06 Março 2020
É indiscutível: A Árvore da Vida marca um ponto de inflexão na cinematografia de Terrence Malick. Não apenas porque ele vira as costas para uma narrativa linear (à qual ele volta com Uma Vida Oculta). Mas porque um elemento temático toma o primeiro plano. Como nomeá-lo? Religião? Não há nada de confessional. Espiritualidade? Seria muito vago ou redutor demais à vida interior. Talvez possamos simplesmente dizer que seu cinema, que levou ao máximo a contemplação da natureza, deixa, por conseguinte, a parte igual à graça.
A reportagem é de François Huguenin, publicada por La Vie, 05-12-2019. A tradução é de André Langer.
É também o programa anunciado pela voz off que abre A Árvore da Vida. O assunto visível é a vida de uma família americana, com suas alegrias e seus dramas. O assunto invisível é de fato a história da humanidade que vive dessa tensão criativa entre natureza e graça, e que se desdobra sem nenhum didatismo nessa história familiar americana. Esta história da humanidade é marcada pelo pecado, um sinal de violência e dominação. Podemos ver essa violência em ação no primeiro filme do cineasta, Terra de Ninguém, que coloca em cena um assassinato original, depois em Cinzas no Paraíso com a invasão de gafanhotos, uma metáfora bíblica da deflagração do mal, em Além da Linha Vermelha quando, no silêncio da luxuriante vegetação do Pacífico, retratada na primeira parte do filme como um paraíso terrestre que faz pensar no filme Tabu (1931), de F. W. Murnau, soa o trovão do fogo, surgimento do inferno.
Nome: Uma vida oculta
Nome Original: A hidden life
Cor filmagem: Colorida
Origem: Inglaterra
Ano de produção: 2019
Gênero: Drama
Duração: 174 min
Classificação: 14 anos
Direção: Terrence Malick
Elenco: August Diehl, Valerie Pachner
Esse mal, que é associado à natureza, bela e boa, mas marcada pelo pecado original, assume em A Árvore da Vida a figura do pai, depois do filho mais velho martirizando seu irmão mais novo em uma imitação implacável. Amor Pleno, Cavaleiro de Copas e De Canção em Canção esclarecerão que esse pecado não é outro senão esse mal radical que é a falta de amor. E com Uma Vida Oculta, mergulhamos diretamente em Tática do Diabo, de C. S. Lewis: tudo é bom para desviar um homem do único caminho, o do amor.
A natureza é, portanto, ao mesmo tempo o lugar dessa beleza, que Malick soube contemplar mais do que qualquer outro cineasta, e da violência que pode ser vista nas imagens da criação em A Árvore da Vida. Porque a matéria – a finitude criada pelo Deus infinito – não é uma gentil varinha mágica como nos contos de fadas. É um arrebatamento do eterno para investir o tempo, uma queda vertiginosa de “Aquele que é” para a contingência, o que Malick filma com intensa violência, mesmo quando é o sinal do amor absoluto: em se dando na finitude, Deus se faz violência. Lá se concentra toda a teologia de Terrence Malick. Nesse gesto da Criação, do qual toda lógica nos escapa, evento único e absoluto, manifesta-se o que marcará a condição humana: uma dupla origem ontológica, a do dom da graça e a da herança da natureza, bela e mortífera ao mesmo tempo.
O sinal da graça, por conseguinte, será a obsessão de Malick. Como explicar isso através da câmera que filma a natureza e os corpos? Antes dele, Dreyer, Bresson, Bergman, Rossellini e Tarkovski sabiam fazer isso, cada um à sua maneira. Para Malick, isso passará por um novo estilo. Uma câmera que vem, em planos sequenciais de uma fluidez inimaginável, representar o Espírito que paira sobre a tetralogia iniciada por A Árvore da Vida. Uma voz off, já presente em Além da Linha Vermelha, que, deslocada da imagem e da ação, significa a voz da interioridade. Uma desestruturação da narrativa, também, que a crítica não entendeu: a graça não se satisfaz com uma exibição linear. A inversão de seu estilo com A Árvore da Vida é o sinal de uma conversão, no sentido próprio de uma mudança de direção do olhar.
Não enfatizamos o suficiente que essa nova orientação para a graça seja concomitante com uma contribuição autobiográfica em seus filmes. A Árvore da Vida é claramente marcado pela infância do cineasta, com o personagem da mãe que encontramos no camponês de Uma Vida Oculta (e pontilhado em Cinzas no Paraíso). Amor Pleno evoca muito claramente o que sabemos sobre seus relacionamentos conjugais. Cavaleiro de Copas e De Canção em Canção retratam um vazio abissal que se refere aos seus 20 anos de deserto entre Cinzas no Paraíso (1978) e Além da Linha Vermelha (1998). No cinema de Malick, a irrupção da graça é acompanhada por elementos autobiográficos. Como se quisesse enfatizar que a graça não se manifesta sem a Encarnação.
Esta encarnação, presente desde o primeiro filme, continua a ganhar densidade, até Uma Vida Oculta onde o herói é crístico. Mas não vamos fazer disso a conclusão do cinema de Malick. As cenas de pura graça abundam em todos os seus filmes: o final de A Árvore da Vida mostrando a entrada pela porta estreita do Reino; a cantora Patti Smith introduzindo Faye na misericórdia; a heroína perdida de De Canção em Canção. Finalmente, na humilhação da prisão e da tortura, Franz Jägerstätter recebe o dom da liberdade interior que lhe permite, até o final, dizer não ao mal absoluto. A vantagem do cinema de Malick é que não são os nossos pecados que contam, mas o amor que por si só pode triunfar sobre o mal. Pela graça.
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Terrence Malick, cineasta da natureza e da graça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU