04 Dezembro 2024
"Os trabalhadores da World Central Kitchen em Gaza eram, portanto, todos pessoas confiáveis para o governo dos EUA. No entanto, foram mortos enquanto distribuíam as ajudas à população faminta. Há meses, as agências da ONU e as organizações humanitárias vêm denunciando as condições impossíveis em que estão operando em Gaza. O que também complica a situação é a decisão de Israel de não conceder vistos às ONGs", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 02-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ontem, o comissário geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, anunciou a suspensão das ajudas humanitárias para a Faixa de Gaza a partir da passagem de Kerem Shalom, ou seja, o principal ponto de entrada de itens de primeira necessidade em Gaza. Essa é a única passagem entre Israel e Gaza projetada para o transporte de mercadorias e tem sido a principal artéria para as entregas de ajudas desde que a passagem de Rafah para o Egito foi fechada em maio.
A decisão, segundo ele, foi tomada devido a uma soma de obstáculos: o cerco em de Gaza Norte, os limites impostos pelas autoridades israelenses, combinados com as decisões do governo de restringir as ajudas, o ataque de Israel à força policial comandada pelo Hamas, que anteriormente fornecia segurança pública, e a consequente falta de segurança na rota que os caminhões teriam que seguir. Há dez dias, cem caminhões foram atacados por bandos armados, e o mesmo aconteceu anteontem com uma carga menor. Lazzarini ressalta que “a responsabilidade pela proteção dos agentes humanitários e dos suprimentos é do Estado de Israel como potência ocupante”, mas essa proteção não existia e não existe, enquanto a fome avança em Gaza.
Israel não comenta a decisão da Agência, repete que está permitindo o acesso dos produtos - apesar do fato de que todas as agências e organizações humanitárias internacionais tenham soado um alarme de carestia há meses na parte norte da Faixa, que efetivamente está sitiada e isolada desde o início de outubro. A suspensão das ajudas ocorre apenas alguns dias após uma decisão semelhante da organização humanitária estadunidense World Central Kitchen de interromper suas atividades depois que um ataque aéreo israelense matou três membros de sua equipe em 30 de novembro. Isso já havia acontecido em abril, quando sete trabalhadores da Wck foram mortos em outro ataque aéreo. Então, após a onda de indignação causada pelo bombardeio de um veículo marcado como humanitário, o exército israelense definiu o incidente como um “grave erro”. Desta vez, Israel alega que uma das vítimas havia participado do ataque de 7 de outubro, uma afirmação que, mais uma vez, não é sustentada por provas. Por sua vez, a organização, por meio de sua porta-voz Roth, especifica que “todos os contratados da World Central Kitchen foram selecionados de acordo com a lista Ofac do governo dos EUA”, ou seja, a lista de pessoas, instituições e países considerados ameaças à segurança nacional. Os trabalhadores da World Central Kitchen em Gaza eram, portanto, todos pessoas confiáveis para o governo dos EUA. No entanto, foram mortos enquanto distribuíam as ajudas à população faminta.
Há meses, as agências da ONU e as organizações humanitárias vêm denunciando as condições impossíveis em que estão operando em Gaza. O que também complica a situação é a decisão de Israel de não conceder vistos às ONGs. O Haaretz revelou isso em setembro, relatando o conteúdo de uma reunião confidencial do Knesset. O motivo oficial seria a falta de meios para supervisionar os pedidos de entrada, mas as organizações acreditam que a decisão é mais uma peça em um plano para impedir que o pessoal humanitário trabalhe para sustentar a população palestina. Já em fevereiro, a Autoridade de População e Imigração de Israel recusou-se a emitir vistos de trabalho para organizações que atuam na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, citando uma reorganização em andamento do procedimento de vistos. Dezenas de pessoas, a maioria de países ocidentais, foram forçadas a deixar o trabalho ou não puderam retornar a Israel. E então, no final de outubro, seguiu-se a decisão do Knesset de banir a UNRWA em noventa dias, com consequências catastróficas para a população palestina, que depende da agência da ONU em todos os aspectos da vida cotidiana.
Enquanto Gaza Norte está efetivamente sitiada e Gaza Sul carece de alimentos e assistência médica, surge a questão mais ampla de quem administrará a Faixa se e quando os combates cessarem. Netanyahu promete que o exército permanecerá em Gaza “pelo tempo que for necessário”, sem especificar os critérios que esclareceriam os prazos, especialmente considerando as pressões dos colonos que desejam se reassentar em Gaza e que visitaram a Faixa há dez dias, escoltados pelo exército. De acordo com as agências da ONU, o caos aumentou em Gaza desde que a Cogat israelense começou a atacar os policiais que guardavam os comboios de ajudas, porque Israel considera a polícia de Gaza, gerida pelo Hamas desde 2007, como parte integrante da organização. Testemunhas e funcionários de organizações humanitárias declararam que os saques aos comboios em novembro foram obra de bandos criminosas e não de civis. O episódio mais grave ocorreu em 17 de novembro, quando dezenas de caminhões de farinha foram depredados. Centenas de homens armados atacaram os comboios, atirando para o alto ou na direção dos caminhões, espancando os motoristas e forçando-os a dirigir até bases equipadas com carrinhos com os quais descarregavam os alimentos. A natureza do saque marcou uma mudança na conduta criminosa dos bandos, que têm lucrado com as ajudas humanitárias nos últimos meses, aumentando vertiginosamente o preço dos produtos básicos.
Somente o carregamento de novembro continha 400 sacos de farinha, que hoje valem cem dólares cada em Gaza. Um funcionário das Nações Unidas - falando sob anonimato porque está em contato com a Cogat (a agência militar israelense responsável pelas ajudas humanitárias em Gaza) - disse ao La Stampa, de Dair el Balah, que cerca de um terço das ajudas que entram na Faixa é saqueada, muitas vezes sob os olhos do exército israelense, fato confirmado por outro funcionário das Nações Unidas, que disse ao The Guardian que “a maior parte dos saques ocorreu em uma zona controlada pelo exército israelense” e que os saqueadores armados “estavam a uma distância mínima de seus tanques”.
Há dez dias, Netanyahu e o novo ministro da Defesa, Israel Katz, visitaram o corredor de Netzarim, que divide a Faixa de Gaza ao meio e está sob controle israelense, e prometeram cinco milhões de dólares por refém libertado. “O Hamas não governará mais Gaza”, disse Netanyahu, que, no entanto, não explicou quem assumiria o controle da Faixa no caso de um cessar-fogo. Um funcionário israelense encarregado da questão das ajudas disse ao Haaretz que, na ausência de um programa do governo, não é possível planejar “nem a curto nem a longo prazo o destino de Gaza. Se Israel pretende ficar lá por muito tempo, terá que estabelecer mecanismos ordenados, formar equipes, designar pessoal militar e, acima de tudo, alocar orçamentos adequados para que as necessidades da população possam ser atendidas”. No entanto, nenhum desses aspectos foi abordado, enquanto no caos geral, os alimentos continuam a não entrar e as pessoas continuam a morrer de fome ou sob as bombas.
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A fome de Gaza. Artigo de Francesca Mannocchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU