16 Abril 2024
"O cerne do ensaio, antecipado pelo título 'despojado', está no recurso às bem-aventuranças evangélicas (Mateus 5,3-12), página que François Mauriac na sua Vida de Jesus definia como 'a Carta Magna do Cristianismo: quem não a conhece não pode saber o que é ser cristão'. Além disso, como se sabe, o título original do romance O idiota não se refere ao nosso sentido negativo de pessoa rude e ignorante, mas é a referência a uma categoria quase mística que evoca uma espécie de loucura de amor, de piedade, de doação aos miseráveis. Myshkin derrama-o sobre Nastasja Filippovna, vítima do brutal Rogójin, num ato de redenção da infelicidade e da impureza que a cerca", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 11-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Deveríamos introduzir uma moratória sobre o uso da afirmação dostoievskiana “A beleza salvará o mundo” por pregadores, conferencistas, autores e oradores vários. De fato, foi mergulhada num banho de retórica, de emoção pseudomística, de vago esteticismo. No famoso romance O idiota (1868-69) já é, de fato, redimensionada por Ippolit, o jovem tuberculoso que retruca ao protagonista, o Príncipe Myshkin, autor da afirmação: “Afirmo que ideias tão frívolas se devem ao fato de que neste momento o senhor está apaixonado".
Paradoxalmente, essa zombaria capta a raiz ideal da frase. É o coração apaixonado que, através da beleza, transfigura não só o ser amado/a, mas todo o horizonte natural e histórico. Não é à toa que o Cântico dos Cânticos, o poema bíblico do amor de um casal, tem como pano de fundo a primavera em todo o seu frescor e beleza, estação marginal nas coordenadas geográfico-climáticas da Terra Santa.
Quem acompanha o percurso da alma genuína do protagonista Myshkin e da filigrana teológica das páginas do romance é um professor do ensino médio, Daniele Castellari, que também se interessa por teatro. O título, apenas aparentemente provocativo, do seu ensaio remete à matriz evangélica do protagonista do romance. A seu respeito multiplicaram-se as interpretações de grandes autores como André Gide, Nikolai Berdjaev, Romano Guardini, Réné Girard, Pavel Evdokimov, George Steiner, Hans Urs von Balthasar, Vittorio Strada e assim por diante. Trata-se essencialmente de exegeses cristológicas que Castellari reorganiza num leque de questionamentos: “Myškin é Cristo? Se ele não é Cristo, quem é Cristo para Myshkin? E quem é Myshkin para Cristo?”.
O cerne do ensaio, antecipado pelo título “despojado”, está no recurso às bem-aventuranças evangélicas (Mateus 5,3-12), página que François Mauriac na sua Vida de Jesus definia como “a Carta Magna do Cristianismo: quem não a conhece não pode saber o que é ser cristão”. Além disso, como se sabe, o título original do romance O idiota não se refere ao nosso sentido negativo de pessoa rude e ignorante, mas é a referência a uma categoria quase mística que evoca uma espécie de loucura de amor, de piedade, de doação aos miseráveis. Myshkin derrama-o sobre Nastasja Filippovna, vítima do brutal Rogójin, num ato de redenção da infelicidade e da impureza que a cerca.
Agora, Castellari - muitas vezes referindo-se a passagens do romance na edição de 1994 da Garzanti – repassa a sequência das Bem-aventuranças, aplicando-as uma a uma ao Príncipe: é um “pobre de espírito”, sereno mesmo quando derrama lágrimas, manso, faminto e sedento de justiça, misericordioso e perseguido, devotado à missão de semear a paz. Os traços do rosto espiritual de Myshkin irradiam uma luz evangélica puríssima que descortina o horizonte de trevas que o envolve e atormenta.
Esse entrelaçamento dramático, entre a miséria da humanidade e o esplendor da graça e do amor, também atravessa um romance de outro escritor russo fundamental, como é Ressurreição, de Tolstói (1899), onde mais uma vez encontramos um príncipe, Nekhludov e uma mulher vítima, Katjusha Maslova.
É fácil encontrar nas entrelinhas uma epifania espiritual, mesmo nas profundezas de uma história sombria, uma verdadeira “ressurreição”. A guiar-nos no itinerário ramificado dessa obra complexa está Paolo Alliata, um padre milanês, que há tempo se dedica a examinar vários escritos do cânone literário em busca de uma alma profunda, aliás, muitas vezes do mistério cristão.
É o caso desse seu novo texto que, na realidade, é uma mensagem ou um anúncio de verdade e de vida destinado a muitos leitores, a começar pelos próprios alunos do Liceu Montini, do qual padre Paolo é diretor. O desfile de autores convocados é muito variegado, mesmo da trajetória constante de libertação e redenção obtida por meio de “trilhas que introduzem à aventura de se tornar verdadeiramente vivos”. É certamente o milagre do amor, como reza o título, mas é um prodígio realizado pela palavra literária.
Os escritores que sobem no palco são muitas vezes famosos como, justamente, Tolstói ou Steinbeck, este último peneirado também em busca de uma matriz bíblica em seu romance As vinhas da ira, com o paradoxal “pregador mudo” Jim Casey. Ou mesmo aquele amante de perguntas sérias apesar da sua ingenuidade que foi Milan Kundera com o seu Insustentável leveza do ser, mais celebrado do que lido. Ou mesmo Clive Steples Lewis, que é proposto não tanto por suas populares Crônicas de Nárnia, mas por seu dilacerante diário diante do sofrimento e da morte de sua esposa, a poetisa Helen Joy Davidman.
Ao lado desses, porém, Alliata também acompanha dois autores menos populares. Por um lado, o sugestivo franco-lituano Romain Gary com as suas Pipas, idealmente soltas no limiar do seu suicídio, “um romance, na verdade, cheio de vida”, apesar da obscuridade iminente do nazismo. Por outro lado, eis aqui uma surpresa também para um leitor insone (não apenas metaforicamente) como eu, que desconhecia a própria existência do romance Stoner de John Williams que a Mondadori traduziu em 2021. Esse personagem recebe um retrato cheio de sintonia e simpatia, até à chegada à morte que se torna a figura hermenêutica da sua vida: “A consciência da sua identidade atingiu-o com uma força repentina e ele percebeu o seu poder. Era ele mesmo e sabia o que tinha sido."
CASTELLARI, Daniele. Beati gli idioti, Pazzini, pag. 148.
ALLIATA, Don Paolo. L’amore fa miracoli, Ponte alle Grazie, pag. 174.
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Cristo também vive em Dostoiévski. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU