18 Mai 2024
"O cenário aqui analisado demonstra que o convencimento de que os direitos coletivos são necessários é tão difícil quanto a aprovação de um projeto que garanta melhor qualidade de vida e trabalho aos indivíduos. A formulação de leis favoráveis aos trabalhadores, por um lado, e o convencimento ideológico, por outro, representam a disputa política no seio da sociedade, e devem caminhar conjuntamente, envolvendo a aliança com os diferentes atores interessados no tema, isto é, acadêmicos, organizações coletivas, parlamentares e demais agentes políticos", escrevem Maria Júlia Tavares Pereira, Matheus Silveira de Souza e Eduardo Rezende Pereira, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Maria Júlia Tavares Pereira é doutoranda em Sociologia pela Unicamp e membra do Projeto Conexão – Observatório do trabalho por plataformas digitais no Brasil.
Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pela Unicamp e membro do Projeto Conexão – Observatório do trabalho por plataformas digitais no Brasil.
Eduardo Rezende Pereira é militante da Consulta Popular, doutorando em Ciência Política pela Unicamp e membro do Projeto Conexão – Observatório do trabalho por plataformas digitais no Brasil.
A regulamentação do trabalho subordinado às plataformas digitais se encontra em um cenário de disputa no Brasil. O governo Lula da Silva (PT), ao propor o grupo de trabalho (GT) tripartite para tratar deste tema, no interior do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mexeu com interesses que estavam, até então, latentes. Até o lançamento do projeto de lei complementar 12/2024, o trabalho subordinado às plataformas seguia sem nenhuma previsão de acesso a direitos. As empresas, desde então, saíram a campo, prontas para disputar os rumos deste debate. E os trabalhadores também — à direita e à esquerda.
As críticas à esquerda vão no sentido daquilo que diversos pesquisadores têm apontado: que o projeto de lei elaborado pelo Executivo federal não prevê o acesso, mas o rebaixamento dos direitos. As críticas à direita apontam, por outro lado, a falta de garantia da liberdade. O projeto, no fim, ao contrário do slogan petista, não prevê nem autonomia e nem direitos.
No dia 17 de abril de 2024 a Câmara dos Deputados realizou um debate sobre a regulamentação do trabalho dos motoristas por aplicativos, aproveitando o ensejo para agitar o projeto de lei 536/2024, uma contraposição ao projeto petista. À contramão de uma discussão que vai na direção da importância do acesso aos direitos sociais e trabalhistas, o evento simbolizou as disputas e narrativas à direita da regulamentação do trabalho subordinado às plataformas, em consonância com as recentes mobilizações que foram articuladas nas ruas do país. A transmissão ao vivo, no canal institucional, contava, até o dia 26 de abril, com cerca de 55 mil visualizações e 140 comentários. Considerando outros vídeos postados no canal, é possível afirmar que a temática foi notavelmente atrativa.
Chamou atenção a participação significativa de deputados de partidos de direita, como é o caso do Partido Liberal (PL), e a presença reduzida de parlamentares do campo progressista, como os do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A ausência desses representantes não passou despercebida: em diversos momentos, o presidente da sessão chamava pelos deputados do PT, que estavam inscritos, mas não estavam presentes. Tais ausências ilustram muito o atual cenário, da atuação distante dos partidos progressistas com relação aos trabalhadores por aplicativos, deixando espaço vago para que os partidos de direita, com suas narrativas neoliberais, se coloquem como defensores dessas categorias.
O PL, especialmente, parece dominar a narrativa. O presidente da plenária, inclusive, era o deputado Daniel Agrobom (PL-GO), um dos autores do projeto de lei 536/2024 — proposta que tem como objetivo regulamentar, em seus termos, a profissão de motorista autônomo de serviços de mobilidade urbana. Este projeto apareceu reiteradamente nas falas de deputados e trabalhadores, e nos comentários dos internautas na transmissão da sessão.
O projeto 536/2024, do Partido Liberal, é mencionado como contraposição ao projeto 12/2024, do governo Lula. Segundo Agrobom, o projeto 536/2024 foi construído pela Frente Parlamentar em Defesa dos Motoristas e Motoentregadores por Aplicativos (FPMA), instalada no início de 2023. A frente teria estabelecido contato com motoristas e ouvido suas demandas e experiências, para, então, realizar a proposta. A narrativa que se consolida é a de que os deputados de direita estão dispostos a defender os motoristas, dialogando e ouvindo suas demandas, enquanto os parlamentares de outro espectro político sequer participam de plenárias para realizar a disputa. A relação de Agrobom com esses trabalhadores é notável: em uma das manifestações organizadas por motoristas por aplicativos em Brasília, contra o projeto de lei do governo federal, o parlamentar esteve presente e discursou no caminhão de som, ao lado dos organizadores do protesto.
Se considerarmos que a extrema direita possui capacidade de capturar o medo e a insegurança de parte da população para apresentar políticas conservadoras como solução, vemos, agora, a reutilização dessa mesma estratégia para a temática do trabalho subordinado às plataformas digitais: deputados reacionários se valem das condições de trabalho precárias, enfrentadas por motoristas uberizados, e capturam essa revolta, entregando como alternativa mais neoliberalismo e livre mercado e menos direitos.
Alguns dos representantes de trabalhadores que estavam na plenária, apontaram que o projeto do governo federal não tem a aceitação entre os motoristas por aplicativos; que ele deveria levar em conta os quilômetros rodados e não ter como base as horas trabalhadas; que ele restringe a liberdade dos trabalhadores; e que os trabalhadores foram excluídos do processo de elaboração. Os mesmos argumentos foram utilizados pelos parlamentares — do PL, do União Brasil e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) —, na defesa do projeto 536/2024.
A elaboração do projeto do governo federal para regulamentar o trabalho dos motoristas por aplicativos contou com a participação de representantes das empresas e dos trabalhadores. Para isso, foram incluídos na negociação os dirigentes das centrais sindicais e de sindicatos extraoficiais de motoristas por aplicativos — algo que foi visto com indignação pelos deputados de extrema direita e representantes de associações de trabalhadores.
No evento na Câmara dos Deputados, e no que temos observado nas manifestações virtuais e presenciais de trabalhadores, os sindicatos são chamados de “puxadinho da esquerda”, tidos como organizações que “não servem para nada”, às quais os motoristas ficariam “amarrados” se o projeto 12/2024 fosse aprovado. Segundo os comentários no vídeo de transmissão da plenária, quem ganha com o projeto 12/2024 são os sindicatos, o governo e as empresas — todos colocados no mesmo balaio, à despeito de seus diferentes interesses.
Esses discursos sintetizam o receituário neoliberal: não há sociedade ou classes sociais, mas apenas indivíduos, que a partir de seus esforços e da qualificação dos seus ativos pessoais serão capazes de maximizar seus ganhos, como se cada sujeito fosse uma empresa. Desta forma, o desemprego e a precarização do trabalho não são problematizados e nem vistos como questões sociais, que demandam a organização coletiva e a atuação do Estado, mas como questões pessoais, a serem resolvidas individualmente por cada trabalhador.
As falas na plenária e os comentários virtuais afirmam que os motoristas não querem pagar pelas “altas taxas” de contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), já que podem contribuir via Microempreendedor Individual (MEI). Em contraposição, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são elucidativos: apenas 35,7% dos trabalhadores subordinados às plataformas digitais contribuem em alguma modalidade da previdência social. Ademais, conforme noticiado pelo Intercept, de 2017 a 2022, os acidentes de moto atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) subiram de 20% para 80%, indicando que o aumento de acidentes sem a cobertura previdenciária representa não apenas um risco aos trabalhadores, mas à sociedade, de modo geral. Carina (Cacá) Trindade, presidenta do sindicato de motoristas por aplicativos do Rio Grande do Sul (Sintrampli-RS), que chamou atenção para essa importante questão no evento da Câmara dos Deputados, foi a pessoa mais vaiada pelos trabalhadores presentes.
A retirada de direitos e a construção de regulamentações que representam retrocessos aos trabalhadores são amparadas em discursos que pregam um suposto caráter “antiquado” e “desnecessário” da legislação social e trabalhista. A narrativa dominante valoriza o trabalho por plataformas por ser uma ocupação do século XXI, apesar de seu aspecto precarizador, e descredibiliza a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Há uma nítida fetichização da tecnologia, uma desvalorização dos direitos e um apagamento das verdadeiras responsáveis pela precarização do trabalho por plataformas, isto é, as empresas. Na plenária na Câmara dos Deputados isso fica explícito: as empresas detentoras das plataformas são mencionadas apenas pontualmente, e o debate se assemelha mais a uma disputa entre os deputados do PL e a proposta do governo federal — que, tal como os sindicatos, é associado aos “esquerdistas”, de maneira pejorativa. As empresas permanecem desresponsabilizadas e os trabalhadores se voltam contra formas de organização sindicais por considerarem que elas não os representam.
O cenário aqui analisado demonstra que o convencimento de que os direitos coletivos são necessários é tão difícil quanto a aprovação de um projeto que garanta melhor qualidade de vida e trabalho aos indivíduos. A formulação de leis favoráveis aos trabalhadores, por um lado, e o convencimento ideológico, por outro, representam a disputa política no seio da sociedade, e devem caminhar conjuntamente, envolvendo a aliança com os diferentes atores interessados no tema, isto é, acadêmicos, organizações coletivas, parlamentares e demais agentes políticos.
Assim como há esforços na academia e no interior das instituições políticas, há diversas organizações de entregadores e motoristas por aplicativos que estão combatendo as práticas neoliberais, dando lições à esquerda. Entretanto, é necessário reconhecer a força e a materialidade do discurso neoliberal, que é propagado não apenas por parlamentares de direita, mas por diferentes aparelhos ideológicos, como a grande imprensa, escolas, redes sociais, igrejas, entre outros.
A academia tem se debruçado sobre o trabalho subordinado às plataformas digitais de maneira crítica, desenvolvendo pesquisas quanti e qualitativas sobre o tema. Essas últimas, inclusive, se mobilizadas, poderiam dar conta de diversos problemas que foram ressaltados na plenária que ocorreu na Câmara dos Deputados, e mesmo nas entrelinhas dos diferentes projetos que tratam da regulamentação. Os legisladores e o Executivo federal desconhecem as experiências dos trabalhadores uberizados, marcados pela precarização, e ignoram a complexidade e os riscos que envolvem o espraiamento do trabalho subordinado às plataformas digitais para o conjunto das relações laborais. Apresentar um projeto de lei que retira direitos trabalhistas não é apenas mais um passo em direção ao desmonte da proteção social, mas também a abertura de espaços para que a direita capture a revolta dos trabalhadores e se coloque como representante de seus interesses.
Motoristas por aplicativos ganham regulamentação nos marcos da precarização Disponível aqui.
Transmissão da Comissão Geral para debater a regulamentação do trabalho dos motoristas por aplicativos. Disponível aqui.
Motoristas por aplicativos protestam na esplanada contra projeto de lei. Disponível aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Regulamentação do trabalho subordinado às plataformas: disputas e narrativas à direita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU