15 Agosto 2024
“A hipocrisia ocidental fabrica terroristas; a hipocrisia de esquerda fabrica imperialistas e populistas de direita. Ambas são em parte responsáveis pela tendência autoritária e neofascista que se impõe em nível global”, escreve Santiago Alba Rico, filósofo e escritor espanhol, em artigo publicado por Público, 14-08-2024. A tradução é do Cepat.
Há poucos dias, o jornalista argentino Pablo Stefanoni, um dos mais finos e lúcidos analistas da América Latina, fez uma postagem tão simples quanto categórica: “A invasão da Ucrânia é uma guerra de agressão. Na Venezuela, não há Estado de direito e o resultado oficial não é credível. Em Gaza, Israel está cometendo um massacre espantoso contra a população civil. A partir daí, é possível e deve-se complexificar”.
Há um certo setor da esquerda que, ao contrário, começa complexificando os princípios e acaba simplificando os alinhamentos. Há um certo setor da esquerda - ou seja - que segue justificando, com ou sem ambiguidades, a invasão russa da Ucrânia; que se mostra escandalizado com o genocídio israelense, mas defende Bashar al-Assad; e que, cego às fundadas suspeitas de fraude na Venezuela e indiferente à repressão desencadeada pelo governo, denuncia um golpe de Estado munido de fora contra o sempre democrático e sempre anti-imperialista Nicolás Maduro.
Enquanto Brasil, Colômbia e México reivindicam as atas ocultadas e tentam a mediação; enquanto a própria esquerda venezuelana, nada complacente com Corina Machado e Edmundo González, emite um comunicado exigindo de Maduro respeito à democracia, outro manifesto, acompanhado de trezentas assinaturas (entre elas, a de Pérez Esquivel, Manuel Zelaya e Evo Morales), denuncia uma “operação desestabilizadora do imperialismo”, identifica os protestos duramente reprimidos (mais de 2.000 detidos, segundo o próprio governo) como uma manobra orientada a “justificar uma intervenção estrangeira” e apela a “todas as forças democráticas da região e à comunidade internacional para que denunciem, repudiem e rejeitem energicamente as tentativas de golpe de Estado contra a irmã República Bolivariana da Venezuela”.
Cabe destacar que entre os signatários espanhóis há membros pouco notórios do Podemos e do PCE; e entre as organizações mencionadas, minúsculas e sem qualquer relevância, figuram um autodenominado movimento de solidariedade ao povo russo ou, como tal, a Putin e às suas políticas imperialistas, e um chamado Movimento de Apoio à Síria ou, como tal, de apoio a Bashar al-Assad e seus crimes bestiais contra o povo sírio.
Após sua postagem, o citado Pablo Stefanoni escreveu um artigo com um título expressivo: A espinhosa relação da esquerda com a Venezuela. Nele descreve as etapas emocionais da relação da esquerda mundial com o chavismo e com o seu projeto político: primeiro, a desconfiança, depois, o entusiasmo, por fim, a decepção - diz - nem sempre explicitada.
Nem toda a esquerda seguiu este caminho. Uma parte não insignificante, que eu de chamo de “estalibã”, impermeável às mudanças geopolíticas globais e às derivas autoritárias locais, mantém a sua adesão incondicional a um regime que, como bem indica José Natanson, diretor do Le Monde Diplomatique para o Cone Sul, deixou de ser democrático em 2015, quando a oposição venceu as eleições legislativas e Maduro inabilitou o Parlamento escolhido pelas urnas.
Pessoalmente, reconheço-me na descrição de Stefanoni: primeiro, desconfiei e depois me entusiasmei, mas a minha decepção não esperou o ano de 2015. Quatro anos antes, em 2011, as revoluções árabes revelaram os limites éticos e ideológicos dos governos do chamado “ciclo progressista latino-americano”. Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua não só não se solidarizaram com os povos que se levantavam pacificamente contra a miséria e o terror político, como também - em parte por ignorância, em parte por pragmatismo interessado, em parte por inércias geoestratégicas do século XX - apoiaram explicitamente os ditadores e deixaram o campo aberto a todas as contrarrevoluções, locais, islamistas e internacionais, que frustraram tragicamente as revoltas.
Os governos “progressistas” da América Latina, apoiados em sua retórica anticapitalista e anti-imperialista, acabaram absorvendo, a partir da Rússia e do Irã, as posições da esquerda mundial no momento histórico, ao mesmo tempo mágico e dramático, em que os povos da região, ainda presos na armadilha do pós-guerra mundial, destroçavam para sempre o marco fóssil da Guerra Fria, com as suas reivindicações democráticas.
Foi especialmente dolorosa a posição no caso da Síria, cujo monstruoso tirano foi visitado, justificado, elogiado e encorajado enquanto atirava, torturava e fazia seus cidadãos desaparecerem. Nunca conseguirei esquecer, por exemplo, as declarações de Nicolás Maduro e Evo Morales, depois de em agosto de 2013 Bashar al-Assad utilizar armas químicas contra a sua própria população, em Ghouta, negando a responsabilidade do regime e denunciando uma intervenção estadunidense que nunca aconteceu (enquanto silenciavam diante da intervenção da Rússia, do Irã e do Hezbollah).
O ruim do princípio “os inimigos de meus inimigos são meus amigos” é que acaba colocando os povos do mundo e seus anseios por justiça nas mãos de seus inimigos. Da mesma forma que é muito difícil acreditar nos Estados Unidos quando falam de democracia e Direitos Humanos na Ucrânia, enquanto sacrificam 40.000 palestinos em Gaza, também é muito difícil acreditar naqueles que falam de anti-imperialismo na América Latina ou de violação do Direito Internacional na Palestina, enquanto apoiam Putin na Ucrânia e Bashar al-Assad na Síria. A hipocrisia ocidental fabrica terroristas; a hipocrisia de esquerda fabrica imperialistas e populistas de direita. Ambas são em parte responsáveis pela tendência autoritária e neofascista que se impõe em nível global.
A questão não é a Venezuela. A questão é a democracia. A maior parte das pessoas não acredita hoje na democracia, e isso inclui este setor da esquerda que, entre outras causas ruins, apoia uma fraude eleitoral na Venezuela em nome do “anti-imperialismo” e da “verdadeira democracia”.
É atribuída ao presidente Roosevelt a frase que definiu a política externa estadunidense por décadas: “é um filho da puta, mas é nosso filho da puta”. Não é que os Estados Unidos gostassem de Somoza, Pinochet e Marcos, para citar três dos cem ditadores que Washington elevou ao poder e apoiou no século XX, é que eram úteis às suas ambições de hegemonia internacional.
Uma parte da esquerda segue esse mesmo jogo, mas com muito menos poder, porque a URSS nem existe mais. E no pior de todos os mundos possíveis, pois contra a democracia outros têm muito mais recursos e muito mais adeptos. Há uma esquerda, com efeito, que pensa nos mesmos termos: o “nosso” filho da puta, “nosso” ditador, “nosso” pequeno genocida, “nosso” carniceiro de reserva, “nosso” aiatolá emergencial, convencida de que todos os males do mundo provêm dos Estados Unidos e que, frente a seu domínio hipócrita e fragilizado, “nossos” filhos da puta e “nossos” pequenos genocidas estão servindo a causa da libertação humana.
Nós, que nos entusiasmamos com a constituição de Chávez no início do século XXI, fomos levados pela esperança de que, após a morte de Allende, ainda era possível a fusão entre democracia e socialismo. Hoje, em um mundo em que há muito mais anticomunistas do que comunistas, em que as instituições democráticas viram pó, em que o lawfare, a violência e o rancor político relegitimam o golpe de Estado e desprestigiam os direitos humanos, é preciso tratar com cuidado as poucas formalidades que ainda nos protegem da barbárie. Se a esquerda não é democrática, então, não é de esquerda.
Há poucos dias, o diretor da Escola de Frankfurt, Stephan Lessenich, refletia sobre a “semiperiferização” da Europa e dos Estados Unidos na economia e na política mundiais. Existe uma esquerda que realmente acredita que a “decadência do Ocidente” é o limiar do fim do capitalismo, do imperialismo e da tirania? Existe uma esquerda que verdadeiramente acredita que o contrário de “mau” é “bom”?
Lessenich não relacionava esta “semiperiferização” do Ocidente com qualquer transformação libertadora mundial, com qualquer novo socialismo redentor. Ele a relacionava com “um capitalismo muito mais violento”. Não esqueçamos: não há nada além de capitalismo lá fora; no momento, não há nenhum fora. Enquanto tentamos imaginar e construir um, será que é necessário acreditar que o capitalismo chinês, o indiano, o russo e o iraniano são o não capitalismo que sonhávamos no século XX?
Contra o capitalismo autoritário global que desponta entre os farrapos da Europa, a esquerda deveria parar de jogar o jogo dos próximos vencedores (que serão os nossos próximos verdugos). Nossas opções são pequenas, é verdade, mas passam por proteger a contragosto as instituições que os nossos próprios dirigentes muitas vezes contribuem para degradar.
Na América, quero dizer, será necessário apoiar Lula, Boric, Petro, Claudia Sheinbaum, mas também Kamala Harris; e nunca Milei, Trump, Ortega e Maduro, quatro versões da mesma medusa global. Na Europa, será necessário apoiar o governo de coalizão de Sánchez, a Frente Popular Francesa, a aliança verde-vermelha sueca, e não Putin, Orbán e Le Pen, verdadeiros escavadores da “decadência europeia”.
O problema de Maduro e da Venezuela não é o dano que estão fazendo a um socialismo que nunca existiu, mas o que estão fazendo à democracia em um mundo em que cada novo arranhão na pele de nossas instituições democráticas de merda não abre caminho para a verdadeira democracia e o socialismo, mas para um capitalismo mais violento e uma ordem política menos liberal. Parece mentira que a esquerda presumida anticapitalista e anti-imperialista esteja buscando acelerar a transição para um capitalismo mais selvagem e para novas formas de tirania mundial.
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Esquerda e democracia. Artigo de Santiago Alba Rico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU