"É tamanha a beleza da obra, com todos os seus detalhes, que o diretor consegue prender o público até os créditos finais, numa incrível relação de simbiose que se alcança com as filmagens, num filme que celebra a 'história de um retorno à vida'", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O diretor polonês Krzysztof Kieslowski (1941-1996) retorna aos Filmes em Perspectiva, agora com um dos filmes da trilogia das Cores (A liberdade é Azul), com data de 1993, numa produção francesa, polaca e suíça. O título em original é mais fiel ao objetivo do diretor em não perder o vínculo entre os três episódios. No original se diz simplesmente: Trois Couleurs: Bleu”. Os outros episódios mantêm o título principal: Trois Couleurs: Blanc e Trois Couleurs: Rouge. Com isso o diretor quer indicar que os temas presentes em cada um dos filmes retornam nos outros, ainda que cada um dos títulos enfatize mais a temática implicada: em Bleu a Liberdade, em Blanc, a Igualdade e em Rouge, a Fraternidade, que são três motes iluministas da Revolução Francesa.
Na verdade, o que o diretor pretende em sua trilha das cores é levantar questões fundamentais quanto à possibilidade desses três valores essenciais acontecerem de fato na história. Como mostrou com pertinência Andréa França em seu livro sobre a trilogia, a série “coloca em questão estes valores universais e sugere que pensar essas noções hoje, é, na verdade, um falso problema. A ideia de Homem há muito se deteriorou”. [1] Não que o diretor invalide ou desqualifique esses ideais firmados como sonhos do Ocidente. São, de fato, valores universais. O que faz é buscar desconstruí-los e subvertê-los “de maneira a explorar as múltiplas maneiras de colocá-los em situação”. [2]
A trilogia vem lançada num momento particular da Europa, depois da queda do muro de Berlim e do fim do socialismo. Como mostrou o historiador britânico Eric Hobsbawm,
“Com o colapso da URSS, a experiência do ´socialismo realmente existente` chegou a fim, mesmo onde os regimes socialistas sobreviveram e tiveram êxito, como na China, abandonaram a ideia original de uma economia única, centralmente controlada e estatalmente planejada, baseada num Estado completamente coletivizado – ou uma economia de propriedade coletiva praticamente coletivizada operando sem mercado”. [3]
Junto com essa grandiosa crise, o diretor polonês, traz à baila outras questões ligadas às contradições da Europa nesse tempo de crise, incluindo a questão das migrações, do terrorismo, da desigualdade e da miséria. Com um interesse particular na Polônia, inclui também o problema do duro golpe militar, da instalação do estado de sítio e da presença obscura da Igreja Católica. Encontramos, portanto, um, diretor bem desiludido e realista. Daí abordar na trilogia algo que tem a ver com o futuro da Europa num tempo de crise, e, portanto, com a questão da União Europeia.
Não sem razão, o filme Bleu está todo envolvido nesse clima de busca de reconstrução da Europa, e a trilha que anima o filme trata justamente desse ideário: o “Concerto para a inauguração da Europa”. O processo de elaboração desse concerto foi justamente para comemorar o bicentenário da Revolução Francesa.
A trilogia das cores recebeu vários prêmios e indicações, atraindo novamente os olhares do público mais amplo para o cinema europeu. A obra recebeu os prêmios de melhor filme, direção, fotografia e atriz no Festival de Veneza, em 1993; bem como Prêmio Cesar de 1994, na França, nas categorias de melhor atriz (Juliette Binoche), melhor edição e melhor som. E também, entre outros, o Prêmio Góia da Espanha, em 1994 e o Globo de Ouro, no mesmo ano, como melhor filme europeu.
Na ficha técnica, temos Krzysztof Kieslowski na direção do filme, e presença também no roteiro, junto com Edward Zebrowski. A produção foi de Marin Karmitz, a trilha sonora de Zbigniew Preisner (com a presença da Sinfônica de Varsóvia) e a fotografia de Slawomir Idziak. No elenco Juliette Binoche (Julie), Benoít Régent (Olivier), Floence Pernel (Sandrine), Charlotte Very (Lucille), e outros.
O diretor Kieslowski vinha de uma experiência bem sucedida na realização dos episódios de Decálogo, que foram inicialmente produzidos para a televisão polonesa em 1988. Trata-se de um conjunto de episódios inspirados nos dez mandamentos, e ambientados num condomínio de Varsóvia, na Polônia. Os temas abordados são dramas familiares e conflitos morais. Os episódios foram depois expandidos para o cinema (1989), com 574 minutos de duração. Ele foi o vencedor do Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cinema de Veneza.
É uma obra irrepreensível e simplesmente monumental, o trabalho grandioso de Kieslowski. Ele dizia sobre suas reflexões: “Desde os meus primeiros filmes, sempre tenho contado a história do homem que, pode achar difícil se orientar neste mundo, não sabe como viver”.
Retomando o filme Blue, pode-se assinalar que a sinopse guarda um arranjo peculiar, com traços que são comoventes. O filme aborda uma questão relacionada com a morte e o subsequente trabalho interior que envolve o luto. Já no início somos tomados pelo choque de um acidente que tira a vida de dois membros de uma família. Morrem o marido, Patrice (Benoit Régent) e a única filha de cinco anos. Sobrevive a mulher, Julie, com uma imensa dor para administrar.
O acidente já vem, de certa forma previsto no início, quando a câmara se enquadra num carro correndo em velocidade acentuada, e o foco está voltado nas rodas do veículo e o barulho do motor. Faz parte da técnica utilizada pelo diretor: “para chegar ao naufrágio ou a qualquer acontecimentos nos seus filmes, cria anteriormente uma ambientação, um 'pretexto' que é sempre uma cotidianidade (e não uma exceção) para que o olhar capte de antemão o que estar por vir”. [4]
Tudo se dá num enquadramento fechado, com as lentes voltadas para a parte inferior do carro. O carro passa rápido diante de um rapaz, na beira da estrada, que jogava bibloquê. O rapaz volta seu olhar para a estrada e vê o veículo passar em velocidade. Há uma breve parada do veículo e a garota sai do carro e volta em seguida. O motorista aproveita o intervalo para espreguiçar.
Numa cena bonita vemos a imagem de um papel de pirulito azul que se agita na janela do carro pela ação do vento. Durante a parada, a câmara focaliza o tambor do freio, e mostra que há vazamento de água. Pouco depois, coincidindo com o acerto do jogo em que estava empenhado, o rapaz ouve o barulho de um acidente e percebe o estrago feito no carro, que bateu frontalmente numa árvore. Ele corre na direção do veículo para verificar o que ocorreu. Numa cena comovente, os espectadores observam uma bola que se solta do carro com o baque e atravessa a estrada, lentamente, como se despedindo.
As cenas seguintes já ocorrem no hospital onde Julie, a sobrevivente, está internada para sua recuperação. Ela está tomada pela dor e desespero. Provoca a quebra de uma vidraça para desviar a atenção da enfermeira responsável pela farmácia, e então adentra-se no depósito de medicamentos e pega um vidro com comprimidos. Busca o suicídio, tentando engolir os comprimidos, mas sem sucesso. Não dá conta de dar cabo à sua vida, e partilha isso com a profissional, reconhecendo sua dificuldade. E a moça, num olhar de perplexidade, busca acalmá-la.
Em momento seguinte, na cama do hospital, Julie acompanha com o olhar a entrada de um médico no quarto e fica então sabendo que seus dois queridos tinham morrido no acidente. Em técnica admirável, a imagem do médico se vê refletida no olhar de Julie:
“É através do plano de detalhe do olho de Julie que se vê o reflexo de um homem de branco se aproximando. Sim, é o médico. Sim, seu marido está morto. Sua garotinha também, sim... (é pelo olho de Julie que nos damos conta da tragédia que ocorreu). Não há mais nada para perder, pois ela já perdeu tudo. Ah, resta a vida... esta que insiste em estar, em se mostrar no plano da brisa que roça delicadamente em uma pluma”. [5]
É da cama do hospital que Julie acompanha pela tv a cena do enterro de seu marido e sua filha. Ele era um reconhecido compositor e estava no momento trabalhando numa composição para coro e orquestra visando a celebração do bicentenário da revolução francesa e a unificação europeia. Ela, Julie, está imóvel diante da tv emprestada pelo assistente de seu ex-marido, Olivier (Benoit Régent). Tudo se passa na filmagem de forma milimétrica, com o foco no rosto quase impassível de Julie, que assiste a cena do enterro como que paralisada, com exceção de pequenas contrações da boca e tremura do queixo. Tudo lentamente acompanhado pela câmara, todas as minúsculas vibrações. Como num “mapeamento, uma geografia do corpo onde qualquer deslize, qualquer imperfeição é capturada sem clemência. Mostrar o avesso, o que está sob e na pele, o que não tem representação”. [6]
Ao sair do hospital, a primeira providência tomada por Julie é desfazer-se de tudo aquilo que pode despertar nela a memória de seus queridos. Ela coloca sua casa à venda e muda-se para um apartamento modesto, sem comunicar a ninguém a sua localidade.
Decide vender todos os bens da família, romper com todos os vínculos, como se isso fosse possível. Ela, porém, tenta. O que visa é apagar o seu passado, desligar-se de si mesma, refugiando-se em seu “mínimo eu”, buscando garantir-se num refúgio que preserve o seu núcleo pessoal. Ela se recusa a usar preto, a acender velas ou chorar pelas perdas. Busca com seus parcos recursos emocionais manter as aparências evitando os artifícios que possam acentuar a dor.
Ao longo do filme surge a questão decisiva: qual o preço da liberdade? Ela declara em certo momento: “Não quero bens, presentes, amigos, amor, vínculos. Tudo isso são armadilhas”. Na verdade, porém, sua angústia e solidão não se arrefecem com tais artimanhas, e tornam-se cada vez mais insuportáveis.
Por mais que ela busque o contrário, os vínculos estão presentes, e ocorrem às vezes por coincidências, como no caso da corrente com o crucifixo que o rapaz que presenciou o acidente conseguiu recolher no carro e busca devolvê-la; na dependência que se cria com o outro em razão do atordoamento provocado pela ninhada de ratos em seu novo apartamento; na amizade que se forma com a vizinha prostituta, Lucille (Charlotte Very); nas notas do concerto inacabado e a melodia do flautista que a faz lembrar da composição de seu ex-marido. Sua mãe mesmo (Emmanelle Riva), que morava num asilo, tinha feito uma advertência a ela sobre a impossibilidade de se viver sem vínculos.
Não há dúvida de que a música exerce no filme o elo que mantém Julie conectada com a realidade que busca a todo custo dissipar. Por mais que tente livrar-se dela, a música permanece presente como um “tormento” que não deixa arrefecer a memória.
Como apontou Andréa em seu livro, Julie queria a todo custo livrar-se dessa lembrança, mas a música “vive nela e apesar dela”. [7] Ela quis, e como quis, se livrar desse memória dolorosa. A música “é o acontecimento, é ela que ecoa para além da história, para além da trilogia” feita pelo diretor. [8] Julie chega a jogar a partitura da composição que o ex-marido estava concluindo no caminhão de lixo e acompanha a trituração das páginas. Por sorte, temendo que isso pudesse ocorrer, a copista tinha providenciado uma reprodução que depois enviou por correio para Olivier, que deu sequência ao trabalho.
Foto: Divulgação
O segredo do tom azulado que recobre todo o filme, é um dos recursos maravilhosos da fotografia de Idziak. As cenas que revelam o brilho do móbile azul, filtrado pelo sol, no rosto de Julie são igualmente de uma beleza impar. Ele recorreu a filtros para deixar as cenas sempre com esse tom azul.
O azul é uma cor essencial no filme, e nos remete à melancolia, mas igualmente ao desejo voraz de comunicação e iluminação. Outra riqueza presente no seu trabalho, com o recurso da iluminação, é a arte de focalizar a personagem central, evidenciando com grande felicidade suas perplexidades e dores, e tudo muito de perto. Em seu foco, Julie ganha um potencial único, e feições de uma maravilha que encanta.
Como um detalhe que corrobora a riqueza do filme, temos a grande interação ocorrida entre o diretor Kieslowski e a atriz Juliette Binoche. A atriz sempre foi objeto de grande admiração do diretor, e os dois mantiveram um contato sempre marcado por muito respeito e liberdade, numa relação direta pontuada pela clareza e transparência.
Em vídeo extra que acompanhou o DVD sobre a trilogia, divulgado no Brasil, o trato respeitoso entre os dois veio expresso com muita sinceridade por Juliette Binoche. A atriz já tinha sido convidada antes para atuar num filme de Kieslowski, A vida dupla de Veronique, mas não pôde assumir por já estar empenhada em outro projeto. Desta vez, porém, aconteceu a possibilidade, e ela preferiu aderir ao convite em vez de aceitar atuar em Jurassic Park, de Spielberg.
Com base na relação de confiança entre o diretor e a atriz, ela sentiu-se à vontade para atuar num filme que é difícil, complexo e doloroso. Mais complicado ainda pelo fato de Julie não poder expressar o sentimento de dor pela perda de seus dois mais queridos. O roteiro indicava que a atriz deveria começar a driblar a dor a partir do zero, sem demonstrar sentimentos. E isso foi quase impossível.
Temos como exemplo desse “desapego”, a cena em que Julie cede a sua casa para a amante de seu ex-marido, Sandrine (Florence Pernel), sem demonstrar alegria. É uma dinâmica de dom desprovida de gentileza explícita. Era o que o diretor propunha, com resistência da atriz. Ela acaba cedendo, e a cena transcorre numa clima de distanciamento, com apenas um pequeno esboço de sorriso.
É de beleza única o momento em que, delicadamente, Julie toca com delicadeza a corrente e o crucifixo, que adornam o visual de Sandrine, bem semelhante ao achado no carro. Era a viva expressão do vínculo dela com o seu companheiro que tinha morrido.
E Binoche adere ao papel com toda a seriedade possível, indo até além do previsto, como numa cena em que a personagem Julie está levando o móbile azul numa caixa para seu apartamento novo, e no percurso raspa vigorosamente a outra mão numa parece de pedra, e as feridas nascidas foram verdadeiras, demorando mais de um ano para que as marcas deixadas dispersassem.
Ainda sobre o processo de filmagem, vale lembrar que a exigência do diretor sobre os atores foi bem pesada. Houve momentos em que as filmagens levaram 24 horas seguidas, e os envolvidos tinham que retornar ao local de hospedagem com viagens que poderiam provocar riscos de acidente, em razão do cansaço. Teve que ocorrer uma intervenção do responsável pela montagem, Jacques Vitta, junto ao diretor para abrandar o ritmo dos trabalhos.
Uma característica que se observa no filme Blue são os longos planos sem cortes, e um intenso uso das cores. O diálogo vem reduzido ao que é essencial, dando sempre espaço para a linguagem não verbal e momentos preciosos de silêncio.
Como disse um resenhista, “as dúvidas e questionamentos da personagem tornam-se, também, do espectador”, pois são questões, crenças e sensações de traço universal. Tudo isso favorece a peculiaridade do diretor, com filmes que são de sensibilidade única, exigindo também dos que assistem uma participação e presença como hermeneutas, uma vez que o filme preserva hiatos e lacunas para justamente favorecer esse trabalho pessoal do espectador.
O processo de aproximação progressiva de Julie ao assistente de seu ex-marido, Olivier, é outro elemento importante no filme. Os dois vivem, ainda no início da película, uma experiência amorosa num colchão descoberto, que permanecia naquela casa toda vazia. Era como um gesto de despedida. Os dois tinham tido um caso no passado.
Em outra cena, os dois se encontram num bar, depois que ele descobre onde ela estava morando, e encetam uma conversa regada pelo som de uma flauta tocada por um rapaz que estava na rua, e a música repercute nela, como uma nítida lembrança da composição de seu ex-marido. Ela chega mesmo a interrogar o rapaz para saber das razões daquela melodia que produzia. No bar, Julie dá a entender a Olivier que não há possibilidades de um novo romance.
Numa cena das mais bonitas do filme, Julie, que estava sentada no bar, pede um café, e em imagem que envolve o olhar de quem assiste, ela mergulha o torrão de café na xícara, e ele vai sendo tomado pelo líquido, e então ela o joga na xícara. Uma cena que foi milimetricamente pensada pelo diretor, com duração de exatos quatro segundos e meio.
Ao contrário das expectativas, Julie e Olivier vão poucos se aproximando, por ação de um acaso. Em cena em que Julie assistia pela tv numa boate a declaração de Olivier, afirmando que iria dar continuidade à obra, ela é tomada por impacto e vai ao seu encontro, e depois fica sabendo como a partitura foi preservada das cinzas. Ela toma a decisão de retomar com ele o trabalho de conclusão da obra inacabada, e a aproximação vem possibilitada.
O trabalho conjunto vai aos poucos despertando nela os diversos tons do amor. É o toque de redenção, sugerido pelo diretor, que vai sendo operado no mundo interior de Julie, com a ajuda de Olivier, com alusão de que os dois vão dar sequência à vida juntos. Aquela busca constante da liberdade que ocupava o mundo interior de Julie, encontrará guarida quando resolve, finalmente, seguir em frente com tenacidade e coragem.
É tamanha a beleza da obra, com todos os seus detalhes, que o diretor consegue prender o público até os créditos finais, numa incrível relação de simbiose que se alcança com as filmagens, num filme que celebra a “história de um retorno à vida”. [9] Trata-se de uma direção excepcional e um filme que fica registrado na memória de todos que o assistem. É um trabalho primoroso do cinema europeu e universal.
[1] Andréa França. Cinema em azul, branco e vermelho. A trilogia de Kieslowski. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1996, p. 16.
[2] Ibidem, p. 17.
[3] Eric Hobsbaw. Era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 481.
[4] Andréa França. Cinema em azul, branco e vermelho, p. 79
[5] Ibidem, p. 43.
[6] Ibidem, p. 45.
[7] Ibidem, p. 33.
[8] Ibidem, p. 94.
[9] Ibidem, p. 34.