Quando foi lançado nos cinemas em 2011, A Árvore da Vida, filme do diretor, roteirista e produtor norte-americano Terrence Malick, foi aclamado por uns como obra-prima e rechaçado por outros pela falta de linearidade e explosão de imagens que parecem completamente sem sentido quando contrapostas ao drama vivido pela família O'Brien.
Entre aqueles que elogiaram a produção à época, Peio Sánchez Rodríguez, professor de teologia, especialista em educação audiovisual pela Universidade Pontifícia de Salamanca e doutor em teologia dogmática pela Universidade Salesiana de Roma, declarou que A Árvore da Vida acabou "se convertendo em um louvor", porque "o filme é um chamado à conversão ao mistério da presença eloquente, escondida e também dramática, em meio ao pecado e à morte, da Graça".
Para Rodríguez, A Árvore da Vida "revela o artista capaz de se expressar através do cinema, o pensador que se assenta na tradição filosófica, teológica e musical, e o crente que quer moldar sua experiência de Deus. Tal intenção nos leva a uma obra complexa que pode ser contemplada a partir de uma certa simplicidade, mas que não funcionará como filme comercial". Segundo ele, a obra de Malick "provoca uma experiência estética, convida a adentrarmos na experiência da graça e deixa um pouso reflexivo que exige tanto a revisitação – aqui a repetição será obrigatória – quanto a contemplação e o diálogo". E arremata: "Esse filme se converterá para os cinéfilos em obra de culto e, para o cinema espiritual, uma referência".
Em artigo publicado no sítio do IHU em 2011, Rodríguez analisa o filme em três níveis narrativos: o primeiro conta a história da família O'Brien, que vive no Texas nos anos 1950; o segundo se expressa através das imagens e da música "que dão à história um alcance cósmico e universal"; e o terceiro nível "tem a forma de uma oração que é pronunciada fundamentalmente perante Deus pelos três personagens principais – mãe [Jessica Chastain], pai [Brad Pitt] e filho mais velho [Sean Penn]. Nessas orações harmonizadas com as imagens e a trilha sonora, oferece-se o fundo teológico que manifesta a presença e a busca de Deus, o encontro e a ausência do Mistério, a graça e a natureza, a dor e o pecado, a conversão e, por fim, o louvor", pontua.
Outro admirador da obra foi o editor de cultura da revista America, dos jesuítas dos EUA, James Martin. Ao compreender o filme como "meditação", ele disse que A Árvore da Vida foi um dos poucos filmes que o "forçaram a rezar" a partir deles. "Eu sou muito religioso (um eufemismo) e havia lido que A Árvore da Vida abordava às vezes aquelas que são abominavelmente chamadas de 'As Grandes Questões' sobre a religião. Mas estava despreparado para o poder do filme, que é como viver dentro de uma oração", comentou em artigo publicado na página do IHU.
Um dos aspectos mais significativos do filme para Martin é que Malick "se atreve a fazer as grandes perguntas" diretamente, as quais são formuladas em diferentes momentos da vida pelos membros da família O'Brien: pelas crianças, na infância, a partir da constatação da existência do mal e da incompreensão da morte de um amigo; pelos pais, diante da morte de um filho de apenas 19 anos e na vivência do luto; e na vida adulta do filho mais velho, que sente dentro de si próprio a tensão entre o bem e o mal e se pergunta sobre a existência de Deus. "Ironicamente, enquanto a sequência da vida da família pode parecer cíclica, as perguntas decididamente não o são. São claras e distintas, para citar Descartes, como os tipos de questões que muitos fiéis têm. E elas são dirigidas de forma clara e distinta a Deus: 'Quem é você?', 'Você se preocupa conosco?' E a minha questão favorita e inesperada, quando algo trágico acontece no mundo dos meninos, razão pela qual o menino mais velho responsabiliza Deus: 'Por que eu deveria ser bom se você não é?' Malick se esforça para responder a essas questões durante todo o filme, mas também particularmente na sua (agora conhecida) sequência que tenta ilustrar nada menos do que a criação do universo", afirma.
O jesuíta também identifica na obra a celebração da meta inaciana, budista e cristã da conscientização. "O filme nos convida a estar acordados. Atentos. Vivos. Malick nos ajuda a ver a beleza no cotidiano. E, ah, é lindo! O rosto de um bebê segurado firmemente contra o corpo de uma mãe. Árvores. Uma criancinha dando seus primeiros passos em um gramado, segurando as mãos do pai. Meninos correndo pela alta grama do verão. Bolhas de sabão. Até mesmo um caminhão que passa pulverizando o bairro com uma nuvem nociva de DDT e na qual as crianças dançam alegremente parece sublime. O filme de Malick diz: 'Olhe'", insiste.
Em parceria com Faustino Teixeira, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora, e com o Canal Paz e Bem, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu, na última quarta-feira, 24-03-2021, o evento on-line Filmes em Perspectiva. Teixeira, o jornalista Mauro Lopes e Rodrigo Petronio, doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, comentaram A Árvore da Vida.
Um dos pontos centrais do debate foi a divergência entre Teixeira e Petronio sobre como compreender a dualidade entre a natureza e a graça, apresentada nas primeiras cenas do filme, a partir da narração do seguinte trecho:
"As freiras nos ensinaram que há dois caminhos na vida: o caminho da natureza e o caminho da graça. É preciso escolher qual irá seguir. A graça não tenta agradar a si mesma. Ela aceita ser menosprezada, esquecida, malquista. Aceita insultos e ferimentos. A natureza só quer agradar a si mesma... convence outros a agradá-la. Gosta de mandar nos outros para conseguir o que quer. Acha motivos para ser infeliz, enquanto o mundo está feliz ao seu redor. O amor se manifesta em todas as coisas. Ensinaram que ninguém que segue o caminho da graça sofrerá desgraça."
Que conclui com a promessa:
"Eu serei fiel a você, aconteça o que acontecer."
Na interpretação de Petronio, o jogo de imagens que faz alusão à formação e ao fim do universo e a luz que permeia o filme, juntamente com os conflitos e dramas da família O'Brien, são uma tentativa do diretor de mostrar que não existe um dualismo entre natureza e graça. "Minha tese é que Malick faz uma confluência entre natureza e graça. Não é exatamente um panteísmo, mas é uma coisa muito difícil de definir porque é como se a graça já estivesse manifesta na própria natureza. Ele faz essa junção entre natureza e graça justamente apoiado na questão da luz. Se formos observar, quase todas as tomadas do filme são feitas de baixo para cima, com a iluminação do céu incidindo. Podemos ler este filme a partir dessa chave da iluminação, como uma disrupção de alguma qualidade, de um outro grau no interior da própria natureza, que emerge como luz. É como se Malick estivesse enfatizando conscientemente um certo regime de imagens para mostrar a graça que emerge na natureza. Só que a graça tem uma dimensão cosmológica e ela não é – e é arriscado eu falar isso – exatamente divina, porque Deus não é tematizado... É tematizado no começo, na passagem do velho testamento e na passagem de Santo Agostinho, mas é como se a graça estivesse enfronhada na própria natureza, é imanente à própria natureza e por isso aparece a ideia do início e do fim do cosmos", argumenta.
Faustino Teixeira reagiu categoricamente à interpretação de Rodrigo Petronio: "Eu tenho um pouco de dificuldade com a sua interpretação porque ela é provocadora quando você fala que não há separação entre natureza e graça. Não é à toa que Malick escolhe Jó e Agostinho, que é o homem da separação. Agostinho diz que se você deixar o ser humano sozinho, ele só consegue pecar. Ou seja, o ser humano entregue à natureza é incapaz de captar o bem. O impacto maior que me deu ao ver o filme foi a presença do livro de Jó. A senhora O'Brien 'só toma cacetada', uma atrás da outra, e não perde a leveza. A experiência do luto [no filme] também é um momento em que desaba uma perspectiva diferente de poder perceber que é possível espiritualidade no mundo".
Petronio reconheceu que "a possibilidade de união entre natureza e graça é difícil de rastrear no filme", mas explicou seu ponto central. "Estou pensando de modo a evitar o dualismo. Muitos pensadores mencionam a existência de uma diferença ontológica entre natureza e graça – é difícil rastrear onde começa essa distinção, para que a gente não retroaja ao maniqueísmo. Por isso, sinto que o recurso da cosmologia, com o recorte do universo, é como se Malick estivesse dizendo que essa graça é imanente ao universo. Não sei se seria um deus espinosista. Mas a tensão é posta e existe um antagonismo entre a graça (a esposa – senhora O'Brien) e a natureza (o marido – senhor O'Brien), mas essa graça também se manifesta em outros momentos do filme".
Teixeira reiterou seu posicionamento, exemplificando como a distinção entre natureza e graça se manifesta na personificação do senhor e da senhora O'Brien. "Vendo o filme A Árvore da Vida, me espanto com algumas coisas. Por exemplo, não há nenhum gesto de carinho entre o marido (senhor O'Brien) e a mulher (senhora O'Brien); há carência radical de generosidade, de amor, quer dizer, o marido é domado pela natureza enquanto a mulher é o império da generosidade e da graça. A tensão se coloca ali. Assim como o irmão mais velho é o império da natureza e é o que mais se apropriou da vida do pai, que quis impor um modelo de sucesso e domínio aos filhos. Em vários momentos do filme, o irmão mais velho faz maldades com o mais novo. Quem vive a experiência da família como eu há 43 anos, fica chocado. Quando o pai (senhor O'Brien) passa um tempo fora de casa, é a alegria de todo mundo, é a festa, a dança, mas quando o pai volta, vai todo mundo para o carro receber as malas. Ou seja, é possível haver redenção para a natureza e a redenção acontece no momento do fracasso. Quando o marido é obrigado a exercer um cargo menor, a partir dali muda a dinâmica da relação e talvez ali ele se disponibilize mais para ouvir os apelos desesperados que são não só da família, mas da espécie humana". E acrescentou: "Vejo neste filme de Malick um apelo desesperado da espécie humana pela graça, pela delicadeza, pela cortesia, mas o mundo não é assim".
Petronio explicou ainda a possível influência do filósofo Martin Heidegger na produção de Malick. "Malick é estudioso de filosofia, estudou Heidegger e há uma questão metafísica [no filme], da própria luz que banha todo o filme. É a noção de iluminação do ser, de abertura, de desvelamento do ser enquanto ser, que Heidegger chama de diferença ontológica, ou seja, quando um ser de outro grau emerge, justamente porque o ser humano percebe a sua precariedade. Aí ele [o ser humano] consegue se apreender na sua existência e consegue ter a revelação deste outro grau de ser que, segundo Heidegger, não é da natureza das coisas. E Heidegger usa diversas metáforas de luz para isso".
Na próxima quarta-feira, 31-03-2021, Teixeira e Petronio comentarão os dois primeiros episódios da série Decálogo (1989), de Krzysztof Kieślowski: Amarás a Deus sobre todas as coisas e Não tomarás o santo nome de Deus em vão. O evento será transmitido no canal do IHU no YouTube e no Canal Paz e Bem.