02 Novembro 2023
"Em última instância, Assassinos da lua das flores pode ser visto como uma parábola sobre a ideia de que, no capitalismo, o dinheiro não tem cor, raça ou ideologia", escreve José Geraldo Couto, crítico de cinema, em resenha publicada por A Terra é Redonda, 31-10-2023.
Para quem gosta de cinema e se interessa pela história das sociedades, Assassinos da lua das flores, de Martin Scorsese, é possivelmente o grande filme do ano. Ambientado nos anos 1920, na terra da nação indígena Osage, traz uma carga tão grande de informação, ação eletrizante e drama humano que suas três horas e meia passam num instante.
Resumindo uma história complexa: no início do século XX, os osages encontram petróleo no território estéril para onde tinham sido empurrados pelos colonizadores europeus, no estado de Oklahoma. A situação então se inverte. São os brancos que passam a cobiçar a riqueza obtida pelos indígenas, tentando chegar a ela por uma via dupla: casando-se com mulheres osages e matando quem estivesse na linha de sucessão na posse do patrimônio. No entretempo, eles se submetem a trabalhar para os abonados indígenas como motoristas, garçons, marceneiros, etc.
É nesse contexto que chega à região, voltando da Primeira Guerra, o matuto de poucas luzes Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), que fica sob a guarda do tio, o poderoso latifundiário Willam Hale (Robert De Niro). Acontece que o astucioso Hale pretende se servir do sobrinho para aumentar o patrimônio da família, e para isso o incentiva a casar-se com a osage Mollie (Lily Gladstone). Começam então a ocorrer diversos assassinatos de parentes de Mollie, motivando o envio para a região de agentes do então nascente FBI.
A partir do livro de não-ficção de David Grann Killers of the Flower Moon, onde essa história é contada, Martin Scorsese construiu um épico sem glória que mistura faroeste, filme de gângster, policial e drama de tribunal. Aos 80 anos, ele exibe um vigor invejável e o pleno domínio dos recursos narrativos e expressivos que o transformaram no último grande cineasta clássico dos Estados Unidos, sem a irregularidade de um Coppola e o sentimentalismo tantas vezes tolo de um Spielberg.
Em última instância, Assassinos da lua das flores pode ser visto como uma parábola sobre a ideia de que, no capitalismo, o dinheiro não tem cor, raça ou ideologia. Esse mito é testado em seu limite no filme: os osages têm os dólares do petróleo, mas continuam sendo indígenas, isto é, um povo discriminado, sitiado e, na “solução final”, exterminado. Não sob tiros e clarins da cavalaria, como em tantos westerns, mas por caminhos mais insidiosos e traiçoeiros, como nos filmes de máfia.
Martin Scorsese transita de modo desenvolto e soberano pelos códigos de todos os gêneros, aparentemente à vontade nesse ambiente que mistura o rural e o urbano. Uma corrida de automóveis pelas ruas de terra da cidadezinha osage atesta a euforia quase juvenil com que esse veterano nos dá a ver imagens inusitadas.
Merece atenção especial o olhar poético e respeitoso que esse artista branco, católico, descendente de italianos, criado nas ruas perigosas de Nova York, dedica ao povo osage e sua cultura. A morte da mãe de Mollie, Lizzie (Tantoo Cardinal), por exemplo, é apresentada numa visão dupla, a da ascensão de seu espírito segundo a mitologia indígena e a crua, prosaica, de um velório rotineiro. Em outra passagem, o bobalhão Ernest diz a Mollie, pensando estar sendo galanteador: “A cor da sua pele é bonita. Como você chama essa cor?” Ela responde: “A minha cor”.
Por fim, sem que vá aqui nenhum spoiler, a aparição do próprio Martin Scorsese, no papel de um produtor de programa de rádio, reforça e atualiza uma ideia recorrente na obra do diretor (vide O rei da comédia e mesmo o final de Taxi driver): a de que na cultura industrial norte-americana tudo vira entretenimento comercial e catarse de massa. Seu próprio filme não escapa disso, claro, mas pelo menos tem o mérito nada pequeno de chamar a atenção para a armadilha. Nos embala e nos belisca ao mesmo tempo.
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Assassinos da lua das flores, de Martin Scorsese. Comentário de José Geraldo Couto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU