22 Setembro 2023
"O Deus de que precisamos não é nem pode ser mais aquele da tradição, o Deus do monoteísmo e das guerras religiosas, o Deus em cujo nome praticamente quase todos os crimes foram cometidos proclamando 'Deus quer isso'. Não pode ser o Deus da moral única e de família única que mandava para o inferno todos que viviam com ele que não fossem casados regularmente no altar, considerados públicos pecadores e, portanto, sujeitos a um duplo pecado mortal (de adultério e de escândalo). Esse Deus é distante do coração e da alma dos seres humanos e invocá-lo só pode nos levar ao fracasso e à violência. Qual Deus Meloni tem em mente quando fala de Deus?", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 16-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A presidente Giorgia Meloni não é a primeira líder política a declarar que quer defender Deus. A história sempre conheceu políticos que se arvoram tanto em defensores de Deus (como Henrique VIII da Inglaterra nomeado Defensor fidei pelo Papa Leão, mesmo que isso não lhe impediu alguns anos mais tarde decapitar Thomas More), quanto homens da Igreja que se tornam paladinos de objetivos políticos (como Bento XVI com os seus “valores não negociáveis” de vida-escola-família). Da Roma imperial à Roma de hoje, do antigo Israel ao Israel de hoje refém dos partidos religiosos, da Rússia de Putin e Kirill à Índia de Modi, existem inúmeras civilizações baseadas na aliança entre o trono e o altar, independentemente de como forem chamadas. Geralmente a aliança funciona porque é conveniente para ambos, embora nem sempre seja conveniente para os cidadãos que, de fato, por vezes a fazem estourar: basta pensar na Revolução Francesa e no fim do Antigo Regime, e em anos mais recentes na Itália nos referendos populares sobre o divórcio e o aborto, quando a maioria dos cidadãos optou por uma ideia de família diferente daquela do trono e do altar, que naquela época estavam muito mais próximas do que hoje.
Mas qual Deus deveria ser defendido? E de quem deveria ser defendido e do quê? Na Bíblia podem ser lidas essas palavras de Jó aos três amigos teólogos que vieram defender Deus de suas acusações: “Será que para defender a Deus vocês vão dizer mentiras? Vão falar palavras enganosas a favor dele?” (Jó 13,7).
A verdadeira questão, portanto, não é defender Deus (operação que a teologia e a filosofia têm praticado desde sempre com o que a primeira chama de “apologética” e a segunda de “teodiceia”), mas o propósito e os argumentos com os quais isso é feito. Para a primeira-ministra a equação não poderia ser mais clara: Deus = identidade; defesa de Deus = defesa da nossa identidade. Defender Deus, portanto, é defender a nós mesmos, a nossa pátria, toda a civilização ocidental. Na sua opinião, Deus e a Pátria estão e caem juntos, e o que permite que ambos existam é a família e sua natalidade.
Eu acredito que hoje devemos mesmo defender Deus do niilismo imperante, considero que até mesmo os ateus deveriam defender a plausibilidade do seu conceito, mas penso que se trata de uma operação espiritual, e não política, que deve ser realizada dentro de nós mesmos, não em comícios ou na TV.
Acrescentaria que Deus, pátria e família são valores preciosos, para mim muito importantes, e que o nosso problema é que a Esquerda quase nunca se preocupa em defendê-los (esquecendo o quanto Deus, pátria e família sejam recorrentes nas cartas dos condenados à morte na Resistência italiana) e que a Direita os defende da maneira errada.
Mas voltando a Deus, reitero que a sua defesa não é uma ação política, mas espiritual. Deus representa o ideal por excelência do otimismo metafísico, a esperança de que a vida tenha um sentido, um destino, uma destinação; a esperança que palavras como justiça, verdade, beleza, harmonia não sejam uma ilusão, mas a dimensão mais verdadeira do ser. Defender essa esperança, cultivada desde sempre pela humanidade, é importante, eu diria decisivo. Principalmente hoje, quando é fácil verificar o que significa crescer sem um Deus, sem uma religião e uma religiosidade: na história nunca houve sociedade sem religião, e agora que ficamos sem religião (porque é evidente que o cristianismo não tem mais influência nas consciências da maioria) assistimos à desintegração progressiva da sociedade, não mais "conjunto de sócios", mas cada vez massa mais amorfa e rixosa de rivais.
A questão, porém, é que o Deus da tradição é indefensável. O Deus que Giorgia Meloni associa à pátria e à família, o Deus dos exércitos, senhor da história e rei do universo, o Deus que governa o destino dos povos e da vida de cada ser humano, o Deus pai e viril projeção do pater familias e do seu poder, esse Deus que é “o nosso Deus” e que como tal nos divide daqueles que têm um diferente, esse Deus, depois de tudo o que aconteceu na história (o Holocausto, por exemplo) e depois de tudo o que nela não aconteceu (a sua intervenção libertadora, por exemplo), resulta hoje totalmente indefensável.
O Deus de que precisamos não é nem pode ser mais aquele da tradição, o Deus do monoteísmo e das guerras religiosas, o Deus em cujo nome praticamente quase todos os crimes foram cometidos proclamando "Deus quer isso". Não pode ser o Deus da moral única e de família única que mandava para o inferno todos que viviam com ele que não fossem casados regularmente no altar, considerados públicos pecadores e, portanto, sujeitos a um duplo pecado mortal (de adultério e de escândalo). Esse Deus é distante do coração e da alma dos seres humanos e invocá-lo só pode nos levar ao fracasso e à violência. Qual Deus Meloni tem em mente quando fala de Deus?
Pensar em enfrentar os imensos problemas deste mundo com a imagem e a teologia do passado significa alimentar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington em 1993 e, infelizmente, hoje em tudo potencialmente real. Basta um nada, uma só palavra para que irrompa: basta pensar no incidente de Regensburg, no qual Bento XVI esteve envolvido em 2006, só para dar um exemplo.
O Deus que devemos defender só pode ser interior. O que significa que as religiões precisam dar um passo para trás e devem se converter. A quê? A algo mais importante que elas: ao bem do mundo. Precisamos de uma nova base para a nossa convivência civil e que não pode mais ser o Deus da tradição, da Pátria e da sua natalidade, que Giorgia Meloni diz querer defender. Aquele Deus foi consumido pela história à custa de muito sangue inocente. É o mesmo Deus, para dar um exemplo, que sobre os homossexuais assim se expressa na Bíblia: “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o seu sangue será sobre eles” (Levítico 20.13). É esse o Deus que queremos defender? Na realidade, desse Deus devemos nos defender: devemos impedir que retorne, devemos evitar que novamente se instaurem a sua violência, a sua intolerância, o seu medo, o seu terror.
Está escrito que Deus, a Moisés no Sinai, que lhe perguntara seu nome, respondeu assim: “Ehyeh ašer ehyeh" (Êxodo 3,14), tradicionalmente traduzido como "Eu sou o que sou". O significado mais plausível é o de "existir", "eu existo e existirei" e, portanto, muitas vezes também é traduzido como "o Deus conosco". Deus conosco em alemão é Gott mit uns: isso é o que estava escrito no cinto de cada soldado do Terceiro Reich. Também antes disso era o lema dos cavaleiros teutônicos, os monges guerreiros medievais.
Bem, eu acredito que precisamos mudar completamente o paradigma e pensar que o verdadeiro nome de Deus seja este outro: “o Deus com eles”. Olho para uma árvore, uma estrela, um animal, um ser humano, um estrangeiro cuja língua e pele são diferentes da minha, e penso: “Deus-com-eles”. É o verdadeiro nome de Deus como ideia do bem e da justiça, e coincide com a quebra do círculo identitário e repressivo do nós contra eles, em que os monoteísmos e as ideologias políticas aprisionaram a mente e para a qual não devemos deixar-nos arrastar novamente.
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Existe um Deus que não deve ser defendido. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU