Os pensamentos da senhora O'Brien e de Jack, seu filho mais velho [personagens de A Árvore da Vida], são, como diz James Martin, uma constante oração. Ambos, assim como Jó, vivem em diálogo com Deus, ainda que de modos distintos.
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
Há muitas formas de interpretar o aclamado filme de Terrence Malick, A Árvore da Vida (2011), vencedor da Palma de Ouro, o principal prêmio do Festival de Cinema de Cannes: pelo viés filosófico, a partir do dualismo entre natureza e graça ou da tensão entre bem e mal; ou do ponto de vista teológico, sobre a busca humana por Deus ou como a presença da graça se manifesta no mundo ou ainda por que Ele silencia diante das nossas orações. Ou todas essas questões juntas.
Uma das interpretações mais bonitas que já li foi a do editor de cultura da revista America, dos jesuítas dos EUA, James Martin, para quem A Árvore da Vida "é como viver dentro de uma oração". E não é à toa que dois dos três personagens centrais do filme se assemelham, em maior ou menor grau, a Jó, cujo livro, obra-prima da literatura do movimento sapiencial, é a porta de entrada não só dos textos bíblicos sapienciais, mas da própria obra de Malick. Na primeira cena do filme, no meio da escuridão, não ouvimos nada, apenas vemos a chama do fogo - modo pelo qual Deus se manifestou a Moisés na sarça ardente -, e lemos a resposta de Iahweh aos protestos de Jó e aos ciclos de discursos que ele travou com seus amigos:
"Onde estavas tu quando eu lançava os fundamentos da Terra,
Quando, juntas, cantavam as estrelas da manhã
E todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?" (Jó, 38,4-7)
Os pensamentos da senhora O'Brien e de Jack, seu filho mais velho, são, como diz Martin, uma constante oração. Ambos, assim como Jó, vivem em diálogo com Deus, ainda que de modos distintos.
A senhora O'Brien é a figura que ilustra o comportamento de Jó: vive em estado de graça, promete ser fiel aconteça o que acontecer, mas diante de uma tragédia incompreensível aos olhos humanos - a morte de seu filho de apenas 19 anos -, tenta manter a promessa durante a vivência do luto: "Oh, meu Deus... Meu filho. Quero morrer. Estar com ele... (...) Meu Deus. Não temerei mal algum porque tu estás comigo". Mas, em determinado momento, indigna-se e O interroga: "O que você ganhou? (...) Eu não fui fiel a você? Senhor. Por quê? Onde você estava? Você sabia? Quem somos nós para você? Me responda. Nós imploramos a você. Nos escute. Luz da minha vida. Eu procuro você. Minha esperança".
Como disse o jesuíta espanhol e missionário no Paraguai, José L. Caravias, falecido em 25 de março deste ano, no artigo intitulado "Rebelião do sofrimento do inocente: Jó", publicado na página eletrônica do IHU, "Jó é um crente rebelde. Ele se rebela contra o sofrimento dos inocentes. (...) Ele reclama diretamente a Deus, mas em vão. Deus está em silêncio". Mas "apesar de tanta dor, Jó continua agarrado a Deus. Ele não entende Deus, mas nunca o representa de forma errada. Ele é tão rebelde precisamente porque acredita e espera em Deus. Ele apalpa, insaciavelmente, para um senso de justiça divina".
Jack, ao contrário da mãe, é aquele crente que observa o mundo, constata sua doença e miséria, a maldade e as injustiças - inclusive dentro do seu próprio núcleo familiar e de si mesmo -, mas percebe que, em meio à desgraça da natureza humana, reina a graça, ainda que não saiba nomeá-la ou compreendê-la. Neste embate, em que natureza e graça são personificados por seu pai e sua mãe, Jack começa um diálogo com Deus. O interpela durante a infância até a vida adulta, quando, de repente, surpreende-se: "Como você veio até mim? Em qual forma? Qual disfarce?"
Ao observar os diferentes comportamentos dos pais, o pai dominado pela natureza e a mãe vivendo em estado de graça, Jack clama para superar a sua condição: "Faça com que eu seja bom, corajoso. Onde você mora? Você está me observando? Quero saber o que você é. Quero ver o que você vê". Quando a maldade se exterioriza em suas próprias ações, ele admite: "O que eu quero fazer, eu não posso. Faço o que eu odeio", assim como nos lembra São Paulo.
Diante da incompreensão da morte de um amigo, ainda na infância, ele não só interroga Deus como também atribui-Lhe a causa da maldade: "Ele era mau? Onde você estava? Você deixou um menino morrer. Deixará qualquer coisa acontecer. Por que tenho que ser bom, se você não é?" E duvida: "Como podemos saber sem ver?" E diante da consciência dos seus pequenos atos de maldade com o irmão mais novo, reage: "O que foi que comecei? O que foi que eu fiz? Como que eu volto?" À medida que vai crescendo, pergunta-se: "O que foi que você me mostrou? Eu não sabia o seu nome, mas vejo que era você. Sempre me chamando. Pai. Mãe. Vocês estão sempre lutando dentro de mim. Sempre estarão".
Assim como fez com Jó, Yahweh não responde aos chamados de Jack. "Ele não lhe diz por que está sofrendo. Mas ele o sobrecarrega mostrando-lhe o quão ignorante e pequeno ele é", diz Caravias.
"Você falou comigo por meio dela. Você falou comigo do céu. Das árvores. Antes de eu saber que amava você, que acreditava em você. Quando que você tocou meu coração pela primeira vez? Nos guarde. Nos guie. Até o fim dos tempos."
E é exatamente isso que Jack percebe na vida adulta, depois de vivenciar uma crise conjugal e existencial: "O mundo não presta mais. As pessoas são gananciosas, cada vez mais. Eles tentam controlar você. Como eu fui perder você? Me desviei. Me esqueci de você. Como ela [a mãe] aguentou a dor [da morte do filho de 19 anos]? Você falou comigo por meio dela. Você falou comigo do céu. Das árvores. Antes de eu saber que amava você, que acreditava em você. Quando que você tocou meu coração pela primeira vez? Nos guarde. Nos guie. Até o fim dos tempos".
Segundo Caravias, "Jó pedia para encontrar Deus (13,15-16). E Deus se manifesta a ele abertamente, embora não como ele queria. Jó queria discutir com Deus (13,20-24). E ele consegue ter Deus presente e convertê-lo. É assim que ele [Jó] o reconhece: 'Agora meus olhos te viram' (42,5)".
Jó, assim como Jack, O reconheceu e, diante da Sua grandeza, abandona a "atitude de reclamação e lamento. Ele renuncia à sua tristeza experiencial, e se entrega confiante nas mãos de Deus. Ele reconhece que Deus tem planos realizáveis, misteriosamente superiores aos que nós humanos poderíamos supor; ele está muito feliz por ter encontrado seu Senhor e está pronto para abandonar sua atitude anterior de reclamação e amargura", explica Caravias.
Imerso em sua crise existencial, Jack revive todo seu passado, atravessa a aridez da vida e, apesar da hesitação, reconhece: "Irmão. Mãe. Foram eles que me levaram à sua porta". E aceita dar o passo definitivo de atravessar a porta estreita e, ao avistar a graça, não lhe resta outra alternativa: cai de joelhos e percebe que, inclusive os maus, em algum momento de sua existência, também foram abraçados pela graça.