10 Setembro 2024
Jean-Philippe Bouilloud descobre diferentes narrativas no mundo do trabalho que correspondem ao estabelecimento de um imaginário e a uma sucessão de decisões. O sociólogo francês, que dá aula no departamento de Administração da ESCP Business School, estuda os casos particulares de jovens formados na carreira de negócios, em universidades de elite, que se identificam com personagens como Mark Zuckerberg e Jeff Bezos.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 09-09-2024. A tradução é do Cepat.
Eles se recusam a ingressar em grandes empresas que representam um modelo empresarial antigo, ligado à tradição de seus pais, e veem no criador do Facebook e no presidente executivo da Amazon novos heróis. Convencidos de que podem repetir seus feitos, geram um universo de trabalho sustentado por discursos ambientalistas e um vocabulário que os aproxima mais de um artista do que de um diretor da área de negócios. Não descartam o questionamento do sistema capitalista e a possibilidade de mudar o mundo a partir da configuração de uma nova startup.
No outro extremo, motoristas de Uber e entregadores de comida de diferentes aplicativos ficam presos à promessa de se tornar empreendedores de si mesmos. Para o sociólogo, cada vida que se constitui em torno do emprego, de suas disposições e características envolve muito mais do que a urgência de um salário. Há uma categorização e uma oportunidade variada de relações sociais que constituem uma carga de valor no dispositivo que une empresários e trabalhadores e determina a qualidade das atividades e do capital simbólico.
Durante os dias que passou em Buenos Aires, convidado pela Cátedra Europa (um projeto das embaixadas europeias apoiado pela delegação da União Europeia na Argentina) e o Instituto Francês, Bouilloud, que é professor na Université Paris Cité, concedeu esta entrevista antes de sua conferência O mundo do trabalho de pernas para o ar, na Aliança Francesa, para pensar esta nova estrutura marcada pelo teletrabalho, na qual a separação entre as horas dedicadas a ganhar o sustento e o tempo livre são muito difíceis de delimitar e os componentes afetivos e recreativos também se traduzem em uma mercadoria oferecida nas redes sociais.
Contudo, o sociólogo francês identifica na necessidade de realizar um bom trabalho um espaço de amparo que envolve um sentido, o reconhecimento de uma diferença e a capacidade de autoria. Uma espécie de vontade de fundir o sujeito com esse objetivo de trabalho que passa a questionar a produção em série para desenhar a narrativa de seu próprio feito.
Há uma sobrecarga de sentido nos depoimentos que você menciona em seus trabalhos de campo sobre os jovens empreendedores que se propõem a criar uma startup. Muitos deles manifestam uma crítica ao capitalismo, mas é justamente a nova configuração do capitalismo que permite a criação destas empresas. A sua eficácia responde a uma capacidade adaptativa, mais do que a uma transformação do sistema.
Sim, claro, quando consideram criar estas startups com o modelo dos GAFA, acreditam fazer algo novo. No entanto, não são críticos políticos do capitalismo, mas críticos da grande empresa tradicional, que é a empresa de seus pais. Não têm nada de esquerdistas. Dizem que querem salvar o mundo, mas se trata de uma adaptação econômica. Acontece que grande parte dessas empresas se apresenta como um grupo de amigos que fazem de sua amizade um trabalho. A fronteira entre a vida pessoal e o trabalho não existe mais.
Isso aprofunda essa confusão e a superatribuição de sentidos em relação ao trabalho?
Não existem mais objetos do trabalho e objetos da vida privada. O telefone é um objeto da vida privada e do trabalho e isso mudou muito porque as pessoas estão sempre fazendo alguma coisa e se esgotam ao trabalhar sem parar. Na minha profissão, sempre temos algo para escrever, uma aula para preparar, uma conferência e fazemos isto quando podemos. No entanto, antes da internet, você saía da universidade ou do trabalho e fazia o que queria, ninguém tinha a possibilidade de ligar para a sua casa, o número privado era privado. Hoje, tenho um número que é tanto profissional como privado. Como vivemos essa mistura entre trabalho e vida pessoal?
Agora, há uma hipersocialização do trabalho como se vê nas redes sociais, por exemplo, com o LinkedIn, que é uma rede social e profissional onde as pessoas publicam os seus êxitos profissionais. Eu também faço isto porque é uma forma de comunicar. Outra questão é que esperamos um reconhecimento infinito quando publicamos algo em uma rede social. Esperamos os likes, as reações dos amigos e contatos, estamos em um processo de ansiedade infinita. Nunca temos o reconhecimento suficiente, sempre nos falta algo e isto gera depressão. Estamos em uma situação um pouco perigosa.
Para os jovens, a covid foi muito complicada do ponto de vista psiquiátrico. Na França, os hospitais psiquiátricos estão cheios de adolescentes porque essa necessidade de reconhecimento desse like, que é como um I love you, nunca é suficiente. Somos mais frágeis. Este é para mim um dos perigos deste tempo.
O mundo digital dá a sensação de que todos nós temos os mesmos recursos. Parece que temos as ferramentas de produção, mas não gerenciamos o algoritmo.
O surgimento da Wikipédia e do Google foi um sucesso para muitas empresas. Antes, era preciso buscar essa informação por meio de um trabalho que exigia conversar com muitas pessoas e o atual desenvolvimento da inteligência artificial é a irrupção natural deste processo, mas não se sabe as consequências a nível profissional.
Quando você destaca a importância de fazer um bom trabalho, parece relacioná-lo com a vontade de superar um trabalho que pode ser feito com a informação do Google e encontrar uma contribuição que faça a diferença.
Escrevi um livro sobre esse tema porque é cada vez mais importante, em um mundo onde a tecnologia faz cada vez mais coisas. Para muitas pessoas, é importante ter tempo para fazer um bom trabalho, para debater com os colegas, com os clientes, para conseguir fazer algo diferente do que se faz quando não há tempo por causa da necessidade de produzir mais.
Eu também utilizo as possibilidades modernas. Utilizei o programa de inteligência artificial ChatGPT porque tenho curiosidade sobre essas ferramentas, mas tenho prazer em ter tempo para escrever, traduzir. Não é o mundo digital que me dá o sentido de um bom trabalho.
Conforme é possível realizar um bom trabalho, o trabalho é satisfatório. Por isso, digo que o que o trabalho não nos dá apenas dinheiro, também nos dá as relações sociais, um lugar social, a reputação profissional e a satisfação intelectual. Um bom trabalho faz parte da identidade.
E como essas cargas ideológicas são transferidas ao trabalhador precarizado dos aplicativos?
São transferidas como uma ilusão. Há um filme inglês sobre um homem desempregado que consegue trabalho como motorista da Amazon (Você não estava aqui, de Ken Loach). Dizem a ele que será o seu próprio patrão e que precisa comprar um carro. É um falso assalariado. É a tragédia da ilusão, pois estes trabalhadores não têm seguridade social e são levados a acreditar que serão os seus próprios patrões, que se trabalharem muito ganharão muito dinheiro, mas não é assim que acontece. O que é a autonomia? O que é a liberdade em casos assim?
Existe a ilusão empresarial de ter um trabalho, ganhar dinheiro, ter um status social que não é grandioso, mas é melhor do que o desemprego. O que se vê é que há cada vez mais precariedade em muitos empregos. Robert Castel escreveu As metamorfoses da questão social (1995) demonstrando que a condição de assalariado foi um grande objetivo para os trabalhadores da Europa, no século XX, e que agora, com estas novas possibilidades de viver com a ajuda do estado, somado a um trabalho precarizado, há pessoas que sobrevivem, mas são ocupações sem futuro.
A batalha pela jornada de trabalho perde sentido com essa nova configuração do trabalho.
A covid mudou muitas coisas sobre a percepção do trabalho. Com o teletrabalho, por exemplo, o que significa horas de trabalho? Local de trabalho? Trabalha-se muito mais no teletrabalho do que em uma empresa onde você tem, ao menos na França, duas horas para almoçar, uma hora para tomar café, às 11, e outra hora para tomar café com os colegas, às 4.
Quando estou na universidade, estou conversando, tomando um café e não posso trabalhar, tem muita gente. Quando quero trabalhar, vou para casa. O teletrabalho mudou a nossa percepção sobre quais são os atributos do trabalho. Não é mais uma questão de horas ou de estar em um lugar. Mudou a organização porque nas empresas perceberam que os níveis intermediários não são mais úteis.
Você também pesquisou a respeito das conexões entre as empresas e os regimes políticos. Tenho interesse em lhe perguntar sobre a capacidade que as empresas possuem de se desvincularem do estado, quando na realidade estão muito envolvidas, por exemplo, com as políticas econômicas.
Essa é uma característica dos séculos XX e XXI. As grandes empresas são agora tão imensas que possuem uma importância econômica e política que não corresponde à forma como são dirigidas, porque em um país há eleições, mas na empresa não há eleições. Quando há uma empresa como o Walmart, nos Estados Unidos, que tem dois milhões de trabalhadores ou uma empresa que tem um papel incrível como o Google (quando o CEO do Google vem para França, fala diretamente com Macron), é necessário questionar o que podemos fazer na democracia com o papel que estas grandes empresas cumprem.
É uma questão que foi tratada inicialmente em 1913, nos Estados Unidos, com a lei contra os monopólios, pois a Standard Oil era um monopólio da gasolina e isso gerou um problema político. Na maioria dos países democráticos, consideramos que existem bens comuns que devem pertencer ao estado, por exemplo, a rede ferroviária não pode ser muito rentável, as ruas...
Aqui, na Argentina, o atual presidente não quer que o estado se encarregue das obras públicas.
E quem fará isso? O governo anterior da França, que era socialista, privatizou as rodovias e foi um escândalo. É um debate democrático decidir o que deve pertencer aos bens comuns e o que pode ser privado. Na França, por exemplo, temos uma educação privada e uma educação pública, mas a educação privada é 72% financiada pelo estado e não é muito cara, é menos cara do que nos Estados Unidos. Temos estudantes que vêm daí porque é mais econômico para eles.
Na França, paga-se muitos impostos, somos os campeões dos impostos, mas não se paga pela educação, nem pela saúde. Em outros países europeus e nos Estados Unidos, paga-se menos impostos, mas se paga muito mais pela saúde e os estudos. São questões democráticas, cada sociedade fará a sua própria escolha, mas é necessário que seja um debate democrático, não uma questão decidida entre amigos, a portas fechadas, por um lobby empresarial.
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O mundo do trabalho de pernas para o ar. “A fronteira entre a vida pessoal e o trabalho não existe mais”. Entrevista com Jean-Philippe Bouilloud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU