12 Mai 2024
Marcelo Dutra da Silva alertou em 2022, na Câmara de Pelotas, que eventos extremos seriam mais frequentes e cidades gaúchas não estavam preparados.
A entrevista é de Luis Gomes, publicada por Sul21, 09-05-2024.
Viralizou nas redes sociais nos últimos dias, após a rápida escalada dos impactos das chuvas e enchentes no Rio Grande do Sul, uma manifestação feita por Marcelo Dutra da Silva, professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), na Câmara Municipal de Pelotas (RS), em junho de 2022, em que ele apresenta dados de suas pesquisas sobre mudanças climáticas e alerta para a possibilidade das cidades enfrentarem inundações em áreas que nunca haviam sido atingidas anteriormente. Em conversa com o Sul21, o professor alerta que os fenômenos extremos como os que o estado vem enfrentando desde o ano passado já eram esperados e que exigem que as cidades se adaptem. Em alguns casos, isso significa que elas não podem mais voltar a ser o que eram antes.
“Não dá para ficar insistindo mais em construir e reinstalar infraestruturas públicas e áreas residenciais urbanas em ambientes que a gente sabe que são de risco, porque ou estão muito próximos de um leito de um corpo hídrico, que é vale de inundação, ou porque estão encaixados num vale e é área de captação onde toda uma água, um grande volume de chuva, vai percorrer e vai inundar. Então, a gente precisa fazer muito diferente daqui pra frente”, diz.
Para o professor, o rastro de destruição deixado pelas chuvas no RS deve servir de alerta para que a legislação ambiental deixe de ser flexibilizada e exigirá, em alguns casos, torná-la mais restrita. Além disso, avalia que qualquer novo projeto de infraestrutura deve levar em conta a realidade das inundações. “A partir de agora, um banco público jamais deveria fornecer crédito se a ideia for empreender numa área de risco. Ou fornecer crédito se a ideia for adquirir um imóvel numa área de risco”, diz.
A seguir, confira a íntegra da entrevista com o professor Marcelo Dutra da Silva.
Sul21 — Quais são os principais desafios que o Estado vai ter do ponto de vista ambiental, mas também na reconstrução pós enchentes?
Marcelo Dutra da Silva: Eu creio que nós vamos ter primeiro um desafio tremendo de sensibilização das pessoas que as mudanças climáticas são uma realidade que nos toca já há algum tempo, que a gente vem vivendo os sucessivos eventos extremos e que este nos pegou com uma maior magnitude. Pegou essa região, e poderia pegar qualquer outra região, então isso já vem sendo alertado há algum tempo e a gente não deu muita atenção, não deu muita bola. Aí quando eu digo a gente não deu atenção, a sociedade de forma geral não vem dando muita atenção e a gente continua construindo as nossas cidades em lugares que são mais vulneráveis e suscetíveis a receber grandes impactos como esse. Então, daqui para frente, na ideia de uma reconstrução, a gente tem que ter uma estratégia um pouco mais inteligente. Não dá para ficar insistindo mais em construir e reinstalar infraestruturas públicas e áreas residenciais urbanas em ambientes que a gente sabe que são de risco, porque ou estão muito próximos de um leito de um corpo hídrico, que é vale de inundação, ou porque estão encaixados num vale e é área de captação onde toda uma água, um grande volume de chuva, vai percorrer e vai inundar. Então, a gente precisa fazer muito diferente daqui pra frente.
Essa nossa estratégia agora de reconstrução precisa necessariamente estar vinculada a uma ideia de prevenção e adaptação às mudanças climáticas. Este é o ponto. Então, todos esses municípios, sejam os atingidos ou os que estão vivendo tensão, como agora o meu, Pelotas, Rio Grande é onde eu trabalho, nós estamos apreensivos porque a Lagoa vai subir. E ela está aos poucos subindo, está aos poucos invadindo, estou falando isso porque a gente presenciou em 1941 um evento como este e os de agora estão mais intensos. Este, em particular, está muito mais intenso, e a gente não está nada preparado para isso. Então, eu espero que mesmo a gente lembrando que essa é uma tragédia terrível, mas que isso a gente leve como um aprendizado para tornarmos as nossas cidades um pouco melhores, do ponto de vista da segurança climática. Precisamos entender que isso não foi obra do acaso, isso é algo que faz parte de um contexto de sucessivos eventos que vão continuar se repetindo. E se repetindo no El Niño no caso da chuva, se repetindo em estiagem em momentos de La Niña. Não tem como a gente desconsiderar isso nas próximas autorizações, licenças e construção de cidades, que algumas vão ter que, se não saírem totalmente, vão ter que migrar boa parte para uma cota mais segura, se afastando do corpo hídrico, devolvendo para a natureza o leito de inundação. Porque é justamente esse espaço que nos protege quando o corpo hídrico enche ou, quando tem grandes descargas de água, para onde a água primeiro vai. A área de preferência é a cota mais baixa. Então, a gente tem que levar isso em consideração e não permitir mais que as cidades se tornem tão vulneráveis.
Sul21 — Do ponto de vista da legislação ambiental, temos diversas questões relacionada a flexibilizações de leis nos últimos anos. Pode-se imaginar que agora a gente vai ter que ter um fazer um movimento contrário. Quais seriam as urgências?
Muito bem lembrado. Eu dizia isso numa outra matéria que eu acredito que, pelo menos agora nos próximos meses, não há qualquer ambiente de votação na direção, no sentido, na tentativa de flexibilizar alguma lei ambiental para permitir o avanço urbano ou para permitir áreas de ocupação rural dentro de regras ambientais mais frouxas. Isso não nos ajuda em nada. Nota que esse evento de agora se mostrou destrutivo, seja para o urbano, seja para o rural. Nós perdemos safras, nós perdemos equipamentos, nós perdemos infraestruturas rurais. Então, nós perdemos tantas coisas que não dá para desconsiderar a necessidade da gente revisar a legislação e rever algumas flexibilizações feitas. Inclusive, acho que a gente precisa em alguns casos torná-la mais rígida em alguns aspectos. Por exemplo, acredito muito que cada município deve revisar o seu Plano Diretor, ter um plano ambiental e reunir outros instrumentos de planejamento. Mas, mais do que isso, a partir de agora, um banco público jamais deveria fornecer crédito se a ideia for empreender numa área de risco. Ou fornecer crédito se a ideia for adquirir um imóvel numa área de risco. Eu acho que deveria começar por aí, numa estratégia de boas práticas, em que a gente leva em consideração a sustentabilidade, inclusive ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). Quer dizer a segurança do capital nos eixos ambiental, social e da governança, nós não poderíamos mais ou não deveríamos mais autorizar o financiamento público para algo que depois pode vir a ser destruído, justamente porque não se considerou o princípio básico da natureza.
Sul21 — Ficou bem famoso nas redes sociais o alerta que o senhor fez em 2022. Certamente não foi o primeiro e certamente o senhor não foi o único. Do ponto de vista da cidades de Rio Grande e de Pelotas, que são cidades sujeitas a esse tipo de efeitos de eventos climáticos, assim como Porto Alegre, como esses alertas foram recebidos? Eles foram levados a sério?
Não, não. Eu tenho falado sobre isso há bem mais tempo, mas eu tenho o registro dessas minhas falas de 2021, 2022 e 2023. Eu participava muito de um programa de rádio e em alguns momentos manifestei várias vezes, porque eu estava levantando os dados aqui de uma série histórica. Temos na UFPEL [Universidade Federal de Pelotas] uma das coleções mais antigas de dados meteorológicos que são coletados diariamente há muito tempo, então eu fiz um recorte de 50 anos e percebia aqui no nosso clima local, e serve para a região como um todo e certamente se reproduz em qualquer lugar do mundo, porque o que eu percebi é que está presente nos relatórios do IPCC ou está presente no debate dos painéis intergovernamentais do planeta inteiro, que é uma mudança significativa já nas temperaturas. As médias de verão estão um pouco mais elevadas, as médias de inverno também. Ou seja, não está mais tão frio. E, mais do que isso, um regime de chuvas que está muito diferente. Há um estreitamento entre o período que chove e o tamanho do volume que chove. Então, está chovendo muito num pequeno espaço de tempo e isso obviamente leva a um volume de chuvas que qualquer cidade como as de hoje não tem condição de receber. O clima mudou e a gente não está preparado.
Isso já vinha sendo dito por mim e por vários outros, que era esperado um aumento de chuvas aqui nessa nossa região mais ao sul e que isso poderia ser potencializado pelo El Niño. Bom, chegamos a um “super” El Niño, temos uma força de regime de chuvas potencializadas, o regime de chuvas bagunçado, e a consequência está aí. Então, a gente precisa se preparar, porque vamos sair do El Niño, vamos entrar na La Niña, vamos ter déficit hídrico, mas podemos depois voltar para o El Niño e, ao voltar, todos esses eventos podem se repetir. Se até lá a gente não estiver preparados, nós vamos lamentar de novo perdas de vidas, perdas de patrimônio.
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“Precisamos entender que isso não foi obra do acaso”, alerta professor da FURG sobre enchente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU