03 Mai 2017
Quando Óscar Alfredo Ramírez abriu aquele e-mail, seu mundo começou a desmoronar. Até aquela manhã de 2011, ele vivia relativamente tranquilo em um bairro de classe média de Boston, a capital do estado americano de Massachusetts, e acreditava ser filho de um guatemalteco de quem herdou o nome.
Reportagem publicada por BBC, 30-04-2017.
Óscar Alfredo Ramírez e quem ele acreditava ser seu pai, Óscar Ovidio Ramírez Ramos (Foto: Finding Oscar Filmrise)
Aos 31 anos, ele havia conquistado uma vida estável: tinha dois empregos de período integral com os quais mantinha sua esposa, Nidia, e os três filhos.
Mas tudo começou a desmoronar quando ele descobriu sua verdadeira identidade e a razão pela qual ele tinha vivido, desde que podia se lembrar, como um imigrante ilegal nos Estados Unidos.
Pelo e-mail, ele soube que era um sobrevivente de um massacre ocorrido em 1982 na aldeia Dos Erres, uma das piores matanças durante a guerra civil da Guatemala (1960-1996).
E depois de se submeter a exames de DNA, descobriu ainda que o homem que até então era considerado seu pai, e que faleceu em um acidente de carro quando ele tinha quatro anos, Óscar Ovidio Ramírez Ramos, foi na verdade seu sequestrador.
Ramírez Ramos foi um kaibil - membro da tropa de elite das Forças Armadas da Guatemala treinada pelos Estados Unidos para combater o comunismo. Ele participou do massacre e, ao ver aquele menino de três anos, pele clara e olhos verdes, decidiu poupar sua vida e criá-lo como filho.
O caso inspirou o famoso diretor de cinema Steven Spielberg que produziu o documentário Finding Oscar ("Encontrando Oscar", em tradução livre), recém lançado nos EUA, que conta a história e pede por Justiça no caso.
"Você não me conhece". Era assim que começava o e-mail que mudaria a vida de Óscar Alfredo Ramírez e é também dessa forma que começa o documentário.
A mensagem havia sido enviada por Sara Romero, da Unidade de Casos Especiais do Conflito Armado Interno da Procuradoria de Direitos Humanos da Guatemala, depois de anos de investigação.
No e-mail, ela explicou a razão do contato e afirmou que, caso ele fosse realmente quem ela pensava, aquele homem de 31 anos seria "a prova viva da participação do governo militar no massacre".
A matança ocorreu entre os dias 6 e 8 de dezembro de 1982 na comunidade Dos Erres de Petén, um estado ao norte da Guatemala, na fronteira com o México.
O clima já estava tenso na região desde setembro, após a morte de 17 soldados por guerrilheiros das Forças Armadas Rebeldes em uma emboscada. O então presidente Efraín Ríos Montt, que assumiu após um golpe de Estado, respondeu ao ataque intensificando a presença militar.
Além disso, de acordo com testemunhos dos sobreviventes do massacre coletados em vários relatórios, incluindo o da Comissão para o Esclarecimento Histórico, nomeada pelas Nações Unidas, o exército pediu aos camponeses de Dos Erres para ajudar a patrulhar as redondezas.
Os camponeses se negaram a fazer o patrulhamento, e o governo os acusou de proteger os insurgentes. Na noite de 6 de dezembro, uma tropa de kaibiles atacou a aldeia.
Durante os três dias seguintes os soldados interrogaram os residentes, os torturam, abusaram de suas mulheres e terminaram por fuzilar dezenas de pessoas, inclusive crianças, e lançaram os corpos em um poço de 12 metros de profundidade.
Foi o que demonstraram as escavações feitas 12 anos depois, em 1994, por um grupo de antropólogos forenses argentinos contratados pela Associação de Familiares Detidos e Desaparecidos na Guatemala (Famdegua, na sigla em espanhol), sem nenhum apoio do governo guatemalteco.
Somente no poço da aldeia, a equipe encontrou ossos de pelo menos 160 pessoas, 67 delas menores de 12 anos. Apesar disso, se acredita que o número de mortos seja superior a 200.
Alguns dos restos mortais eram da mãe, das cinco irmãs e dos dois irmãos de Óscar Alfredo Ramírez, que se salvou de um destino idêntico porque um dos carrascos do povo de sua aldeia o sequestrou e o criou como filho.
Foi em agosto de 2011, depois de receber o e-mail e se submeter ao exame de DNA, que se descobriu que Óscar era de fato Alfredo Castañeda, filho biológico de Tranquilino Castañeda, um camponês que se livrou do massacre porque estava trabalhando em vilarejos mais distantes nos dias da matança.
Depois de conhecer a verdade, ele viajou para a Guatemala em 2012 para se reencontrar com o pai biológico e legalizar sua permanência nos EUA, que lhe concedeu um visto de refugiado.
"Óscar vive hoje uma versão do sonho americano do imigrante", disse à agência de notícias AFP Ryan Suffern, que dirigiu o documentário Finding Oscar, que conta o caso e pede por justiça pelo massacre.
"Parte da justiça é simplesmente um reconhecimento sobre o que aconteceu. Nunca houve um reconhecimento formal por parte do governo. Por isso é realmente importante exibir o filme publicamente na Guatemala", disse Suffern.
E é justamente reconhecimento o que pedem os sobreviventes e familiares das vítimas do massacre de Dos Erres.
Um deles é Saúl Arévalo, que perdeu os pais e os cinco irmãos menores na matança e contou à BBC Mundo em 2013 como ficou o vilarejo depois da passagem do exército.
"Tive oportunidade de passar pela região 15 dias depois do massacre. Onde antes as crianças corriam, jogavam futebol, já não havia nada", recordou.
"Efraín Ríos Montt só ordenou que as tropas deixassem a região arrasada", disse María Esperanza Arriaga, que perdeu duas filhas - de quatro e seis anos- no massacre e que agora clama por justiça.
"Ele não nos deu oportunidade de nos apresentarmos e mostrarmos que não éramos guerrilheiros, que não conhecíamos nenhum guerrilheiro".
Até agora, somente poucos soldados foram condenados na Guatemala em relação à matança - cada um deles deve ficar 6.060 anos no cárcere.
Outros três estão em prisões americanas, condenados por violar as leis de imigração. Entre eles está Jorge Sosa, cujo julgamento foi acompanhado por Óscar Alfredo Ramírezm em 2014. Há suspeitas que outros vivam nos EUA.
Outro soldado condenado é Santos López Alonzo, que também sequestrou uma criança da aldeia Dos Erres e que a procuradoria agora acusa de crimes contra humanidade, assassinato e sequestro de menores.
E no último dia 31 de março, apenas duas semanas antes da estreia do documentário Finding Oscar nos EUA, a juíza Claudette Domínguez ordenou outro julgamento contra Efraín Ríos Montt, que governou o país entre 1982 e 1983 depois de um golpe de Estado, por seu possível papel no massacre.
Ríos Montt, que tem hoje 90 anos, já havia sido sentenciado a 80 anos por genocídio, mas a Suprema Corte guatemalteca anulou a decisão alegando "erros de procedimento". Os advogados dele garantem que ele sofre de demência.
De acordo com a ONU, as mais de três décadas de conflito interno destruíram a Guatemala e deixaram 200 mil mortos, 45 mil desaparecidos e mais de 100 mil deslocados.
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O homem criado por um militar que matou sua família em massacre e cuja história inspirou Spielberg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU