30 Agosto 2016
"Os eventos trágicos nos revelam uma dupla face do ser humano: o ausente, irresponsável, cínico que, infelizmente, nós bem conhecemos. Mas também o radicalmente ‘humano’, o da compaixão, da dedicação espontânea, voluntária, do se lançar em socorro de desconhecidos, do humaníssimo gesto de chorar com os outros, de reencontrar – justamente escavando entre os escombros da dor – a pertença à única família humana que tinha se perdido."
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Avvenire, 27-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O dia do funeral das vítimas do terremoto [na Itália] é o momento em que a dor dos indivíduos assume uma dimensão e uma visibilidade comunitária, social. Nos caixões, que sempre são muitos, insuportavelmente muitos, eles encerradas as esperanças daqueles que ficaram debaixo dos escombros e daqueles que saíram destruídos desses escombros nos seus sentimentos mais caros.
De modo misterioso, os verdadeiros celebrantes do rito fúnebre são precisamente os mortos: de fato, são as suas vidas despedaçadas, a comunhão que alimentavam ao seu redor, o amor de que se mostraram capazes que convocaram aqueles que os amaram e aqueles que descobriram tragicamente a fragilidade de toda existência, a solidariedade na fraqueza humana comum. Não há palavras à altura para esses eventos: o que cabe a nós todos é assumir, cada um com os próprios limites, a responsabilidade de se fazer próximo com humildade e na compaixão.
Há alguns dias, não cessam de ressoar duas perguntam que são um único grito de dor: "Por quê?" e "Deus, onde estás?". São perguntas antigas como o mundo e brutalmente novas diante de cada catástrofe. Acima de tudo, são perguntas que cada um sente brotar em si de repente, depois que, muitas vezes, pôde se iludir de que diziam respeito apenas aos outros. Além disso, mais ainda do que a força das imagens transmitidas pela mídia, basta a evocação de um lugar conhecido, a semelhança com um rosto familiar, a recordação de uma amizade distante para tornar a desgraça próxima, nossa.
O "porquê" diz respeito às causas do terremoto, que nunca são apenas naturais e que deveriam ser abordadas com lucidez e seriedade imediatamente, mas ainda mais nas fases posteriores, para dar não uma resposta, mas um fim a esse "porquê" e torná-lo um "para que", de modo que o "nunca mais!" não ressoe como promessa genérica, reiterada de modo escandalosamente inútil em toda calamidade.
"Deus, onde estás?", ao contrário, é a interrogação que abala a nossa fé no Deus que nos foi narrado pelo Seu filho Jesus: um Pai que não castiga nem pune, mas que perdoa, permanece misericordioso e convida a todos a não pecar mais. É a antiga pergunta relançada por Voltaire depois do terremoto de Lisboa de 1755: "Ou Deus é onipotente e, então, é mau, ou Deus é impotente e, então, não é o Deus em que os homens acreditam".
Porém, toda a tradição espiritual judaica e cristã nos diz que Deus não é distante, está com as vítimas, ao lado delas, de alguma medida participa dos sofrimentos humanos e acompanha silenciosamente cada uma delas para abraçá-la para além da morte e lhe dar a vida promessa que foi contradita e negada na história. Deus é misericordioso, compassivo, fiel no amor: Ele nos acompanha sem nunca nos abandonar, mesmo se o mal, o sofrimento e a morte continuem sendo um enigma que só com dificuldade, graças à fé e a Jesus Cristo, pode se tornar mistério de vida.
Mas nos perguntemos também: Deus pode intervir no mundo com eventos dos quais Ele é protagonista sem a ação dos seres humanos? Ele pode intervir castigando ou fazendo materialmente o bem sem a cooperação dos seres humanos? Ou Deus intervém apenas enviando o Seu espírito na mente e no coração das pessoas que, depois, agem pelo bem ou pelo mal? Muitos cristãos, hoje, estão persuadidos de que o mundo tem uma autonomia própria em relação a Deus, que somos verdadeiramente livres, e que Deus não pode nos forçar nem com o castigo nem com o prêmio terreno e que, portanto, a verdadeira pergunta a ser feita é: "Onde está o ser humano?".
Rousseau já respondia nestes termos à interrogação de Voltaire. Sim, onde está o ser humano com as suas responsabilidades concretas na falta de prevenção, na má gestão do território, na prevalência do interesse pessoal sobre o comum? Porém, esses trágicos eventos nos revelam uma dupla face do ser humano: o ausente, irresponsável, cínico que, infelizmente, nós bem conhecemos. Mas também o radicalmente "humano", o da compaixão, da dedicação espontânea, voluntária, do se lançar em socorro de desconhecidos, do humaníssimo gesto de chorar com os outros, de reencontrar – justamente escavando entre os escombros da dor – a pertença à única família humana que tinha se perdido. Eis onde está o ser humano, na sua verdade mais profunda: ali, de mãos nuas e de coração aberto, ao lado do irmão, da irmã na desgraça.
Mesmo hoje, quando estamos sem palavras, devemos nos repetir uns aos outros que a última palavra não é e não será a morte, mas a vida plena que Deus dá a todos nós, seus filhos e filhas: a última palavra caberá a Deus, na Páscoa eterna, quando Ele enxugará as lágrimas dos nossos olhos, destruirá a morte e, perdoando o mal por nós cometido, transfigurará esta terra em terra nova, morada do seu Reino.
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Destruição, morte e humanidade: onde Deus está? Onde está o ser humano? Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU