19 Fevereiro 2019
Dois filmes diferentes convivem, ou antes se sobrepõem, em A mula, de Clint Eastwood. Há, por um lado, uma combinação um tanto convencional de trama policial e melodrama familiar. Por trás dessa fachada, porém, há uma reflexão mais sutil sobre a passagem do tempo, expressa no binômio longevidade/fugacidade.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema e tradutor, publicado por Instituto Moreira Salles - IMS, 14-02-2019.
O enredo policial em si tem sua originalidade: Earl Stone (Eastwood), um octogenário que vive de cultivar lírios e já rodou com sua caminhonete por “quarenta e oito dos cinquenta estados norte-americanos”, aceita atravessar vários deles transportando uma encomenda desconhecida em sua velha caminhonete em troca de um bom dinheiro. Meio sem perceber, acaba por se transformar numa próspera “mula” (transportador de drogas) para um cartel mexicano.
A idade avançada do personagem, que serve de conveniente disfarce diante das autoridades policiais, também o torna mais interessante para o espectador, conferindo graça e imprevisibilidade à narrativa. Apelidado de Tata pela quadrilha para quem trabalha, Earl é um ancião e não é do ramo – e desse descompasso o filme extrai muito do seu interesse.
Em paralelo à trajetória pessoal do protagonista, acompanhamos a preparação de um grande cerco policial aos narcotraficantes, liderado pelo agente Colin Bates (Bradley Cooper) e seu chefe (Laurence Fishburne), e sabemos desde o início que em algum momento essas linhas vão se encontrar. Até aí tudo ótimo.
O que enfraquece, a meu ver, esse conjunto é o polo dramático familiar, o relacionamento espinhoso de Earl com a filha (Alisson Eastwood, filha do diretor) e a ex-mulher (Dianne Wiest), a quem sempre deixou em segundo plano ao privilegiar o cultivo das flores e a vida social. A “mensagem” pró-família talvez seja menos um tributo ao conservadorismo hollywoodiano e mais uma recaída sentimental de um artista que, afinal, está beirando os noventa anos.
Mas, como foi dito lá em cima, há outra coisa mais interessante a ser percebida para além da história narrada. Essa outra coisa é a relação com o tempo. Por ter uma profunda consciência da fugacidade da vida – seja porque sente sua própria morte se aproximar, seja porque dedica seu tempo a cultivar flores que terão uma brevíssima existência –, Earl parece se mover por uma temporalidade diferente, que desconcerta a urgência dos bandidos e a precisão dos policiais.
Isso lhe permite, por exemplo, cantarolar despreocupadamente uma balada tocada no rádio enquanto transporta centenas de quilos de cocaína na caçamba da caminhonete. E que o leva a comentar, com uma jocosidade algo melancólica: “Ninguém quer viver até os cem anos, exceto quem está com noventa e nove”.
É nas bordas do percurso do protagonista que se dão as observações mais agudas de Eastwood sobre seu país e sua época: uma turma de motoqueiras lésbicas o desconcerta e diverte; um casal de negros chama atenção para sua linguagem racista; a onipresença do celular o perturba; a internet revoluciona sua profissão.
Do ponto de vista da construção visual e do ritmo da narração, o diretor se mostra herdeiro do classicismo hollywoodiano de Hawks, unindo leveza e objetividade em cenas bem decupadas, filmadas sempre à altura do olho humano. Nenhum virtuosismo, nenhum ornamento desnecessário.
Uma das poucas passagens que se destacam pela inventividade da realização é também uma das poucas em que o protagonista não está presente: é a cena em que o chefão do cartel mexicano (Andy Garcia) treina tiro com alvos móveis no jardim de sua mansão.
No mais, o complexo e matizado personagem Earl Stone serve para sugerir a variedade de vidas que cabem numa única vida.
E aqui cabe falar de Eastwood como ator. É conhecida a boutade de Sergio Leone: “Clint tem duas expressões: com chapéu e sem chapéu”. Mas é talvez como ator que Eastwood se expressa aqui de modo mais comovente: aquele homem durão e impassível que, como pistoleiro, policial ou soldado, se impunha à força a todos que o cercavam agora se apresenta alquebrado, trêmulo e vulnerável. O trabalho do tempo sobre seu corpo – bem como sobre o de Diane Wiest, Andy Garcia, Laurence Fishburne etc. – é ao mesmo tempo fundo e figura desse filme imperfeito e encantador.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O trabalho do tempo. "A mula", um comentário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU