12 Novembro 2020
"É emocionante ler as páginas finais de Pais e Filhos justamente porque elas nos mostram que independentemente das posições teóricas que separam Pável e Bazárov, que tentam justificar o sentido da vida ou reivindicar para si a melhor compreensão da realidade, é na cena pacata e sempre celebrada diante da morte e dos nossos mortos, que a vida se revela em toda plenitude através do Amor".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
A obra de Turguêniev, Pais e Filhos, é referência literária sobre o problema filosófico do niilismo, ao apresentar dois antagônicos: Pável, que representa a tradição - seja lá o que ela significa e, como explica o Prof. Dr. Roberto Wu (UFSC), a tradição na obra de Turguêniev refere-se às gerações anteriores, tendo em vista a nova - e Bazárov, o cientista, que no fundo é um niilista, símbolo do progresso sem alma, que foi tocado pelo Amor, mas não se rendeu a Ele.
Muitos já escreveram com propriedade sobre a discussão do niilismo em Pais e Filhos, então, gostaria de colocar o acento da minha leitura em outro ponto, mais precisamente, no último parágrafo da obra. É emocionante ler as páginas finais do livro justamente porque elas nos mostram que independentemente das posições teóricas que separam Pável e Bazárov, que tentam justificar o sentido da vida ou reivindicar para si a melhor compreensão da realidade, é na cena pacata e sempre celebrada diante da morte e dos nossos mortos, que a vida se revela em toda plenitude através do Amor.
Kierkegaard nos lembra, em Obras do Amor, que recordar a pessoa falecida é uma obra do amor desinteressado. Deve ser porque não é o amor egoísta, aquele que nos sufoca e nos impede de verdadeiramente amar nossos próximos, porque na verdade não é a eles que desejamos amar com total entrega primeiramente e fundamentalmente. Mas depois que a busca pelo Verdadeiro Amor acaba, a alma se dilata e Ele transborda na forma de caridade por causa daquele Amor que tanto nos ama e nos permite amar despretensiosamente.
Aliás, aquele Amor deve ter arrebatado Kierkegaard de modo fulminante, para que ele pudesse nos ensinar a amar os falecidos, que nada mais têm a nos oferecer depois de virarem pó. Talvez seja por isso também que o filósofo dinamarquês insiste tanto em discutir o cristianismo e a criticar os cristãos do seu tempo e, de outro lado, talvez seja pela mesma razão que a Igreja Santa e pecadora insiste em dedicar um dia do ano para fazer memória aos mortos e, todos os dias, em seus Ofícios, recorda seus santos falecidos.
Aí está outro aprendizado: a filosofia é o que é justamente porque é universal, sempre atual, seja pouco mais de um século depois da morte de Kierkegaard, que completou aniversário de morte nesta semana, 11-11, seja dois mil anos depois. Apesar de velha e cheia de pó, ela continua nos dizendo algo, enquanto páginas e páginas de "novidades" escritas incessantemente vão para a lata do lixo em menos de uma década para jamais serem lembradas. Aliás, como nos sugere um professor dos tempos da graduação, é preciso avaliar se realmente vale a pena investir tanto tempo nas novidades teóricas ou se é melhor se agarrar ao essencial e, a partir dele, buscar o novo que nos desafia.
Mas deixe-me situar o leitor que ainda não teve o prazer de ler Pais e Filhos no parágrafo final da obra que mencionei anteriormente. Os pais de Bazárov, pessoas tão comuns como nós próprios ou outros tantos que todos conhecemos, diferentemente do filho jovem e cientista, que no fim das contas era um niilista entregue ao vazio do nada porque recusou dobrar os joelhos diante do Amor de Ana Serguêivna - que era a ocasião para alcançar Aquele Amor -, dobram.
Como Turguêniev nos mostra de forma tão realista, eles não cansam de dobrar os joelhos, mesmo decrépitos, depois das incansáveis vezes que atravessam o "pequeno cemitério rural", com "aspecto triste" e repleto de valas que foram "cobertas pelo mato há muito tempo". Ajoelhados ao pé da "pedra muda" sob a qual jaz o seu filho, "espanam a poeira da pedra, ajeitam um ramo do abeto e rezam outra vez", nos diz Turguêniev, preparando o terreno para lançar uma das questões das questões: "Será que suas orações, suas lágrimas, são infrutíferas? Será possível que o amor, o amor abnegado, sagrado, não seja onipotente?".
E, nesse ponto, os escritores russos são o que são porque repetem a resposta mais velha da face da Terra de diferentes formas, exclamando com uma confiança que se recusa absolutamente ao contrário, por convicção interior: "Ah, não! Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza 'indiferente'; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita...".
Arkady, amigo e admirador de Bazárov, o ingênuo que estava em busca do Amor, teve um destino diferente. Mas isso é conversa para outro dia.
Pais e Filhos é uma obra reveladora. Li como se fosse uma criança esfomeada, anos atrás, para buscar um respiro entre um e outro livro de filosofia mal lido, que me levava àqueles becos sem saídas, embora fundamentais para exercitar o pensamento. Aliás, os grandes filósofos sempre chamam atenção para os problemas e não para as respostas. Deve ser porque eles sabem o que isso significa.
O problema do niilismo me encanta, mas não porque eu o advogo. Ao contrário, porque não consigo encontrar absolutamente nenhum sentido nele e tampouco acredito que a maioria de nós seja niilista. Não é este o problema; não é uma questão de crença. Todos conhecem o Amor e alguns até creem nele em maior ou menor grau. A diferença reside no fato de que nem todos aceitam dobrar os joelhos diante Dele e reconhecer a nossa pequenez diante de tamanha grandeza, entregando-se ao seu abandono. Mas os nossos velhos sábios também nos ensinam que é mais fácil e menos doloroso aceitar a realidade do que lutar contra ela a vida inteira.
A escolha, no entanto, depende de uma conversão pessoal de cada um e de uma disposição para doar sem receber, amar sem medida. Mas doar e doar sem ser recompensado? De novo essa lorota cristã?!, vão perguntar alguns. Mas é justamente aí que reside o segredo, o pulo do gato que só quem vivencia o encontro compreende: recebe-se abundantemente, de tal modo que sempre é possível dar mais e mais e aí, o Amor do qual nos fala Santa Teresinha do Menino Jesus em "História de uma Alma", aquela velha utopia que nos move na construção de grandes edifícios - que acabam sendo construídos com outros alicerces e de repente desmoronam sem explicação e deixam a todos abismados, quando não há surpresa nenhuma a se constatar - nos convida novamente à santidade. A escolha, só para repetir mais uma vez, é de cada um.
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Sobre Pais e Filhos e o convite para dobrarmos os joelhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU