O enigma venezuelano: frente a uma democracia autoritária e uma direita com inclinações fascistas, o resultado das eleições é uma incógnita. Entrevista especial com Liszt Vieira

Para o sociólogo e professor universitário, perseguido e preso na ditadura civil-militar brasileira, na Venezuela há um governo militar a quem Maduro empresta a fachada de “civil”

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 22 Agosto 2024

A Venezuela, um país complexo e prenhe de contradições, tem servido à grande imprensa, nas últimas décadas, de espantalho autoritário capaz de sintetizar todos os males do que se chama, no senso comum, de “ditadura”. As recentes eleições presidenciais são o mais novo capítulo dessa novela cujos mocinho e vilão, segundo a imprensa hegemônica, já sabemos só de ler a capa. A realidade, porém, é multifacetada e nem sempre esses papéis são claros ou unívocos. Nesta entrevista por telefone do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o sociólogo e professor universitário Liszt Vieira analisa o caso.

“Do ponto de vista eleitoral propriamente dito, Nicolás Maduro se comportou – e se comporta até agora – como se realmente tivesse perdido a eleição. Porque até o momento não apresentou as atas eleitorais”, avalia o entrevistado. “Do ponto de vista exclusivamente eleitoral, eu tenho dúvidas. E não sei se algum dia saberemos se houve ou não fraude. Porque a oposição é de extrema-direita, liderada por María Corina Machado, que assinou a Carta de Madri, que reuniu fascistas da Europa e da América Latina, como [Jair] Bolsonaro e [Javier] Milei”, complementa.

Mas a questão vai muito além da dimensão eleitoral e adentra o terreno político, cujas críticas ao tom autoritário do regime venezuelano são endereçadas a um único personagem, Maduro, que cumpre o papel de verniz civil. “Então, é um regime militar porque os militares estão no poder com uma fachada civil e eles montaram um governo autoritário. Eu não chamo de ditadura porque o governo foi eleito e ninguém provou que havia fraude, mas não é uma democracia clássica. Eu chamo de democracia autoritária, que é um título que dou ao governo da Venezuela”, pondera Vieira.

Para compreender o que está em jogo nesse intrincado tabuleiro é preciso ser mais analista que militante. “Em primeiro lugar, temos uma posição tradicional da esquerda, que acha que a eleição foi maravilhosa, que a extrema-direita está querendo derrubar o governo mais uma vez com o apoio americano. E, na segunda posição, estão os que ficaram indignados com a fraude eleitoral e não levam em conta a dimensão geopolítica. Eu faço uma análise procurando combinar os diversos cenários e selecionei três, numa perspectiva mais analítica do que militante”, propõe o entrevistado na entrevista a seguir.

Liszt Vieira (Foto: A Terra é Redonda)

Liszt Vieira é graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (1962), em Sociologia pela Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis (1977), mestre em Desenvolvimento AGrícola pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne (1977) e doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (1998). Foi deputado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (1982-1986); secretário do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (2002); presidente do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (2003-2013). Nos anos 90, foi coordenador do Fórum Global da Conferência Rio-92, do Fórum Brasileiro e do Fórum Internacional de ONGs, de 1991 a 1995.

Vieira participou ativamente do movimento estudantil nos anos 1960 e da luta armada contra a ditadura militar. Foi preso, torturado e banido do Brasil em junho de 1970, trocado, com outros companheiros, pela liberdade do embaixador alemão que havia sido sequestrado no Rio de Janeiro um mês antes, ficando no exílio por dez anos. É autor, entre outros, de Cidadania e globalização (1997), Os argonautas da cidadania (2001), A democracia resiste (2020) e A democracia reage (2022).

Confira a entrevista.

IHU – Na Venezuela, o resultado das eleições está em disputa. Maduro diz que venceu por 51,95% dos votos. Edmundo González Urrutia (Plataforma Unitária Democrática, centro-direita) alega que o vencedor foi ele. O que esse impasse revela sobre a política na atualidade?

Liszt Vieira – A Venezuela é um caso de grande complexidade política. Nós podemos abordar por vários ângulos. Primeiro, pelo ângulo exclusivamente eleitoral; segundo, pelo ângulo político geral interno e, terceiro, pelo ângulo geopolítico. Podemos até juntar essas dimensões em uma análise mais desenvolvida. Mas, para começo de conversa, é bom separarmos estes três aspectos.

Dimensão eleitoral

Do ponto de vista eleitoral propriamente dito, Nicolás Maduro se comportou como se realmente tivesse perdido a eleição. Porque até o momento não apresentou as atas eleitorais. Um governo amigo, como o do Brasil, enviou um representante, o ex-embaixador Celso Amorim, que pediu as atas, mas voltou ao Brasil sem conseguir o acesso. Enfim, do ponto de vista exclusivamente eleitoral, eu tenho dúvidas. E não sei se algum dia saberemos se houve ou não fraude. Porque a oposição é de extrema-direita, liderada por María Corina Machado, que assinou a Carta de Madri, que reuniu fascistas da Europa e da América Latina, como Bolsonaro e Milei. Ela foi barrada porque havia tentado o golpe. Lá, eles barraram; no Brasil eles prenderam o Lula sem prova nenhuma para impedir que ele fosse candidato – isso é bom para lembrar que a democracia brasileira foi muito mais autoritária do que a venezuelana nesse aspecto.
A oposição de extrema-direita não é nada confiável. Aquelas apurações que eles anunciaram não são nada confiáveis. O ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica, disse isso: não temos fonte confiável para dizer qual dos lados tem razão. Eu não sinto confiança nas fontes que foram apresentadas, nem na oficial nem na fonte da oposição em relação ao resultado eleitoral, em relação à contagem dos votos propriamente dita. Esse é um aspecto.

Não sei se algum dia saberemos se houve ou não fraude. Porque a oposição é de extrema-direita, liderada por María Corina Machado, que assinou a Carta de Madri, que reuniu fascistas da Europa e da América Latina – Liszt Vieira

Política interna: situação dramática

O segundo aspecto é a questão da política interna venezuelana, independentemente da eleição. Tradicionalmente, décadas atrás, a Venezuela era o país da América Latina com o maior Produto Interno Bruto por causa da exportação de petróleo. Mas o único produto da exportação é o petróleo, é preciso importar outros bens e produtos, de forma que somente a elite econômica tinha dinheiro para absorver essas importações. A maior parte da população vivia na miséria. Esse era o quadro do país, com a maior desigualdade social – maior ainda que a do Brasil. Era o país que tinha mais riqueza e mais pobreza.

Depois da revolução chavista, Hugo Chávez se tornou popular porque começou a fazer políticas de atendimento às necessidades sociais. Então, o povo que passava fome começou a ter acessos aos bens de primeira necessidade. Com todo o autoritarismo militar do Chávez, ele se tornou muito popular porque essas políticas atenderam às carências da população em sua maioria. Os militares chegaram ao poder, a Venezuela tem um regime militar até hoje. Tem uma fachada civil com Maduro, mas é um regime militar, pois são eles que estão no poder.

Do ponto de vista interno, a Venezuela continua sendo um país que produz e exporta um produto único, o petróleo. Como o preço do petróleo no mercado internacional caiu durante bastante tempo, isso também prejudicou a Venezuela, que ficou com menos recursos para importar. Portanto, a Venezuela tornou-se uma economia muito precária. Isso impulsionou a emigração: 20% da população da Venezuela emigrou para outros países, principalmente para o Brasil, Colômbia e Peru, porque não encontraram maneira de sobrevivência. Essa tônica caótica foi agravada pelas sanções do governo norte-americano.

Além disso, as reservas em dólar da Venezuela foram confiscadas pelo governo americano, como confiscaram a reserva da Rússia. Os Estados Unidos são a polícia do mundo, confiscam a reserva e acabou. Com isso, a situação na Venezuela ficou grave nos últimos anos. Segundo alguns economistas, a situação começou a melhorar um pouco, de um ano para cá, por uma série de circunstâncias. Mas, de modo geral, o quadro no país é de crise dramática.

Democracia autoritária

Então, é um regime militar porque os militares estão no poder com uma fachada civil e eles montaram um governo autoritário. Eu não chamo de ditadura porque o governo foi eleito e ninguém provou que havia fraude, mas não é uma democracia clássica. Eu chamo de democracia autoritária.

Além da situação econômica dramática, das penalidades econômicas impostas pelo governo americano, houve também uma gestão muito incompetente e precária por parte do governo da Venezuela. Os militares nunca foram muito competentes em matéria de administração pública e gestão econômica – essa é uma regra quase geral. A situação venezuelana é dramática do ponto de vista econômico, que independe propriamente da eleição.

O quadro eleitoral se agrava, porque já tinha uma tradição de tentativa de golpe. É só lembrar que o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se auto intitulou presidente e foi reconhecido pelo governo americano. Era uma picaretagem, um presidente sem um centímetro de território. Aquilo parecia uma história da carochinha, pois não tinha a menor base na realidade objetiva. Essa situação mostra que houve várias tentativas de golpe na Venezuela.

Por outro lado, a Venezuela ficou com fama de ser um governo de esquerda porque os militares não abriram mão do petróleo para negociar com empresas americanas. Mas o governo da Venezuela seria mesmo um governo de esquerda? Eles têm uma política econômica neoliberal e um autoritarismo bastante repressivo. Na minha opinião, não é um governo de esquerda, apenas os militares não quiseram entregar o petróleo para os americanos. Isso, para os americanos, é muito grave porque, apesar de serem os maiores produtores do mundo, como não têm autossuficiência, são também os maiores importadores de petróleo que buscam na Arábia Saudita, Canadá, Brasil, Colômbia e até mesmo, Venezuela, em menor escala.

Geopolítica: interesses no petróleo venezuelano

Os Estados Unidos têm interesses na Venezuela, quer um governo de direita com aval americano. Isso poderia ser um ponto importante de apoio para o avanço da extrema-direita no mundo. Milei na Argentina, talvez Trump nos Estados Unidos – não sabemos qual será o resultado da eleição – mesmo a França, onde a extrema-direita teve mais votos no cômputo geral, mas perdeu a eleição por causa do sistema eleitoral francês, que não é majoritário, mas distrital. Mas, para a eleição presidencial, a candidata da extrema direita, Marine Le Pen, é uma forte candidata.

A situação da extrema-direita é de avanço na Europa e nos Estados Unidos. Um governo de extrema-direita na Venezuela seria um fortíssimo ponto de apoio para impulsionar o avanço da extrema-direita em todo o mundo. Além disso, em termos de soberania e segurança nacional, é bom não esquecer que a Venezuela é vizinha do Brasil e um ponto de entrada para a Amazônia. Enfim, temos diversos aspectos geopolíticos.

Eu fiz um rápido resumo porque é uma situação complexa. Procuro evitar duas posições extremadas. A primeira, uma posição tradicional da esquerda, que acha que a eleição foi maravilhosa, que a extrema-direita está querendo derrubar o governo mais uma vez com o apoio americano. E na segunda estão os que ficaram indignados com a fraude eleitoral e não levam em conta questões de interesse geopolítico. Eu procuro levar em conta os diversos cenários e, do ponto de vista mais analítico do que militante, selecionei três dimensões.

A situação da extrema-direita é de avanço na Europa e nos Estados Unidos. Então, um governo de extrema-direita na Venezuela seria um fortíssimo ponto importante de apoio para impulsionar o avanço da extrema-direita em todo o mundo – Liszt Vieira

Soberania nacional

Agora, há outro aspecto. Pessoalmente, eu desconfio que, se Maduro tivesse vencido, ele abriria para todo mundo ver as atas. Mas ele impediu o acesso, e é ele quem deve comandar o Conselho Eleitoral Nacional – CNE. De qualquer forma, precisamos respeitar a soberania nacional. Não tem por que um país intervir em um país vizinho por achar que houve fraude na eleição. Não pode haver uma intervenção na Venezuela porque o Tribunal Eleitoral de lá decidiu que o fulano ganhou ou perdeu. Esse é um problema interno da Venezuela, de soberania nacional, os outros países têm de respeitar. Se quiser, podem romper relações diplomáticas, mas não afirmar, enquanto governo oficial ou Presidente da República, que a eleição foi honesta ou fraudada neste ou naquele país vizinho. Isso não tem sentido.

Manipulação midiática

A grande mídia defende os interesses americanos. Essa fúria da imprensa contra a Venezuela não é acompanhada de uma mesma atitude em relação à Arábia Saudita, por exemplo. A Arábia Saudita é considerada a ditadura mais sanguinária do mundo, muito raramente se vê na mídia alguma crítica em relação a esse país. Em geral, fala-se em Arábia Saudita, mas não se critica. Quando falam em Venezuela, falam na “ditadura de Maduro”, ou seja, são dois pesos e duas medidas. A Arábia Saudita é aliada das empresas americanas de petróleo e tem aliança estratégica com os EUA. Estou dando esse exemplo porque a crítica à Venezuela vem em geral de posições extremadas de direita e extrema-direita, de posições que defendem os interesses norte-americanos e não uma análise geopolítica equilibrada ou independente.

IHU – Os Estados Unidos e a União Europeia, dois players importantes no cenário global, não reconheceram a vitória de Maduro. O que isso significa e quais podem ser as implicações políticas desta postura?

Liszt Vieira – Os Estados Unidos recuaram da sua posição anterior. Não acredito em intervenção militar dos Estados Unidos, mas existe a possibilidade de reforçar mais ainda a penalidade econômica, aumentando o embargo econômico, o que os Estados Unidos sempre fazem. Há décadas eles fazem isso com Cuba, uma atitude criminosa, porque não tem sentido uma ilha pequena, pobre em recursos naturais, sofrer esse embargo econômico. O que fazem com Cuba só é feito em caso de guerra. Não acredito em nenhuma intervenção militar, porque o clima político no mundo não aponta nesse sentido, tendo em vista que os Estados Unidos estão envolvidos no apoio militar à Ucrânia em guerra com a Rússia e estão dando apoio militar a Israel, que está fazendo um massacre em Gaza, na Palestina. Mas haverá muita pressão política, vão pegar esse candidato e dizer que ele é o presidente, assim como fizeram com o Guaidó, um boneco no ar, sem base territorial e política. Isso dá alguns meses de exploração, mas depois some, porque não tem a política real, seria um presidente de fachada, como foi o Guaidó. A União Europeia pode fazer sanções econômicas, como fez o EUA, mas eu acredito que isso não é prioridade para a União Europeia, que está vivendo a guerra entre Rússia e Ucrânia, e dividida se vão ou até que ponto vão apoiar a Ucrânia. A UE está numa situação muito delicada, dependendo do apoio militar dos EUA à OTAN. Além disso, a guerra em Gaza deixou os governos europeus em uma posição ruim, pois estão calados ou apoiando Israel, o que provocou uma comoção social muito grande, com uma grande quantidade de protestos em vários países, como na Inglaterra, França, Espanha, Alemanha etc. que sustentam discursivamente o apoio a Israel e sua política de massacre do povo palestino. Por isso, não acredito que a União Europeia vá muito longe com suas sanções. Essa posição da UE tem vida curta, mas isso é um palpite, porque é impossível prever o futuro. A Venezuela exporta petróleo [e já se tornou o sexto maior fornecedor para os Estados Unidos – vide abaixo] e vende para quem quiser comprar.

Sanções estadunidenses

Os Estados Unidos, sim, eles podem aumentar as sanções, e dizer que o outro candidato é o presidente legítimo. Mas fizeram isso com o Guaidó e não deu certo. Além disso, temos que ver o resultado da eleição em novembro. Estamos em agosto e o Trump deve ter uma atitude diferente da Kamala Harris. Diferente no sentido de que o Trump será mais radical, extremista em relação à Venezuela. A questão da guerra nos EUA não é decidida pelo presidente, pois, não importa quem seja, ele não apita muito se vão entrar em guerra ou não, isso é uma decisão do complexo industrial-militar americano. Sempre foi assim. Com o Partido Democrata ou com o Partido Republicano no poder, a decisão de guerra ultrapassa o poder político do presidente. O presidente tende a concordar com as decisões estratégicas do complexo industrial-militar. A diferença será na intensidade e no tom. Trump vai estimular guerra civil talvez até invasões, ele é imprevisível. Ele vai apoiar a extrema-direita no mundo inteiro, aqui no Brasil, Bolsonaro, na Argentina, Milei e na Europa. Uma coisa que muita gente ainda não percebeu é que ele é aliado do Putin, tem interesses comuns, uma aliança tácita. Ele vai retirar o apoio à Ucrânia e vai acabar com essa guerra.

Trump ganhando, ele vai retirar o apoio militar e a Ucrânia terá que fazer um acordo com a Rússia imediatamente e vai aumentar o apoio militar a Israel para compensar. A razão disso é que tanto o Putin quanto o Trump querem enfraquecer a Europa. Trump é isolacionista nesse aspecto. Ele deve acabar logo com essa guerra, deverá fazer um discurso político qualquer retirando-se da guerra em nome da paz e depois aumenta o apoio militar a Israel para aumentar o peso político israelense no Oriente Médio. É difícil prever o que Trump vai fazer. Essa previsão é em relação à Ucrânia, mas, quanto ao restante do mundo, se ele vai fazer uma loucura com a China, ninguém sabe, porque ele é completamente fora dos padrões tradicionais.

IHU – A Venezuela é o país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo e a iminente guerra no Oriente Médio pode tornar o acesso a essa fonte de energia mais escasso. Isto posto, qual o interesse geopolítico global sobre esta eleição?

Liszt Vieira – O governo de Israel quer a guerra, porque se acabar a guerra o atual governo cairá. Portanto, Benjamin Netanyahu vai sempre estimular o incrementeo da guerra, está sempre aumentando a ofensiva militar em Gaza, ataca o território do Irã, que não está em guerra, já bombardeou o consulado do Irã na Síria. Ou seja, a atitude do governo de Israel é beligerante, ele persegue, alimenta e estimula a guerra para sobreviver.

Agora, até que ponto os Estados Unidos vão acompanhar... tem seus limites. Houve uma votação na ONU em que os Estados Unidos se abstiveram, porque mandou Israel parar com a ofensiva em um determinado momento e não parou, continuou matando civis. Já mataram uns 40 mil civis palestinos, sendo 15 mil crianças, segundo as últimas estatísticas. Isso repercutiu mal para Israel e para os países que o apoiam. Esses dois focos de guerra: Palestina e Israel, Ucrânia e Rússia, são dois focos prioritários em relação à Venezuela.
Os Estados Unidos, como é vizinho, vai fazer grande pressão, não acredito em grandes medidas. Agora, dependerá de quem for eleito e eu não posso prever, porque as pesquisas indicam, até o momento, que a situação está empatada.

IHU – O que caracteriza a Venezuela como uma “democracia autoritária” e por que não é uma ditadura?

Liszt Vieira – O governo foi eleito e não ficou provado que houve fraude. Muitos candidatos quando perdem alegam fraude: Trump fez isso, o Bolsonaro também. Então, alguém perder e dizer que houve fraude é comum.

Eu não vou chamar de ditadura porque o governo foi eleito, mas não é uma democracia que respeita os direitos da cidadania, os direitos humanos, porque há muitas prisões e denúncias até de tortura. Essas denúncias também têm que ser comprovadas, porque não sabemos até que ponto são verdadeiras. Existem prisões violando os direitos de cidadania das pessoas. E aí nós entramos na questão da falta de informação. Há muitas denúncias nesse sentido. É um governo autoritário, mas que está com uma fachada civil. Por isso não chamo de ditadura. Até que ponto essa eleição foi fraudada ou não? Estou me referindo à eleição anterior, que elegeu Maduro, porque o chavismo tinha uma base popular.

Faço um comparativo com [Juan Domingo] Perón, que tinha um enorme apoio popular, porque aumentou o salário, deu vantagens para a maioria dos trabalhadores argentinos e os sindicatos peronistas acabaram virando instrumentos de autoritarismo, com sérias ameaças políticas à oposição na época. Existe aquele “homem forte” de Perón, depois que ele morreu, José López Rega, que era chamado de Hood Robin, que é Robin Hood ao contrário, que tirava dos pobres para dar para os ricos. Se surgia um líder operário autônomo, independente, ele mandava matar. O peronismo na Argentina esteve muitas vezes no poder, mas ninguém disse que era uma ditadura, porque o presidente era eleito. Fazendo um parâmetro com Perón e os governos que se sucederam depois da morte dele e da Isabelita Perón, eles eram eleitos, mas tinham práticas de mandar torturar e matar. Da mesma maneira, o governo da Venezuela, não podemos chamar de ditadura. Eu chamo de democracia autoritária porque não tem provas que na última eleição houve fraude, como agora não há provas, mas denúncias. Como que eu vou saber se o Conselho Eleitoral, que recolheu os votos, fraudou não fraudou? Eu fico junto com o Mujica: não sei, não temos fontes confiáveis.

Tem um aspecto que acho importante e que as pessoas não estão dando o devido valor. O governo da Venezuela proibiu os emigrantes de votarem e todos iam votar contra ele, o que fortalece a hipótese de vitória do Maduro. Porque os emigrantes, que são cerca de 20% da população [dos 21 milhões de eleitores que constam do Cartório Eleitoral, há 4 milhões e meio de pessoas que estão no exterior], foram proibidos de votar e isso favoreceu o Maduro. Do ponto de vista do campo das possibilidades, a vitória de Maduro é possível, está no campo das possibilidades, principalmente porque ele barrou milhões de votos contra ele. Não posso afirmar nem uma coisa nem outra com relação ao resultado eleitoral.

IHU – Qual é o espaço da oposição na política venezuelana? Como é a composição do parlamento e dos governos locais? Qual o espaço para posições divergentes ao atual governo?

Liszt Vieira – Na última eleição parlamentar [2020] a oposição ganhou, teve mais votos que os governistas e ninguém falou em fraude. Isso é um indício que a oposição poderia ter vencido essa eleição agora. Agora, sabemos muito bem a eleição presidencial é uma coisa e a parlamentar é outra. O Brasil é um ótimo exemplo: o Lula ganhou a eleição presidencial e na eleição parlamentar a maioria é de direita. O fato de eles terem ganhado a eleição há alguns anos não significa que teriam vencido a atual eleição presidencial, pois são aspectos diferentes. O que ocorre no Brasil não ocorre em outros países. No México, Claudia Sheinbaum foi eleita presidente e ganhou com maioria do parlamento e do congresso, que são membros do seu partido. Isso de um presidente governar e outros partidos controlarem o parlamento é um problema enorme no Brasil.

IHU – Aliás, como todas estas questões atinentes à eleição venezuelana impactam na esquerda da América-latina? Contribui ou prejudica esse espectro político?

Liszt Vieira – Já impactou. A esquerda está dividida. Há aqueles que denunciam o imperialismo americano e defendem Maduro, não estão preocupados se houve ou não fraude, tudo que é contra o imperialismo americano, eles apoiam. A outra posição na esquerda é a que respeita os direitos humanos e a democracia e, portanto, não apoia qualquer eleição fraudulenta. Eu resumi em dois polos, mas há muitas nuances, posições intermediárias. Mas a esquerda ficou dividida entre as duas posições: apoiar ou negar a eleição de Maduro.
A direita, mesmo que a eleição de Maduro fosse legítima, jamais a reconheceria. Porque a direita não está preocupada com a democracia: onde ela puder, vai implantar uma ditadura.

O problema lá é que os militares não querem ficar sem o aerarium do petróleo, não querem abrir mão de uma fonte da riqueza e poder. Isso para a direita e extrema-direita, ligadas aos interesses americanos, é inaceitável, o que inviabiliza um acordo.

IHU – Como o senhor avalia a cobertura da imprensa sobre as eleições na Venezuela?

Liszt Vieira – A cobertura da grande imprensa é muito ruim, porque ela tem uma posição partidarista a priori. Em princípio, ela é contra a Venezuela, era contra antes, durante e depois. Ou seja, a Venezuela é sempre demonizada, mesmo antes da eleição. No fundo está o petróleo e o ouro, que são as riquezas venezuelanas ambicionadas pelo governo americano, além do interesse estratégico do ponto de vista geopolítico. De modo geral, a grande imprensa defende interesses da grande economia capitalista, não necessariamente só dos Estados Unidos.

Posso dar outro exemplo, a questão da taxa de juros: o Brasil tem a maior taxa de juros do mundo. A inflação é 4% e a taxa de juros deveria ser 5%, mas é mais de 10%, mais que o dobro. Em nenhum país do mundo a taxa de juros é mais do que o dobro da inflação, isso não existe. No Brasil, a imprensa apoia isso como se fosse um dogma e se alguém critica, como o Lula tem criticado, isso é atacado. Ou seja, a grande imprensa defende os interesses do mercado financeiro, dos grandes bancos. Como se isso fosse uma verdade científica.

A grande imprensa brasileira, em relação à Venezuela, sempre teve uma posição crítica e jamais iria reconhecer uma vitória do Maduro. Volto a dizer que, na falta de dados confiáveis, é difícil saber se houve ou não fraude e nem sei se algum dia saberemos. Mas a grande imprensa, mesmo que fosse comprovada a vitória do Maduro, jamais reconheceria.

IHU – A repressão do governo e o impasse vão alimentar os reacionários e a extrema-direita?

Liszt Vieira – Sim, é claro. Mas aí também entra a questão de falta de informações. Tem muita gente fazendo manifestações de quebra-quebra e um governo tem de colocar a ordem de qualquer maneira. Por outro lado, podem estar prendendo manifestações políticas legítimas e pacíficas. Já prenderam muitas pessoas, mas não sei se foram manifestações pacíficas ou foram quebra-quebra. Não vejo com bons olhos a prisão de milhares de pessoas, mas também não sei se as informações que li são confiáveis. Faltam informações credíveis e isso dificulta uma opinião definitiva.

 

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