09 Agosto 2016
"Somos chamados a nos exercitar na capacidade de ver a humanidade, como os três discípulos viram-na em Jesus: uma ‘visão’ de Deus, ao menos para nós, um rastro de Deus. Ser homens e mulheres destinatários da transfiguração significa também ser capazes de mudar o olhar para ver o invisível no rosto humano, e ali ver Deus."
Publicamos aqui a homilia do monge italiano Enzo Bianchi, na liturgia da vigília da Transfiguração, proferida no Mosteiro de Bose, em 05-08-2016, e publicada no blog Sperare per Tutti. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Queridos irmãos e irmãs,
Estamos em vigília na noite, como na Páscoa e no Natal, para dizer e cantar juntos a nossa fé no Senhor Jesus Cristo. O mistério que celebramos é sempre o da vitória de Jesus ressuscitado sobre a morte: mistério que nesta noite contemplamos no evento da transfiguração ocorrida no alto da montanha como revelação, apocalipse, para três discípulos, os mais íntimos de Jesus, os chamados ao envolvimento total com o seu abaixamento e a sua glorificação.
É o evangelho segundo Lucas que, neste ano, nos torna destinatários e testemunhas da transfiguração, e nós, portanto, escutamo-lo mais uma vez, convencidos de que a escuta é a nossa vocação, que a escuta é a nossa porção, que a escuta é o que nos é possível nos nossos dias de vida.
Jesus sobe à montanha "para rezar", diz o terceiro Evangelho, colocando assim a transfiguração no espaço da oração de Jesus: o Seu batismo também tinha ocorrido enquanto ele rezava (cf. Lc 3, 21-22), a confissão de Pedro também acaba de ser colocada no espaço da oração de Jesus (cf. Lc 9, 18-20), e outras ações decisivas de Jesus, como a escolha dos Doze (cf. Lc 6, 12-16), também encontram a sua inspiração e a sua força na Sua oração. Na oração, portanto, Jesus revela aos seus a própria relação com Deus, e estes "veem a sua glória". O que aconteceu?
Marcos e Mateus nos dizem que Jesus "foi transfigurado" (metemorphóthe: Mc 9, 2; Mt 17, 2), Lucas escreve que "o seu rosto mudou de aparência". Os Evangelhos sinóticos tentam, buscam dizer aquilo que não pode ser expressado, mas que foi uma experiência de Pedro, Tiago e João. No alto da montanha, Jesus não foi visto por eles na sua condição normal de homem frágil e mortal, mas de outra forma: radiante de luz, radioso de luz, esplendoroso como o Senhor cantado pelo Salmo 76 ("tu és luminoso e célebre": v. 5a) e pelo Salmo 104 ("envolto em luz como em um manto": v. 2a).
Para dizer com uma linguagem paulina, aquele que era "en morphê theoû", "em forma de Deus", e tinha assumido a "morphé doúlou", "a forma de escravo" (Fl 2, 6-7), agora retoma a forma de Deus e, portanto, resplandece.
Cumpre-se, assim, a profecia de Isaías: "Então se revelará a glória do Senhor, e todo o mundo junto a verá" (Is 40, 5), e acontece aquilo que é testemunhado pelo quarto Evangelho: "E a Palavra se fez carne e armou a sua tenda entre nós, e nós contemplamos a sua glória" (Jo 1, 14).
Mas aqui nós nos fazemos uma pergunta. Como em Marcos e em Mateus está escrito que Jesus "foi transfigurado émprosthen autôn, diante deles" (Mc 9, 2; Mt 17, 2), e apenas diante deles, então nos perguntamos: é o corpo de Jesus que se transfigurou, ou foram os discípulos que, por graça uma revelação, viram na carne frágil e humana de Jesus a Sua glória divina?
Orígenes já se fazia tal pergunta e concluía que foram os discípulos que sofreram uma transfiguração da sua visão na fé, até ver na humanidade do Servo, na forma do escravo, a forma de Deus (cf. Comentário a Mateus XII, 37, 1-21; sobre Mt 17, 2).
Mas, para que essa revelação, esse apocalipse seja autêntico e definitivo para os discípulos, eis também a visão da Lei e dos Profetas, de Moisés e de Elias que conversam com Jesus. Moisés e Elias, servos do Senhor, aparecem aqui na condição gloriosa de vivos junto de Deus, como testemunhas da glória de Jesus. A Lei e os Profetas que, no alto da montanha, tinham visto a teofania, a manifestação de Deus e da Sua glória (cf. Ex 19, 16-25; 24, 12-18; 33, 18-34; 28; 1Reis 19, 8-18), agora, no alto da montanha, veem a cristofania, a manifestação do Messias Jesus!
Esta é a manifestação da Palavra de Deus dita pela Lei e pelos Profetas e feita carne em Jesus. Não por acaso, segundo Lucas, Moisés e Elias serão testemunhas e intérpretes do túmulo vazio: serão eles – "com roupas brilhantes" (Lc 24, 4), assim como aqui é brilhante a veste de Jesus – que revelarão às mulheres discípulas que Jesus é o Ressuscitado, o Vivente (cf. Lc 24, 4-7).
Mas a visão, a phanía, é explicada pela voz que desce do céu, a voz do Pai que proclama: "Este é meu Filho, o eleito; escutem-no!". Palavra de Deus sobre Jesus escutada pelos três discípulos: "Este é o Filho", eis a relação entre Deus e Jesus. Jesus é o Messias Filho de Deus, de que fala o Salmo 2, 7, e, portanto, Deus é seu Pai. E, como homem nascido de Maria, é proclamado "o eleito", como o Servo profetizado por Isaías (cf. Is 42, 1): Filho e Servo ao mesmo tempo, Filho amado e Servo escolhido, eleito entre os homens.
O Deus invisível se faz escutar, para indicar que, agora, a escuta deve ser dirigida ao Filho. E, assim, se cumpre a promessa feita por Deus na Torá: "O Senhor seu Deus fará surgir, dentre seus irmãos, um profeta como eu em seu meio, e vocês o ouvirão!" (Dt 18, 15). A escuta do Deus invisível significa escuta do Filho, de Jesus, do Servo, do Eleito, do Profeta definitivo depois do qual não haverá outro. "Shema’ Jisra’el, escuta Israel!" (Dt 6, 4) ressoa agora como: "Escutem a Ele, Jesus!".
Eis a mensagem do evento da transfiguração: é preciso escutar Jesus. Mas isso deve ser bem compreendido: a escuta de Jesus é escuta da palavra do Evangelho e não de outras palavras, é escuta daquilo que Jesus disse e fez, é escuta da Sua humanidade, aquela humanidade que Ele viveu conosco, compartilhando-a em tudo, em tudo, sem se isentar do amor do Pai.
É significativo que Lucas conclua: "Jesus ficou sozinho", o que significa não a Sua solidão, mas que os discípulos, depois da revelação, viam apenas Jesus, viam um homem. Viam um homem como antes, mas com a graça da revelação, a partir daquele momento, na humanidade de Jesus, podiam ver Deus. Os discípulos, portanto, são convidados a um caminho que é bem resumido por um dito de Jesus relatado por Clemente de Alexandria: "Você viu o seu irmão, um homem? Você viu Deus" (Stromati I, 19, 94).
Concluo a reflexão com um alerta dirigido para mim e para vocês, amigos. Somos chamados a nos exercitar na capacidade de ver a humanidade, como os três discípulos viram-na em Jesus: uma "visão" de Deus, ao menos para nós, um rastro de Deus. Ser homens e mulheres destinatários da transfiguração significa também ser capazes de mudar o olhar para ver o invisível no rosto humano, e ali ver Deus...
No nosso horizonte, está a promessa do profeta Malaquias: "Para vocês que temem o Senhor, brilhará o sol da justiça, que cura com seus raios" (Mal 3, 20). Sol que, iluminando os rostos dos humanos, tão feridos, chagados, sujos, irá curá-los e os fará aparecer a nós como os rostos dos irmãos de Jesus, dos filhos de Deus, de Deus mesmo!
Permitam-me aqui recordar o grande empenho e serviço da hospitalidade monástica que assumimos e que, até agora, caracterizou a nossa vida aqui em Bose. Empenho em receber o hóspede, o outro, como Cristo mesmo, porque, no último dia, Ele nos dirá: "Era forasteiro e me acolhestes" (Mt 25, 35). É como diz Bento na sua Regra: "Diante dos hóspedes que chegarem ou partirem, a cabeça se inclinará ou se prostrará ao chão, adorando neles o Cristo que se acolhe na pessoas deles" (53, 6-7).
Na nossa vida, não fazemos grandes coisas, não temos nenhum poder, nem na Igreja nem no mundo, mas somos animados pela paixão de ver em cada homem ou mulher a Deus mesmo.
Este é o mistério da transfiguração: "Você viu o seu irmão, a sua irmã? Você viu a Deus".
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Ver o rastro de Deus no irmão e na irmã. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU