05 Dezembro 2024
Há o risco de que a redução da jornada transforme-se em “tempo livre” para mais trabalho reprodutivo. Debate sobre as desigualdades de gênero e raça é crucial. E Política Nacional de Cuidado, recém-aprovada, pode ser aliada para uma vida além do trabalho.
O artigo é de Maria Júlia Pereira, doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas, publicado por Outras Palavras, 04-12-2024.
No dia 12 de novembro foi aprovado o PL 2762/2024, que cria a Política Nacional de Cuidados[1]. A aprovação do texto na Câmara é resultado de um esforço importante do governo federal de criar um plano nacional de cuidados em articulação com diferentes setores, dentre os quais o de políticas públicas, o acadêmico-científico, o terceiro setor, os movimentos sociais e a sociedade civil. A concretização da Política foi um primeiro passo importante, que resultará em um Plano Nacional de Cuidados, trazendo ações concretas para sua implementação[2]. Agora o PL tramitará no senado.
A Política Nacional de Cuidados busca reafirmar o cuidado enquanto uma necessidade humana a partir da perspectiva de que, em algum momento, todos precisaremos de cuidados. Essa Política tem como foco quem recebe cuidados, mas também quem cuida, seja de forma remunerada ou não remunerada. Ela visa contribuir para com os ajustes entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e o papel da família em assegurar tal cuidado. Seu objetivo é assegurar o cuidado como um direito, responsabilizando, dessa forma, o poder público por seu provimento.
Ao assegurar o cuidado como direito, a Política lida com questões complexas como as desigualdades de renda, gênero e raça, e o familismo associado à temática do cuidado – tanto direto (com pessoas), quanto indireto (tarefas domésticas auxiliares, como limpar, cozinhar etc.). A atual organização social do cuidado considera a família como responsável pelo provimento deste trabalho, situação que é especialmente prejudicial para as pessoas mais pobres. Isso porque nem todas as famílias brasileiras podem recorrer ao mercado para suprir necessidades de cuidado. E é justamente nesse mercado onde estão alocadas as principais possibilidades de atribuir o cuidado a outras pessoas, aliviando familiares, geralmente mulheres, e mulheres negras em particular. Para aquelas que não podem recorrer ao mercado, alternativas comunitárias de cuidado acabam sendo uma das vias possíveis. Alocando o cuidado no âmbito das políticas públicas, a Política Nacional de Cuidados objetiva garantir que as populações mais vulneráveis tenham acesso a este que é um imperativo da humanidade: ser cuidado.
Dentre outros aspectos de destaque, uma das qualidades da Política é o foco não apenas nas pessoas que recebem cuidado, mas também nas pessoas que cuidam, isto é, as trabalhadoras do cuidado. Esse destaque é o oposto do que observamos durante o governo Bolsonaro, já que o então presidente vetou o PL 11/2016, que propunha a criação e a regulamentação da profissão de cuidadora. O executivo argumentou que criar a profissão de cuidadora seria inconstitucional por restringir o livre exercício profissional.
Porém, as dificuldades para estabelecer essa categoria são complexas. Há uma disputa entre as próprias trabalhadoras em torno da categoria “cuidadora”. Durante o processo de discussão interministerial e após o envio do PL para a Câmara, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) solicitou que as trabalhadoras domésticas sejam incluídas de forma mais explícita como público-alvo da Política. Isso se justificaria pelo fato de que, cuidando em ambiente doméstico, a cuidadora seria trabalhadora doméstica, não uma categoria à parte[3]. Do ponto de vista das cuidadoras, entretanto, há um esforço de se distinguirem das trabalhadoras domésticas, seja por causa do estigma que paira sobre essa categoria profissional, seja pelo teor das atividades exercidas por elas, que às vezes demandam conhecimentos do campo da saúde. Por outro lado, profissionais da saúde buscam se diferenciar das cuidadoras por possuírem uma formação técnica ou universitária que essas últimas podem não necessariamente possuir. Portanto, a tramitação do PL, a institucionalização da Política Nacional de Cuidados e os desdobramentos do futuro Plano Nacional de Cuidados são processos que não ocorrerão sem disputas.
Para além da relevância da Política Nacional de Cuidados por si mesma, chamo atenção para a possível e necessária articulação entre ela e o fim da jornada 6×1[4]. A ministra das Mulheres já se manifestou nesse sentido: “[…] Acho que é importante dizer que a [PEC] 6×1 de fato vai beneficiar as mulheres. Nós aprovamos na Câmara a Política Nacional de Cuidados, está indo para o Senado. Se a gente juntar as duas coisas, acho que vai ser super importante para que possamos amadurecer a valorização das mulheres no trabalho remunerado e não remunerado e o uso do seu tempo.”[5]
Na ausência de renda para a contratação do trabalho de cuidado no mercado, tendo em vista as limitações das redes de cuidados comunitários, a alternativa que resta às mulheres é a conciliação. Essa conciliação, entretanto, não tem nada de conciliadora. O que se vê são as mulheres, principalmente negras, sobrecarregadas com o trabalho de cuidado e o trabalho remunerado no mercado, muitas vezes desprotegido e precário. O caso de uma motorista da Uber que entrevistei em 2021 elucida bem a realidade da captura dos tempos das mulheres trabalhadoras pelo trabalho de cuidado e pelo trabalho remunerado. Minha entrevistada trabalhava como faxineira num motel durante a madrugada, chegava em casa pela manhã para preparar o café do marido e dos filhos, trabalhava o dia inteiro como Uber, parando para fazer o almoço, levar e buscar os filhos na escola.
O fim da escala 6×1 beneficiaria essas trabalhadoras que, quando em ocupações formais, enfrentam o déficit de tempo ainda que possuam proteção social e trabalhista. Por outro lado, o debate sobre o fim da escala 6×1 deve vir acompanhado de uma observação de perto de ocupações informais, mesmo quando os trabalhadores contribuem para a previdência. Isso porque, o trabalho informal demanda muito tempo dos trabalhadores, principalmente na busca por oportunidades, que não é remunerada.
Apesar desse cenário, a pauta do fim da escala 6×1 não tem sido devidamente articulada com o debate sobre a Política Nacional de Cuidados. O fato é que há uma necessidade coletiva de reorganização social do cuidado a fim não apenas de disponibilizar, via políticas públicas, serviços àqueles que não conseguem acessá-los no mercado, mas também construir espaços de compartilhamento do trabalho de cuidado, tanto direto, quanto indireto – como, por exemplo, lavanderias comunitárias. A Política Nacional de Cuidados avança nesse sentido.
Outrossim, é mister promover uma mudança cultural das bases que sustentam a divisão sexual e racial do trabalho na contemporaneidade, aspecto também presente na redação da Política Nacional de Cuidados. Afinal, há décadas as mulheres estão presentes de forma significativa no mercado de trabalho, porém, no espaço tido como privado, os dados indicam que os homens não assumiram sua devida parcela do trabalho de cuidado – e esses dados ainda podem estar subnotificando a real dimensão do problema, pois, especialmente no Brasil, nos faltam pesquisas de usos do tempo[6]. Essa dimensão cultural pode ser lida como “identitária” por parte da esquerda, mas, antes de mais nada, ela é uma demanda da classe trabalhadora.
Portanto, falar no fim da escala 6×1 é falar sobre a promoção da qualidade de vida da classe trabalhadora. Porém, essa questão não pode ser discutida desacompanhada do debate sobre as desigualdades de gênero e de raça. Para que a valorização do tempo de não trabalho seja uma realidade, os trabalhos de cuidado direto e indireto, majoritariamente realizados por mulheres, devem ser pautados. Nesse sentido, a Política Nacional de Cuidados deve emergir também enquanto mote da classe trabalhadora. Do contrário, o tempo de não trabalho (produtivo) das mulheres corre o risco de se transformar em tempo livre para o trabalho (reprodutivo).
[1] Leia aqui.
[2] Leia aqui.
[3] Leia aqui.
[4] Leia aqui.
[5] Leia aqui.
[6] Para mais detalhes conferir a produção de Jordana Cristina de Jesus, docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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Fim da escala 6×1, uma pauta (também) feminista. Artigo de Maria Júlia Tavares Pereira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU