30 Abril 2024
"A ordem do capital segue vigente. O que mudou foi sua forma. Assim como abandonou o fordismo, sistema cria hoje um novo regime de exploração, ainda mais brutal, pervasivo e apoiado na tecnologia. Só a luta política permitirá superá-lo", escreve Roberto Moraes Pessanha, doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), com estágio doutoral pela Universidade de Barcelona e mestre pela Coppe/UFRJ. É professor e pesquisador aposentado do Instituto Federal Fluminense, em artigo publicado por Outras Palavras, 26-04-2024.
O título deste texto é, evidentemente, uma provocação e, simultaneamente, um estímulo para reflexões e análises sobre o fenômeno da digitalização na perspectiva de sua totalidade no andar superior da superestrutura. Aqui se tem um artigo-síntese de um ensaio mais extenso – e com o mesmo título – que está sendo publicado como capítulo do livro Capitalismo X Cooperativismo de plataforma: Diagnóstico e propostas para a organização da classe trabalhadora*.
Em cinco séculos, o mundo saiu do feudalismo e da era agrária para um período industrial, já sob a égide do fordismo. O advento da reestruturação produtiva faz surgir o toyotismo e a ampliação dos serviços, já na perspectiva da acumulação flexível, hegemonia financeira e do neoliberalismo. Inovação tecnológica e a digitalização de quase tudo ampliaram-se, imbricadas à financeirização. Expandiu-se a ideia difusa de progresso e do fetiche da tecnologia, quase desconsiderando o fato do seu desenvolvimento ser fruto do trabalho humano, ao qual sempre esteve umbilicalmente vinculado. Capitalização e valorização se misturam entre fundos financeiros e plataformas digitais como
instrumentos e infraestruturas de intermediação da comunicação e da produção, de onde emerge o plataformismo, como nova etapa do Modo de Produção Capitalista (MPC). Combinando e integrando princípios do fordismo e do toyotismo, o plataformismo tem acelerado as desigualdades, a precarização do trabalho e a dominação tecnodigital, ampliando a hegemonia financeira em todos os setores, espaços e dimensões da vida na sociedade contemporânea.
A dimensão do desenvolvimento e da inovação tecnológica com a ampliação da digitalização da vida social, junto com a ideia difusa de progresso e da explosão de startups (processo de startupização), acompanhada ainda do fetiche da tecnologia, ganhou corpo no campo das pesquisas em tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Um campo que também investiga o assunto das redes, as questões culturais, sóciocomunitárias e ainda as relações de poder e política que remetem à geoeconomia e à geopolítica numa outra forte interação com o campo de estudos da geografia e do espaço.
A dimensão econômica é mais clara e está presente na denominação do conceito (ou ideia) da economia de plataformas ou do capitalismo de plataformas e que tem ampla interface com as pesquisas sobre geoeconomia e espaço, mas também com a organização do trabalho, as etapas do MPC e com a crescente precarização do trabalho. A dimensão econômica também analisa a hiperconcentração das Plataformas Digitais (PDs), a oligopolização das Big Techs (Plataformas-raiz), o circuito de extração de valor e a intensa relação com a financeirização que juntos remetem a um novo ciclo ainda mais perverso de acumulação.
Porém, é na dimensão do trabalho e do MPC que emerge de forma mais evidente a lógica da racionalidade neoliberal de administração da vida e do cotidiano, incluindo a hiperindividualização da fábrica do sujeito-empresário, aquele que julga que se faz por si próprio (DARDOT; LAVAL, 2017). [1] Essa lógica presente no ambiente digital tem favorecido o surgimento desse “tripé do capitalismo contemporâneo”. Em síntese, a gênese do plataformismo trata da maciça digitalização, em nova etapa da reestruturação produtiva que vem dando suporte à ampliação da hegemonia financeira, sob a égide do neoliberalismo com o mercado ampliando o seu espaço na direção da vida em sociedade.
A abordagem não trata do tema – ao contrário – como superação do fordismo e nem do toyotismo, mas do convívio, ampliação e uso mais intensivo de ambos, aprofundando alguns princípios, em especial, do taylorismo: a supervisão, controle e a exploração, com o apoio das ferramentas cibernéticas e de infraestruturas tecnológicas. Através da intermediação do ambiente das plataformas digitais surgem enormes ganhos de produtividade, em especial na etapa de circulação, o que acaba ensejando não apenas as transformações no MPC, mas nas entranhas e na intensidade deste novo ciclo de acumulação.
A reestruturação produtiva na atual fase de colossal digitalização – ou transformação digital – vem sendo acompanhada de processos e usos intensivos das plataformas que se desenrolam a partir do incremento de tecnologias da informação e comunicação (TIC) com uso da internet, inicialmente fixa e depois móvel e em velocidades crescentes (5G, 6G).
Segundo o dicionário o Aurélio “plataforma” é uma superfície plana e horizontal, mais alta que a área do redor. Pode ser ainda, um programa político, ideológico e ou administrativo de um candidato a cargo eletivo (em escolha). Ambas definições se aproximam e ajudam a iniciar a compreensão sobre o fenômeno da plataformização com a substantivação do processo de intermediação exercida pelas plataformas digitais que servem de instrumento para essa superfície interligar a produção ao consumo. Trata-se, portanto, de um meio, um instrumento de intermediação.
Em síntese, as plataformas digitais (PDs) podem ser vistas, de forma simultânea, como meio de produção e/ou como meio de comunicação. Ambos interligam a produção ao consumo e se configuram como circulação dentro da tríade marxiana (produção, circulação e consumo). Como meio de comunicação vemos as PDs usando as redes digitais e as mídias sociais (Facebook, Google, Twitter, TikTok, YouTube, Facebook, Instagram, WeChat, etc.) trocando informações e extraindo dados, através de imensas infraestruturas digitais (PESSANHA, 2023), gerando relações de poder (política) e negócios que aparecem sob a forma de PDs que interligam a produção (Amazon, Alibaba, Shopee, Mercado Livre, Americanas, Via Varejo, Magalu, etc.) ao consumo final. [2]
As PDs como meio de produção movimentam-se entre o intangível (virtualidade) do digital e a materialidade da infraestrutura logística de entregas, lembrando que o abstrato do digital também prescinde de enorme e colossal infraestrutura material de comunicação entre aparelhos, redes, torres, cabos submarinos, datacenters, etc. (PESSANHA, 2023). [3]
As PDs fazem a intermediação usando o mecanismo de captura e também de envio, bidirecional, extraindo valor tanto na ida quanto na volta, na lógica do serrote que corta dos dois lados. Além da conectividade e intermediação, as PDs permitem o rastreamento da informação que junto da captura de dados permite a extração de renda que também se efetua na etapa de circulação entre a produção e o consumo.
As PDs como meio de comunicação melhor identificam potenciais consumidores de coisas e serviços demandados. Todos na condição de “usuários” das mídias sociais que articulam de forma intensa a vida na sociedade contemporânea.
Em 2023, mais de 2/3 da população do planeta se utilizavam das principais mídias sociais. Na condição de usuários eles disponibilizam seus dados que, ao serem extraídos, se transformam em commodities (metadados) e são armazenados em Big Datas e a seguir processados, a partir da orientação dos algoritmos. O uso ampliado da digitalização para além das mídias sociais, dentro do que hoje se chama de Economia de Dados, permite estimar que o volume de dados produzidos no mundo deve passar dos 33 zetabytes que estava em 2018, para 175 zetabytes em 2025, ampliando para 291 zetabytes em 2027 [4]. Algo inimaginável que demonstra o domínio da tecnologia digital como um setor transversal que como as finanças atravessa todos os demais.
As Big Techs com esse potencial e esses recursos vendem publicidade direcionada a partir da promessa de interligar os consumidores aos grupos de produtores de quase tudo no mundo contemporâneo (assunto que será tratado adiante com os três principais tipos de rendas extraídas com as PDs). Assim fica exposta a lógica da intermediação que com o uso da infraestrutura das plataformas cria as condições de reger o processo plataformização.
As PDs atuam com eficiência extraordinária para capturar os excedentes econômicos regionais/nacionais em diferentes setores econômicos (vistos também como frações do capital – PESSANHA, 2019, p. 62-69), para levá-los, no seu movimento de valorização, em direção ao andar superior das altas finanças – movimento vertical (figura 1 abaixo) – a partir da ampliação dos rendimentos (mercado de capitais e fundos), onde realizam maiores lucros e acumulação, em processos que misturam a valorização (produção real) com a capitalização (capital fictício da financeirização) no movimento que chamei de capital helicoidal (PESSANHA, 2019, p. 177-192]). [5]
As PDs não acrescentam valor em movimento, mas evitam a desvalorização na etapa de circulação da qual faz parte, quando efetiva a apropriação pela função que realiza. Daí se depreende com maior potência e clareza, a lógica da plataformização, a condição das “plataformas-raiz”, das quais dependem os aplicativos e produzem o gigantismo das Big Techs.
Não é possível compreender a lógica da plataformização sem observar a articulação entre o circuito do valor, a financeirização (fundos de investimentos e circuito financeiro global), a inovação tecnológica, o uso ampliado das PDs e a “startupização” (PESSANHA, 2020, p. 438) vistas nos dias atuais, em que a tecnologia se torna também propriedade (marcas, patentes e copyright). A tecnologia e o capital, como propriedades e como frações de classe, ampliam a captura de renda do trabalho na base da pirâmide.
Srnicek (2021) aprofundou a interpretação do capitalismo de plataformas definindo os três tipos de renda principais extraídos via plataformas-raiz. A conexão digital (transformação digital) extrai e organiza os dados na etapa de “dataficação” que é parte da etapa mais recente das mudanças decorrentes da reestruturação produtiva global e que vai resultar na mudança do MPC com a ascensão do plataformismo.
Afinal, estamos ou não diante de uma nova etapa do modo de produção capitalista (MPC)? Há ou não elementos para essa hipótese de uma nova etapa do MPC? Entendemos que sim e que essa seria, em grande parte, decorrente das alterações, inicialmente graduais, do desenvolvimento da microeletrônica e de forma acelerada nas últimas décadas, produzidas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. Uma sociedade industrial tradicional que vai passando por mudanças na produção material, organização das cidades e em paulatina transição para uma sociedade, majoritariamente de serviços, mais conectada e interligada a novos tipos de trabalho e vida em sociedade. Em síntese, uma reorganização do trabalho que contribui para o surgimento de uma espécie de “sociedade das plataformas”.
As transformações produzidas por essa nova etapa da reestruturação produtiva, centradas na chamada transformação digital, ensejam análises mais arrojadas, em que pese ganhar ainda mais importância e ressignificação com a teoria marxista da renda e do valor. As noções de capital constante (fixo), ligadas aos meios de produção (e comunicação), à propriedade, ao capital variável e, especialmente, ao trabalho e ao processo de produção seguem compondo a tríade de classes identificada por Marx: terra (propriedade) – trabalho – capital. Ganha também relevância a noção do capital dividido em frações para se compreender as alterações produzidas pela digitalização e pelas plataformas digitais no modo de produção capitalista.
A partir do contexto apresentado sobre as PDs como meio de produção e meio de comunicação, numa lógica de controle que as plataformas-raiz (Big Techs) realizam enormes extração de renda e valor tendo levado ao gigantismo das empresas de tecnologia em processos que Srnicek chamou de capitalismo de plataformas é, então, possível reposicionar a pergunta: seria o plataformismo uma nova etapa do Modo de Produção Capitalista? Em que o plataformismo se diferencia das duas etapas anteriores: fordismo e o toyotismo? Nem uma e nem outra etapa, foram totais em termos de utilização como modo de produção nos seus períodos de picos de implantação conforme se pode ver na figura abaixo.
Figura 2: Transformações no Modo de Produção Capitalista (Reprodução: Outras Palavras)
A passagem do fordismo para o toyotismo representou alterações na organização do trabalho, na hierarquia, disciplina e supervisão para uma produção sob demanda do Just-in-Time. As mudanças foram também fruto das reações da classe trabalhadora às pressões da supervisão e do controle por produtividade que ganhou corpo, em especial, após a IIª GM. Daí surge a ideia não apenas do JIT, mas o Kanban, a melhoria contínua (Kaizen), a terceirização, etc. O toyotismo não envolvia maquinaria, era muito mais a “persuasão” e novas formas de organizar o trabalho, a planta da empresa (processos e fluxos). Assim, se avançou ainda para flexibilizações, a participação, o enriquecimento de cargos, o modelo sueco da sociotécnica (Volvo), os CCQs (times), sindicalismo de empresas, a financeirização, o capitalismo flexível, mas tudo isso visou maior produtividade e admitia um convívio, mais ou menos intenso, com o taylorismo.
O fordismo se expandiu muito na utilização do tempo e do espaço e está ainda muito presente com maior ou menor grau de automação. O toyotismo desde o seu surgimento, a partir das décadas de 70/80, não chegou sequer a ser dominante, nem mesmo na indústria automobilística japonesa. O fordismo se reorganizou embaralhado à acumulação flexível e às técnicas de organização do trabalho vindas no bojo do sucesso do toyotismo, assim como ganha novos desenhos e impulsos com o aprofundamento da chamada Transformação Digital nessa nova fase da reestruturação produtiva e com o advento das plataformas.
As plataformas digitais aceleraram a flexibilidade e tornaram os processos de acumulação decorrentes de tudo isso, muito mais denso e fluido. As mudanças não se dão apenas na planta das empresas (processos e fluxos), mas na articulação do sistema como um todo. A velocidade de circulação e a fluidez das mercadorias e do capital se ampliaram de forma colossal. Vive-se numa hipermobilidade com uma “quase revolução” da etapa de circulação e da logística, reduzindo os custos de transportes e a desvalorização das mercadorias, em função do menor tempo entre a produção e o consumo. Nessa trajetória se adentrou num período com condições objetivas e materiais que Taylor e/ou Ford jamais imaginaram – ou sequer sonharam –, em termos de controle de todo o processo, desde a produção, a circulação indo até a etapa do consumo, hoje exercidos a partir da intermediação das TIC digitais.
É fato que se trata de mudanças muito aceleradas produzidas pela digitalização de quase tudo (Transformação Digital) que induzem a um deslocamento mais amplo do capitalismo, em que a hegemonia financeira também se expandiu, junto com a acumulação ainda mais flexível e ampla do dinheiro, já sob a condição de informação e registros digitais. Portanto, não se trata da superação do fordismo e nem do toyotismo, mas de um plataformismo que amplia o convívio desta nova etapa do MPC, integrando de forma ainda mais intensiva, os princípios e as características das etapas anteriores do sistema capitalista de produção.
O plataformismo faz surgir novos tipos de empresas e negócios: empresas-plataformas, empresas-aplicativos (APPs), e-commerce, marketplace (centro de compras virtuais), etc. Assim vão incorporando também novos linguajares: nuvem (armazenagem de dados), aprendizado de máquinas (machine learning-ML), robôs, etc. A característica fundamental é a infraestrutura das plataformas, similar ao que foi a linha de montagem no fordismo, fazendo a mediação (simbiose) entre a virtualidade do digital e a materialidade do real. A infraestrutura das PDs também faz a mediação das relações entre diferentes grupos de usuários, com efeitos de rede e com arquitetura central que controla as possibilidades de interação (SRNICEK, 2018). [7] [8] [9]
O plataformismo por todas essas características já descritas da economia de plataformas, aprofunda o taylorismo, a supervisão, o controle e a exploração com o apoio das ferramentas cibernéticas de intermediação do ambiente das plataformas digitais. Com a digitalização, os colossais ganhos passam o discurso de que produtividade seria também fruto da superação das imperfeições humanas, embora, elas ocorram de forma especial na etapa de circulação. Tudo isso enseja uma interpretação de que elas estariam permitindo não apenas transformações no MPC, mas no surgimento de um novo ciclo de acumulação ainda mais intenso e denso na direção do andar superior da pirâmide do capital (ARRIGHI, 2005). [10]. Rever figura 1: lógica da plataformização e o circuito do valor (valorização).
Com a intermediação realizada pelo plataformismo, o taylorismo e o fordismo reaparecem num ambiente de plataformas digitais nos controles e registros feitos pela maquinaria cibernética, fazendo com que a etapa de circulação da tríade marxiana se reduza enormemente (numa tendência em direção a zero). Articula-se o uso da comunicação virtual-digital das redes interligando-as às infraestruturas materiais de logística portuária, ferroviária, aeroportuária e rodoviária. Transporte (rastreado online) levam as mercadorias dos produtores até os consumidores finais, produzindo resultados econômicos que explicam o gigantismo das corporações de tecnologia, como nenhum outro tipo de companhia registrou antes. Assim, a chave para compreender plataformismo se situa na interface entre a “virtualidade do digital e a materialidade do real”, exatamente a etapa de circulação no interior da tríade do MPC.
Assim, o plataformismo parece ter absorvido a parte mais danosa ao trabalhador oriunda do taylorismo/fordismo que é a hierarquia, com o controle e uma supervisão quase total que passam a ser ampliados a partir do aperfeiçoamento do ambiente online, gerado pelas plataformas digitais como meio de comunicação e tudo isso se dá num patamar superior, àquilo que já se fazia o toyotismo, em termos organização e reorganização permanentes da produção. Portanto, o que surge da entrada da infraestrutura digital é algo distinto das etapas anteriores do MPC. Há uma mescla (integração) de princípios e características do fordismo e do toyotismo viabilizadas pelas PDs (como condições gerais de produção), em especial nas plataformas-raiz, agregadas e/ou interligadas às demais (plataformas, softwares ou aplicativos-APPs) nessa nova etapa do MPC, germinado pelo sistema informacional que gera o plataformismo. Por tudo isso, o plataformismo merece ser visto e analisado na perspectiva da totalidade do MPC, para além das leituras parciais, por dimensão e/ou escala, de forma fragmentada e algumas vezes superficial.
Este ensaio deixa evidente a profunda relação entre tecnologia e trabalho que historicamente são imbricados como afirma Grohmann (2020) [11], que também lembra que as tecnologias são fruto do trabalho humano e que o desenvolvimento tecnológico se refere às forças produtivas e às relações de produção. Grohmann também recorda Marx que disse que “as tecnologias são recheadas de trabalho humano” ajudando explicar o contexto do fenômeno aqui investigado.
Os processos, agentes, as classes e seus movimentos aqui analisados, a partir do expressivo e acelerado avanço da digitalização e da maior utilização das plataformas no mundo contemporâneo, partem exatamente da leitura que o trabalho humano nunca deixou de estar no centro do modo de produção capitalista. A interrogação no título sobre a existência ou não de uma nova etapa do MPC, visou estimular o desejo de debates sobre essa hipótese, embora o texto exponha uma leitura que reforça e tenta sustentar a dimensão e direção destas mudanças. Isso não foi feito por acaso, mas de forma proposital, para dialogar com os leitores, demais pesquisadores e com os trabalhadores a partir de sua visão de classe, no âmbito da discussão que se insere na temática mais geral entre tecnologia e sociedade.
Na articulação entre o rentismo financeiro e a economia real observa-se que também avança a profunda relação entre tecnologia e finanças. A tecnologia foi deixando de ser fator de produção e subiu para a superestrutura com inovação tecnológica digital e de processos (tipo plataformas, startupização, etc.) que contribui para ainda maior extração de renda e valor de várias atividades e tem levado ao gigantismo e à dominação digital das Big Techs e à hegemonia do capital financeiro lubrificado pelos fundos entre ativos reais e financeiros. Uma substituição em que os capitalistas produtivos vão deixando de investir e sendo substituídos pelos donos de ativos (fundos) que passaram a controlar ativos reais e financeiros nas várias frações do capital.
O plataformismo misturado às finanças tem gerado uma indução ainda mais forte ao consumismo em função da propaganda dirigida e focada. A inovação tecnológica e a startupização apoiadas pela hegemonia financeira dos capitais de risco ampliam e potencializam ainda mais o avanço desse processo. Os fundos de investimentos junto com as PDs financeiras foram conferindo maior potência e uma hipermobilidade ao capital. A startupização reduziu os riscos dos negócios que, em tese, explicariam as margens de lucro das empresas no capitalismo.
Há muito ainda a ser analisado entre a digitalização/plataformização e a mobilidade do capital. As PDs são instrumentos que garantem a hipermobilidade do capital entre suas frações. A aliança entre a dominação digital e a hegemonia financeiratambém expande a extração de renda em direção ao andar superior. A fluidez e hipermobilidade espacial obtidas pelo capital financeiro (fundos) através da digitalização, explica a característica intersetorial de ambos, que juntos se expandem de forma ainda mais intensa e imbricada nos tempos atuais.
As Big Techs (PDs planetárias) extraem mais valor e assim exacerbam as desigualdades de classe entre proprietários e trabalhadores e também a assimetria entre as nações, quando é possível enxergar o “deslocamento do capitalismo”. Assistimos ainda disputas intercapitalistas por maior capacidade de extrair renda, ampliar lucros e dominar num processo em que as infraestruturas das plataformas digitais e o plataformismo, como nova etapa do MPC, contribuem para ampliar e adensar a relação entre a dominação técnico-digital e a hegemonia financeira, sob a égide e a racionalidade neoliberal dos mercados, desenhando o que, junto com outros pesquisadores, tenho chamado de “tripé do capitalismo contemporâneo”.
Só a política pode conter esse processo que amplia as desigualdades, muda comportamentos e esgarça o processo civilizacional. Esforços contra-hegemônicos têm sido desenvolvidos e tentados, mas ainda com limitações para enfrentar o gigantismo do monopólio ampliado pelo capitalismo de plataformas. Espera-se que o uso coletivo do conhecimento, como bem intangível e riqueza multiplicável, possa ser adiante compartilhado e utilizado na direção do pós-capitalismo.
[1] DARDOT, P. LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boi Tempo. São Paulo, 2017.
[2] PESSANHA, R.M. Disputa no e-commerce de varejo no Brasil: entre o intangível do digital e a materialidade da infraestrutura de logística. In: Marcas da Inovação no Território, Vol. II (P.45-71). Org.: EGLER, T., Costa, A. KRAUS, L. Editora Letra Capital. Rio de Janeiro. 2020.
[3] PESSANHA, R.M. Infraestrutura digital, extrativismo Hi-Tech (ExHT) e capitalismo de plataformas: artérias digitais escancaradas da AL – Uma homenagem a Galeano. No prelo, In: As geografias da economia política da América Latina. Rio de Janeiro. 2023.
[4] GÖRGEN, James. Um Nobel contra as Big Techs. Jota em 27 fevereiro 2024. Disponível aqui.
[5] PESSANHA, R. M. A ‘indústria’ dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
[6] PESSANHA, R.M. Inovação, financeirização e startups como instrumentos e etapas do capitalismo de plataformas. In: Geografia da Inovação: Território, Redes e Finanças. (P.433-468). Editora Consequência. Rio de Janeiro. 2020.
[7] SRNICEK, Nick. Capitalismo de Plataformas. Caja Negra: Buenos Aires, 2018.
[8] SRNICEK, N. Value, rent and platform capitalism. In:Work and Labour Relations in Global Plataform Capitalism. HAIDAE, J. e KEUNE, M. Ilera/E.Elgar. 2021.
[9] SRNICEK, N. Valor, renda e capitalismo de plataforma. Revista Fronteiras – estudos midiáticos. Vol. 24 Nº 1. Janeiro-abril 2022. Disponível aqui.
[10] ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.
[11] GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. BoiTempo. São Paulo, 2020.
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E se estivermos à beira do plataformismo. Artigo de Roberto Moraes Pessanha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU