19 Agosto 2024
Na noite de 3 de agosto, no extremo norte da Sicília, perto de Capo Peloro, o Horcynus Festival realizou um diálogo com Martin Scorsese, conectado de sua casa em Nova York, e o padre Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação do Vaticano, presente no palco.
A entrevista foi realizada e editada por Franco Jannuzzi, Gaetano Giunta e Scilli Piraino, publicada por Avvenire, 15-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A ocasião foi a apresentação do livro Dialoghi sulla fede (Diálogos sobre a fé, publicado pela editora La nave di Teseo), no qual o diretor e o jesuíta traduzem seu diálogo sobre a vida, a fé e o cinema, que dura há mais de oito anos. A conversa foi animada por Gaetano Giunta e Scilli Piraino, da Fundação Messina, e por Franco Jannuzzi, diretor artístico do festival, que fizeram suas perguntas a Scorsese e Spadaro. Reproduzimos o diálogo que aconteceu na praia de Caribdis, em frente a Cila.
O livro tem como título Diálogos sobre a fé. Senhor Scorsese, qual é a sua relação com a fé? Como foi sua experiência com a fé desde garoto até hoje?
Martin Scorsese - Tenho sido confrontado com a fé desde criança. Meus pais não eram realmente praticantes, mas quando me mudei para a cidade de Nova York, na zona ítalo-estadunidense de Little Italy, fui matriculado em uma escola primária das Irmãs da Caridade. Eu tinha sete ou oito anos de idade. A área onde morávamos era um lugar difícil: a Third Avenue, conhecida como The Bowery. Hoje em dia ela é realmente elegante, mas na época era conhecida como “a milha do diabo”. A Mulberry Street, que ficava à nossa esquerda - Bovery ficava à nossa direita - era conhecida como “a milha dos assassinatos”. Meus pais se esforçaram muito para tentar levar uma vida digna, mas lá estávamos nós, no meio de tudo isso, e o único lugar em que eu realmente conseguia encontrar um refúgio, uma sensação de paz e proteção, era dentro da Catedral, hoje chamada Old Saint Patrick.
Crescendo nas ruas, comecei a perceber que ter fé não era algo para ser vivido apenas dentro da igreja: você não pode ter fé dentro da igreja, dentro do prédio, e depois, quando sai para as ruas, é diferente. Não é assim: tem de ser vivida na vida cotidiana. Você tem de trabalhar na imitação de Cristo fora do perímetro da igreja. Pois é isso, eu vivia em tensão entre a rua e a igreja. Eu me perguntava: como é possível viver a fé em um mundo tão conflituoso, feito de violência e tensões? Então, aprendi o que é a fé, depois a perdi, depois duvidei, depois voltei à fé. Hoje, olhando para trás em minha vida, admito que recebi a dádiva de saber dirigir filmes e também a dádiva de poder encontrar fé no que faço. É um dom de Deus. E percebo que é um dom poderoso porque, por meio dos filmes, se pode tocar a sensibilidade de muitas pessoas.
Ultimamente, depois de um período de mais de 30 anos, ou talvez mais, comecei a entender que minha fé é mais do que uma “convicção” na fé: é uma “confiança” na fé. Tenho confiança de ter fé. Há dúvidas, mas a minha tem sido uma busca constante, uma tentativa constante de viver com fé. Sua onda lhe acompanha durante o dia, no quarto escuro onde você está tentando acender a luz: é uma questão de confiança. Quando eu era garoto, havia me acomodado aos rituais na igreja, mas não bastava: entendi que a chave da fé está fora do prédio. A chave é considerar a fé como a força mais importante que guia a vida. Fora, não dentro.
Padre Spadaro, o que mais o impressionou na maneira de Martin olhar a realidade na sua arte cinematográfica?
Antonio Spadaro - O que procurei em minha conversa com Martin foi entender como se formou seu olhar de homem e de cineasta. Foi uma aventura extraordinária. Nós nos conhecemos há oito anos e, durante esse tempo a nossa conversa me marcou profundamente na maneira de olhar a realidade e também na minha vida espiritual. Ao sair de sua casa, especialmente à noite, costeando o Central Park, várias vezes percebi o desejo de meditar sobre as coisas que tínhamos conversado, sobre algumas de suas intuições que tinham me impressionado.
Ele nasceu em Little Italy, na Elisabeth Street, onde havia uma vida violenta nas ruas e ele era um garoto inquieto que queria sair para as ruas com outros garotos. Acabou de dizer isso. Mas ele sofria de asma e, por isso, podia ficar na rua, mas só até certo ponto. Muitas vezes olhava a realidade da rua a partir da sacada porque tinha dificuldade para respirar e não podia sair. Tinha falta de ar. E isso, como ele mesmo diz, respondendo a uma pergunta minha no livro, o protegeu de uma atitude de valentão, de uma forma de “masculinidade tóxica”. Uma pessoa que ama a realidade, ama a rua e olha para a realidade pela janela, naturalmente forma seu olhar como uma câmera, gera um “olho cinematográfico”.
Portanto, aqui estão as fontes de seu olhar: a rua e a janela. Além disso, frequentava a igreja, era coroinha, aliás, até entrou no seminário e depois decidiu sair, percebeu que não era o seu caminho. Sua experiência como coroinha lhe permitiu entrar em contato com o mistério da missa. Uma coisa que me impressionou muito foi o fato de que, quando criança, ele entrava na igreja, havia missa, havia o corpo e o sangue de Cristo. Depois, quando a missa terminava, ele saía para a rua e percebia que nada havia mudado. E se perguntava: “como é possível que aqui está o sangue e o corpo de Cristo e no mundo nada tenha mudado? Trata-se de uma intuição mística, do tipo que uma criança pode ter, mas muito forte. Então ele amadurece a convicção de que “você não compensa seus pecados na igreja”, como ouvimos em seu filme Caminhos Perigosos: “A transubstanciação também deve acontecer na rua”, ele me disse.
Sua visão se forma à luz de um grande mistério que ele percebe como tal, e no confronto direto com a rua, onde há violência. Padres e gângsteres moldaram seu olhar. Esse contraste gigantesco o formou profundamente: a tensão entre a beleza da liturgia e a violência da rua. E essa tensão desenvolveu o imaginário de seus filmes, bem como sua visão da vida. Martin me disse isso, também citando Marilynne Robinson, uma das maiores escritoras estadunidenses vivas, sobre quem ele está trabalhando em um filme: “Juntos somos brilhantemente criativos e brilhantemente destrutivos”.
Senhor diretor, o tema da violência, que encontramos com frequência em seus filmes, esteve presente na vida de muitos artistas. No livro, por exemplo, é citado Dostoievski. Por que essa presença da violência em seus filmes? É possível falar da violência sem mostrá-la de maneira explícita?
Martin Scorsese - Como eu já disse, cresci em um contexto de violência, mesmo que não a tenha vivenciado plenamente. Eu estava constantemente ciente de que estava ali. Era um fator constante, uma coisa séria. E, portanto, nunca devia ser encarada com leveza. Diante da violência, questionava-me sobre minha própria natureza humana. Que diabos somos? Somos fundamentalmente bons ou maus? Somos seres capazes de amor ou capazes de violência? E também considerava a raiva, a autodefesa, o egoísmo, a intolerância, a raiva e o ódio.
Tive que conviver com uma sensação generalizada de violência e, portanto, também experimentando aquela excitação típica que acompanha a violência. Sim, há uma sensação de excitação na violência, há um elemento de sedução. E você o experimenta até entender que não é a maneira correta de viver. Em um filme, em um romance, em uma pintura, é preciso enfrentá-la diretamente, explicitamente, para entender sua sedução. Caso contrário, se você não a entende, não faz com que seja entendida. Não pode ser tratada apenas por meio de um artifício artístico, de forma grotesca, para poder talvez dar uma risada e ir em frente. A violência é algo que deve ser explorado com seriedade. Acho que é preciso entender, que a violência faz parte de nossa natureza. Aqueles que não estão acostumados a considerá-la como parte de si mesmos podem ficar chocados quando a descobrem. É preciso confrontar-se com a violência. No início, eu não sabia como fazer, mas sentia que nos filmes eu tinha que mostrá-la como é, de forma direta e crua. Eu acrescentaria que, às vezes, também percebi e mostrei um certo aspecto humorístico, como, por exemplo, em Os Bons Companheiros.
Vi que às vezes as pessoas se comportam realmente mal, mas outras vezes têm muita compaixão e amor pelos outros. A fé nos ajuda a entender que podemos evoluir para criaturas mais inclinadas a serem compassivas e amorosas, em vez de raivosas e violentas. E isso deve ser demonstrado com as ações, não com as palavras.
O Papa Francisco disse que “quando a uma pessoa falta poesia, sua alma capenga”. Em sua opinião, Sr. Scorsese, existe uma relação entre arte e busca espiritual? No livro de diálogos com o padre Spadaro, o senhor diz que a arte e o cinema são uma tentativa de dar sentido à existência. No livro, também se fala sobre a graça. O que é a graça? O que significa falar sobre a graça em um mundo dominado pelo racionalismo econômico baseado em suposições de perfeito egoísmo?
Martin Scorsese - Sim, acredito que ter o dom de poder criar arte seja algo espiritual. Acredito que é tentar dar forma à beleza do mundo que Deus nos deu, sem nunca excluir os aspectos mais complexos e difíceis da vida. O próprio ato da criação é uma imitação da ação de Deus e, portanto, nos permite, de certa forma, estar perto Dele. Se você recebeu a graça de ter a habilidade de fazer arte - que às vezes também é um tormento - ou a bênção de criar algo a partir da vida ao seu redor, isso certamente é um fato espiritual. Mesmo quando estou trabalhando, quando estou fazendo um filme ou um comercial, o trabalho para mim é como uma oração, porque estou fazendo algo para o qual fui criado por Deus. É por isso que, para mim, um filme não é apenas um filme, mas uma honesta exploração da existência, uma exploração de nossa alma. Aprendo a ser uma pessoa melhor enquanto trabalho em um filme e, ao fazer isso, o filme expressa esse desejo, esse meu desejo de me tornar melhor. Se, ao criar e assistir ao filme, a pessoa alcança uma paz interior, isso é uma graça. Não sei de que outra forma a chamar, porque tive muitas experiências pessoais desse tipo em minha vida.
Voltemos aos personagens dos filmes de Martin Scorsese. Padre Spadaro, o que mais o impressionou nesses personagens?
Antonio Spadaro - Nos filmes de Scorsese, o que mais me impressiona constantemente é a ambiguidade dos personagens, no sentido de que ele, na maioria das vezes, não pinta o mundo em preto e branco, onde você sempre sabe onde está o bem e onde está o mal. Você vê um filme e sua consciência sempre entra em conflito consigo mesma: você nunca consegue relaxar e assistir a uma obra de Martin Scorsese e sair tranquilo. Assistir a um de seus filmes é uma ginástica do espírito, do conhecimento. Vou dar um exemplo, o protagonista de Taxi Driver comete um massacre, mas também se apaixona e quer salvar uma garota que está em uma rede de prostituição. Por um lado, se vê um assassino, pelo outro, se vê a delicadeza do personagem e isso me deixa impressionado. A consciência não fica tranquila: se identifica um pouco com o personagem, mas também sente repulsa. A condenação e a ternura andam de mãos dadas.
Outro exemplo clamoroso é Assassinos da Lua das Flores, três horas e vinte de agonia espiritual, por assim dizer. Ernest é um jovem rapaz que se apaixona por uma garota indígena e se casa com ela por amor. Mas, por outro lado, seu tio quer que ele se case com ela por dinheiro. Essas duas dimensões se misturam, de modo que Ernest acaba envenenando lentamente sua esposa para ficar com a herança, mas fica claro que ele a ama. Ele a ama e a envenena, e ambas as situações são verdadeiras. Essa tensão atinge a apoteose quando ele chega a colocar uma dose de veneno no copo de uísque e ele também o bebe. É como se ele estivesse comungando: é um gesto eucarístico. A consciência está sempre se atormentando. Por um lado, sente-se que Ernest é um rapaz um tanto ingênuo, bom, capaz de amar, mas dentro dele há uma monstruosidade que emerge naturalmente.
O mesmo acontece em Silêncio, onde é contada a história dos jesuítas no Japão. O padre Ferreira chega ao ponto de abjurar sua fé. O padre Rodrigues não quer e preferiria ser martirizado, mas é obrigado a fazê-lo para salvar a vida dos cristãos. Um abjura e o outro também. Rodriguez será chamado pelo próprio Cristo para pisar em seu rosto para libertar os outros. Essa tensão contínua entre bem e mal, certo e errado, envolve completamente o espectador, o domina, e isso encontra uma explicação em uma expressão que Martin usa em nosso livro, quando distingue entre o que é problema e o que é mistério: no problema há uma resposta que esgota o problema, no mistério a resposta nunca esgota o mistério.
Senhor Scorsese, no livro, é afirmado que, depois de ver "O Evangelho Segundo Mateus", ficou profundamente impressionado. Queria fazer um filme sobre Jesus, mas desistiu justamente porque o filme de Pasolini havia sido lançado. Em seguida, fez A Última Tentação de Cristo, depois Silêncio, e hoje está preparando um novo filme sobre Jesus. Quem é Jesus para o senhor? Do que nasce essa necessidade de contar e pesquisar essa figura, de voltar a esse personagem?
Martin Scorsese - Quando vi O Evangelho segundo Mateus, de Pasolini, fiquei comovido e admirado: é uma obra de arte maravilhosa. Naquela época, eu ainda era muito jovem e ainda me apegava a uma visão infantil da fé, e foi aí que o trauma da mudança começou. Minha ideia era fazer uma versão dos Evangelhos, ou um dos Evangelhos, e ambientá-la em Manhattan em 1960. Isso foi quando eu tinha 17 ou 18 anos. Quando o filme de Pasolini foi lançado, entendi as características do cinema autêntico. Tudo isso me dissuadiu de fazer o filme que eu pretendia fazer. Eu tinha que encontrar meu próprio caminho, que na época não conhecia. Significava viver minha vida para decidir como abordar a história de Jesus, não necessariamente aderindo completamente aos Evangelhos. Eu queria romancear a história de Jesus. Eu me perguntei: o que estou realmente procurando? E encontrei a resposta no livro A Última Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis. Eu a encontrei na unidade do espírito e da carne, do plenamente humano e do plenamente divino. Assim, especialmente na década de 1970 e no início da década de 1980, achei que se pudesse explorar, que se pudesse tentar entrar em outra maneira de pensar sobre Jesus. Para mim, essa é a questão: quem é Jesus? Graças ao estilo, Pasolini tornou Jesus imediato, mas eu queria torná-lo imediato além do estilo.
Então, para mim, essa teria sido uma nova maneira de olhar para Jesus, em contraste com o que estava acontecendo na época, especialmente nos Estados Unidos, onde movimentos muito fortes estavam sempre falando sobre ele. Seus seguidores agiam como se conhecessem Jesus, mas eram fundamentalistas e extremamente intolerantes, cheios de ódio e de raiva. Acho que muitos não cristãos pensavam que o Jesus fundamentalista e raivoso era a face do cristianismo. Eu sabia que não era. O cristianismo não é intolerância, não é ódio e não é raiva, e por isso quis explorar a figura de Jesus. Pensei que o Jesus que teríamos nesse filme seria aquele que sentiria compaixão por um pobre que está morrendo por causa das drogas, aqui, na rua, no meio da noite, na Oitava Avenida. Às vezes, as pessoas chegam ao ponto de se autodestruir, a um ponto em que dizem estar além da redenção, e acham que Jesus não tenha nenhum interesse em falar com elas, em dirigir seu olhar sobre elas. Bem, eu estava convencido de que Jesus jamais olharia para o outro lado.
E fazer o filme foi uma grande experiência, porque muitas coisas aconteceram durante os 10 a 12 anos que levou para fazê-lo! Mas essa é uma outra história. Mas depois, quando tudo terminou, descobri que precisava ir mais fundo: precisava encontrar, precisava ir mais fundo para buscar Jesus. Não era preciso parar apenas na iconografia de Jesus, mas se devia ir mais na profundidade, e por isso o arcebispo episcopal de Nova York, na noite em que viu o filme A Última Tentação de Cristo, me deu de presente o livro Silêncio. Quando li o livro, precisei de mais 15 a 16 anos para começar a entender como fazer um filme sobre ele, porque, no final, quando Jesus diz ao padre Rodriguez para pisar em sua imagem, ele entende que assume a humilhação do que poderia ser uma traição para uma compreensão mais profunda do mistério do amor de Deus. A realização daquele filme foi uma experiência muito especial para mim e para muitas pessoas que o estavam fazendo comigo. Daquele momento em diante, suas vidas mudaram. Tratava-se de abraçar o mistério do amor de Deus: foi isso que pensava que poderíamos explorar no filme.
Padre Spadaro, este livro é o testemunho de oito anos de encontros e diálogos nos quais a figura de Cristo foi central. O que o impressiona na maneira como Martin Scorsese se relaciona com Cristo?
Antonio Spadaro - No final do livro, vocês encontrarão um primeiro rascunho do possível filme sobre Jesus que Martin realizará, e é belíssimo. Agora estamos em um nível muito diferente de elaboração. Como surgiu essa história? Surgiu porque eu havia escrito um livro, que foi apresentado no Horcynus Festival no ano passado, Una trama divina. Gesù in contracampo, sobre a figura de Cristo, que tinha o prefácio do Papa Francisco. O Papa, no final de seu prefácio, fez um apelo aos artistas que terminava assim: “nos façam ver Jesus”. Era realmente muito bonito. Eu o traduzi e o enviei para Martin. Após cerca de duas semanas, ele me respondeu dizendo mais ou menos o seguinte: “sinto esse apelo dirigido a mim. Sinto que devo responder, mas não sou um filósofo, não sou um teólogo, sou um cineasta; portanto, vou lhe enviando o primeiro rascunho de um roteiro de um possível filme sobre Jesus. E esse rascunho está, justamente, no final do livro que estamos apresentando hoje. A figura de Cristo nesse esboço de roteiro representa, na realidade, um ponto de síntese da produção cinematográfica de Martin. Fico impressionado porque é como se Martin fosse perseguido pela figura de Cristo desde seus vinte anos. Agora, depois de mais de sessenta anos, ele continua a ter essa figura de Jesus sempre diante de seus olhos. A figura de Cristo tem profundas raízes artísticas em Scorsese: em particular, a figura que ele prefere é o rosto de Cristo pintado por El Greco, que era também o favorito de Pasolini. Em Silêncio, a imagem de Cristo que Rodriguez pisoteia é exatamente a de El Greco. E é interessante que ele contraponha justamente El Greco com Piero della Francesca.
Além disso, Martin é um grande leitor, conhece muito bem Dostoievski e muitos outros grandes escritores: ele discutiu sobre Deus e a figura de Cristo à luz de grandes escritores. Ele leu James Joyce, mas encontrou nele um Deus que castiga e não o sentiu em sintonia com ele. Depois, passou para Bernanos, mas, no final, embora Bernanos mostre um Deus misericordioso, esse Deus continua sendo para ele demasiado duro. Ele encontrou a figura de Cristo mais semelhante à sua na obra do escritor católico japonês Shûsaku Endô. Sua narrativa de Cristo não é relevante pelos milagres: o verdadeiro grande milagre para ele é a ternura, a compaixão. Portanto, Martin me parece um grande cineasta perseguido pela ternura e pela compaixão de Cristo.
Uma última pergunta, sr. diretor. Somos todos sicilianos aqui, inclusive o senhor. Sente algum vínculo sentimental com esta terra? Mesmo que não tenha nascido aqui, suas raízes estão aqui.
Martin Scorsese - Sem dúvida. Não há um momento sequer em que eu não pense na Sicília e na minha família siciliana. Meu sonho é viver o suficiente para visitar toda a Sicília. Já estive ali algumas vezes, mas foi há muitos anos, no início dos anos 1990, e adoraria voltar e está em meus planos. Sempre houve obstáculos no caminho, mas não vejo a hora de voltar à Sicília em breve, para passar um tempo ali. Fascina-se a ideia de fazer parte desse território. Minha empresa de produção também se chama Sikelia, que é o nome antigo da Sicília. A Sicília faz parte de tal forma da minha vida, de quem sou e da minha identidade que, de certa forma, cheguei a um ponto da minha vida em que preciso abraçá-la ainda mais.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
'Eu cresci nas ruas e é lá que a fé deve ser vivida'. Entrevista com Martin Scorsese e Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU