20 Setembro 2024
O filósofo Mark Fisher abre o livro Realismo Capitalista escrevendo sobre como há na sociedade uma sensação de que não apenas o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, mas também de que agora é impossível até mesmo imaginar uma alternativa ao capitalismo. Fisher faz uma analogia com uma pessoa depressiva, “que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma ilusão perigosa”.
E a depressão e o capitalismo estão intimamente ligados, afirma o sociólogo Gabriel Peters, professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A reportagem-entrevista é de Maria Carolina Santos, publicada por Marco Zero, 18-09-2024.
“A depressão, a ansiedade e o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) possuem fontes sistêmicas, coletivas e estruturais. A lógica da sociedade contemporânea – e do capitalismo tardio, em particular – produz montantes muito significativos de sofrimento e essas experiências de sofrimento socialmente determinadas precisam ser explicadas pela sociologia também”, disse em entrevista durante o I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e os grupos de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE).
No seminário, Peters citou o livro Fatigue d’être soi (A fadiga de ser si mesmo, em tradução livre), do antropólogo francês Alain Ehrenberg, para mostrar como o diagnóstico psiquiátrico da depressão acompanhou as transformações do capitalismo tardio. “Ehrenberg elenca o fato de que hoje um componente fundamental no diagnóstico da depressão tem menos a ver com tristeza e mal-estar e mais a ver com aqueles sintomas relacionados à inação, letargia, incapacidade de funcionar”, afirmou Gabriel Peters.
Para o professor, autor do livro Ordem social como problema psíquico: do existencialismo sociológico à epistemologia insana, não surpreende que a depressão se torne um problema de saúde pública para a Organização Mundial da Saúde (OMS) justamente quando se torna a principal causa de incapacitação para o trabalho. Segundo a OMS, em 2019, quase um bilhão de pessoas viviam com algum transtorno mental.
“Também não surpreende que boa parte do tratamento clínico da depressão – tanto psicoterapêutico quanto medicamentoso – seja menos voltado para restituir a felicidade ao indivíduo que se tornou infeliz e mais voltado a refuncionalizar esse indivíduo, torná-lo mais uma vez capaz de trabalhar, de interagir socialmente”, afirmou Peters, completando que “essa geração mais nova de antidepressivos são menos pílulas da felicidade e mais pílulas da atividade, para tornar o indivíduo mais uma vez capaz de operar no mundo”.
Não é apenas com remédios, já que há uma multiplicidade de dispositivos pelos quais os trabalhadores tentam corresponder às exigências do capitalismo. “Por exemplo, quando eu tomo café para combater a sonolência numa reunião de trabalho, eu estou usando um dispositivo neuroquímico; quando eu uso um aplicativo de meditação para relaxar ou para administrar meu tempo eu estou me valendo de um dispositivo tecnológico”, elencou.
Ao mesmo tempo que exige um indivíduo com foco para trabalhar ou estudar por longas jornadas, o mesmo sistema oferece um ambiente repleto de distrações que foram criadas para viciar. “Existe uma expertise em psicologia do vício que foi deliberadamente utilizada no Spotify, no Instagram, no TikTok e em várias outras plataformas para deixar o indivíduo ligado à máquina. Entram também as soluções medicamentosas, que servem tanto para combater transtornos como para a otimização do desempenho. A ritalina pode ser prescrita para uma criança por um psiquiatra a partir de um diagnóstico de TDAH, mas pode ser tomada por uma acadêmica que quer virar a noite escrevendo”, exemplifica.
Essa miríade de estímulos do capitalismo rege não só o trabalho, mas também o lazer. Peters cita o livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, do crítico cultural estadunidense Jonathan Cary, para mostrar que o sono é o único período do dia em que nós somos inúteis ao capitalismo, tanto como produtores quanto como consumidores. “Se eu não estou trabalhando, mas estou acessando o Instagram ou assistindo a um seriado na Netflix, continuo sendo útil ao capitalismo.
É só no momento em que durmo, que mergulho na inconsciência, que eu me torno completamente inútil. O capitalismo tenta alvejar esse período de inutilidade do indivíduo por diversas maneiras, inclusive a via neuroquímica”, disse.
A precarização imposta aos trabalhadores também tem um componente importante quando se fala de sofrimento psíquico: a ansiedade. Para Peters, tem a ver, sobretudo, com as incertezas em relação ao futuro. “A precarização significa instabilidade no trabalho, incerteza em relação à renda que vai ser retirada do trabalho. Isso por si só já é uma maneira de forçar as pessoas à autoexploração”, enfatizou.
Peters também critica o discurso do empreendedorismo que tenta refrasear perdas de garantias trabalhistas e perdas de proteção social dos trabalhadores como supostas virtudes. “Em vez de falar da falta de direitos, esse discurso vai elogiar a flexibilidade e a suposta autonomia que se tem para construir o seu próprio horário. Até mesmo vai elogiar a aventura e o risco, que são maneiras, digamos, de dar um componente heroico ao que é uma instabilidade, uma precarização. E, mais uma vez, esse discurso pode penetrar na própria subjetividade dos trabalhadores”.
Ele explica que no trabalho contemporâneo existem certas coações para que o trabalhador mantenha, pelo menos, a máscara da persona de empreendedor. “Parte desse trabalho contemporâneo precarizado envolve você vender não só suas competências, mas toda uma personalidade para o mercado. Então, o motorista da Uber é avaliado pelo bom humor, pela gentileza, etc. Todo o discurso gerencial sobre recursos humanos envolve essa ideia, por exemplo, de que você tem que vestir a camisa da empresa, de que você não pode reclamar”, disse.
É uma forma também de despolitizar o trabalho. “Muitas vezes o trabalhador sofre, mas não encontra um espaço para veicular esse sofrimento. Uma pessoa que vai escrever no LinkedIn sobre a última experiência que teve numa empresa, vai escrever sobre o chefe que a demitiu, só que, na medida em que ela tem a intenção de ser contratada por uma outra empresa, provavelmente ela vai construir uma narrativa rósea do que viveu, vai dizer que aprendeu muito e vai deixar de lado toda espécie de sofrimento que ela pode ter vivenciado até o ponto da demissão”.
Para Peters, o indivíduo em depressão se assemelha a um empreendedor colapsado. “O elemento da atividade foi substituído pela inatividade radical e esse é um ponto claro em que o diagnóstico de depressão se encontra com o burnout. É interessante que quando o filósofo Byung-Chul Han escreve Sociedade do Cansaço, nesse ‘cansaço’ do título está tanto o burnout quanto a depressão”.
A epidemia de depressão verificada pela OMS é um “alarme civilizacional”, diz Peters, porque o capitalismo exige demais dos corpos dos indivíduos, até o ponto do colapso. “Assim como o desenvolvimento tecnológico não pode continuar sem destruir o próprio ecossistema da Terra, é como se o capitalismo, e esse modelo de subjetividade capitalista, não pudesse continuar funcionando sem deixar de gerar esse montante de milhões e milhões de indivíduos que colapsam no sofrimento depressivo”, afirma.
Se o sofrimento psíquico também tem fontes sociais, estruturais e sistêmicas, o combate a esse sofrimento também passa por ações coletivas e políticas. Peters defende a existência de políticas públicas para construir condições de trabalho que protejam a saúde mental dos trabalhadores. “Essa pandemia de depressão não é só um agregado de sofrimentos individuais: o sistema capitalista está exigindo demais dos indivíduos. Não é, obviamente, negar a importância do tratamento individual, da psicologia clínica, até mesmo da psiquiatria, mas é dizer que esse tratamento individualizado é insuficiente”, afirma.
“Se você está numa sociedade adoecedora, a única coisa que um tratamento individual vai poder fazer é tentar garantir sua adaptação maior ou menor a essa sociedade adoecedora sem combater as causas sistêmicas desse adoecimento”, pondera, completando que há múltiplas maneiras de fazer esse combate.
Uma delas é combinar, por exemplo, o trabalho com a partilha do sofrimento com outros trabalhadores e estudantes. “Na vida acadêmica isso é extremamente comum. Somos meio que coagidos para nos apresentarmos uns aos outros como intelectos puros e não como essas criaturas de carne e vísceras que sofrem de insônia, ansiedade, etc. Simplesmente partilhar essas vulnerabilidades em vez de vestir essa máscara da invulnerabilidade, já é um início importante”, acredita.
Para o trabalho não só deixar de ser um fator de adoecimento, mas também ser uma fonte de prazer, Peters afirma que a ideia de um trabalho significativo tem de ser reconstruída. “Alguns considerariam utópica, mas acredito em um sistema social que pudesse desvincular, pelo menos em alguma medida, renda e emprego”, diz.
A ideia de renda básica universal, por exemplo, é uma maneira de fazer isso. “Responde ao desemprego como um problema sistêmico e recupera o trabalho como uma atividade significativa. Nesse mundo, o trabalho fundamental da vida da pessoa não é necessariamente o que dá a ela o ganha-pão, mas é o que dá a ela o senso de propósito, seja engajamento comunitário, seja envolvimento artístico e assim por diante.
O trabalho nunca é só, ou pelo menos nunca deveria ser, o ganha-pão. Se ele é só o ganha-pão, acaba tendo efeitos psicológicos degradantes para o indivíduo”, conclui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A íntima relação entre o trabalho precarizado e o sofrimento psíquico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU