vencedora e qual perdedora, nem no plano político nem no eclesial. Certamente estão presentes também dentro da Igreja Católica, onde há muitos inimigos do Papa Francisco, que imagino idênticos àqueles que não suportavam o padre Balducci (e com ele Dom Milani, padre Turoldo, Arturo Paoli, Carlo Maria Martini, Carlo Molari, para citar outros nomes). O que cada um pode fazer é entender a alternativa e escolher dentro de si, na presença de sua consciência e das alegrias e tristezas do mundo.
Balducci nos indica ainda hoje uma nova identidade de crente que define como planetário e pós-cristão, não para abandonar Jesus, mas para cumprir estas suas palavras: "se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto" (Jo 12,24). Era, portanto, por fidelidade ao seu mestre que Balducci chegou a afirmar: “Quem ainda se professa ateu, ou marxista, ou leigo e precisa de um cristão para completar a série de representações no proscênio da cultura, não me procure. Eu sou apenas um homem”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O homem planetário. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU