24 Abril 2024
Então, não existe relação sexual?, perguntaria Jacques Lacan, autor dessa frase, mas pensada como uma afirmação que gerou mil e uma interpretações. A resposta (uma possível) é dada pelo psicanalista italiano de linha junguiana Luigi Zoja, com um livro intitulado La pérdida del deseo (Fondo de Cultura Económica).
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 19-04-2024. A tradução é do Cepat.
Chegou a Buenos Aires com o texto debaixo do braço rumo à Feira do Livro, onde o apresentará, na sexta-feira, 26 de abril, às 19h, na sala Cortázar. Sente quase como sua esta cidade. Além de trazer os seus livros, também costuma atender pacientes e conversar com os colegas sobre o que se vê ou ouve no local de consulta e a respeito do que está acontecendo no mundo, que é uma espécie de consultório global no qual alguns discursos, sintomas e psicopatologias se repetem.
Zoja, autor de livros importantes como Paranoia e El gesto de Héctor, desempenhou a prática clínica em Zurique, Nova York e Milão. Formou-se em Economia e estudou no Instituto C.G. Jung de Zurique. Agora, volta a Buenos Aires com um ensaio que diagnostica a crise e a ausência de desejo. E não em sentido figurado, aborda os sintomas que atravessam o planeta e que falam da perda do anseio sexual, da ambição pela intimidade, da paixão.
A crise do mundo é séria, afeta e desencadeia crises e transformações no interior de cada pessoa. Zoja fala sobre isto neste livro que alarma um pouco pelo título e alerta acerca das mudanças na subjetividade urbi et orbi. Em suma, fala da liberdade de escolha e de como se relacionar com o sexo e a sexualidade. Isto pode desencadear tempestades, algo que acontece quando um tempo como o de agora é forjado ao calor das transformações, do abandono do que se conhece e dos riscos que se assume.
Com a segurança que a vida e a experiência profissional lhe proporcionam, Zoja avança a favor e contra o mundo dos desejos. Começa contando uma anedota sobre a quebra de um contrato em um país que tem certos conflitos com os desejos das minorias, por exemplo. Ainda que o livro que apresenta esteja sendo traduzido para o russo, o mesmo não aconteceu com Paranoia. Nele disseca, entre outros, Stalin.
A editora decidiu suspender a tradução quando chegaram ao capítulo sobre o camarada Josef. “De Moscou, disseram-se: ‘Gostamos muito de seus livros, mas vimos que se refere a pessoas que ainda são populares em nossa história nacional e, então, decidimos não publicá-lo’”. Estão perdendo, Paranoia é um livro extraordinário, sempre atual.
Agora, concentra-se e fala sobre La pérdida del deseo e tudo o que seu título desperta.
Tomando o elemento-chave de seu livro e uma das questões que o permeiam: O desejo está sempre ligado à liberdade?
O desejo está vinculado a uma maturidade do indivíduo no início da idade adulta, da maturação sexual, e isto é extremamente difícil. Todo mundo tem suas necessidades. Trata-se de humanizar um assunto muito complexo.
A partir da tecnologização das relações, da expressão individual e da capacidade de escolher individualmente, os adolescentes são estereotipados com as imagens que chegam pelas telas. Isto produz uma alteração sexual, sem moralidade, e perde-se a conexão entre o desejo e os sentimentos, porque na tela se você sente uma atração, mesmo que correspondida, nunca será igual a uma pessoa real. Não existem sentimentos verdadeiros, existem convenções, rótulos.
Então, a capacidade de escolher livremente entre todos os seres humanos está piorando, mas especialmente entre os adolescentes que são nativos digitais e que sempre utilizaram estas ferramentas.
Aqui, entra em jogo a ideia de liberdade positiva e liberdade negativa, certo?
Sim, desenvolvi essa distinção. A liberdade de ser livre de imposições e tarefas, primeiro no sentido político e depois no das regras morais excessivas da velha burguesia e da Igreja Católica. Os italianos são particularmente sensíveis: vimos o país sair do fascismo e do pacto faustiano entre a Igreja e Mussolini e recuperar a liberdade.
A liberdade positiva envolve conhecer, escolher e algo que claramente me interessa como psicanalista: a liberdade interior, estar livre de condicionamentos, algo que pode não ser consciente, mas que implica libertar-se das coisas mais pesadas.
Na passagem do século XX para o século XXI, surgem novas posições como o neomachismo (como liberdade negativa). Muitos o atribuem, em especial, a Silvio Berlusconi, chefe de governo. Com o monopólio da televisão privada e também da televisão pública, coisificava a mulher com danças sensuais e roupas minúsculas. Assim, evidencia-se que os mais jovens – especialmente – não podem usar a sua liberdade para desejar.
No livro, você afirma que a sexualidade, no século XXI, torna-se um objeto de consumo laico, aparentemente neutro, universal e anônimo… Como se chegou a este diagnóstico?
A sexualidade envolve discussões éticas e morais, uma hierarquia de valores. Eu tive uma educação católica e depois uma vida laica. É preciso ter valores e, claro, a discussão sobre o contato, a formação de um casal. O que em muitas línguas ocidentais se diz “fazer amor” implica um vínculo entre o que a língua diz: a união física e sexual. Contudo, a vinculação e a relação fora do ato sexual são muito complexas.
Na era da comunicação, torna-se algo muito material e muito laico e pode ser uma ajuda para os sentimentos, mas, ao mesmo tempo, só pode funcionar de forma mecânica e convencional, sem sentimentos em geral. Hoje, há muita literatura a este respeito.
Há muita confusão nas gerações mais jovens, nos chamados nativos digitais que tiveram suas primeiras experiências com o outro sexo e mesmo homossexuais. É a conexão mecânica, que não é suficiente, isso que chamamos de hidráulica sexual.
Isso é uma coisa muito mais complexa e o rompimento dos frágeis vínculos entre sentimentos e sexualidade provocou um aumento incrível das depressões entre os adolescentes. Pode-se explicar de várias maneiras, mas em grande medida a sexualidade, que era desejo, agora corresponde de forma particular a uma ansiedade e insegurança que não tem a ver com proibições literais, mas com inibições interiores.
Entre essas garotas que sempre veem a influencer e a mulher perfeita como modelos, algumas acabam fazendo cortes em seus braços e pernas. Os homens menos, entre eles, há mais uma síndrome de retirada, de timidez.
Os homens veem mais pornografia em busca de uma primeira experiência de sexualidade, mas é uma experiência do falso, porque quem faz amor na pornografia sempre tem uma ereção de 24 horas provocada por algum tipo de Viagra. Depois, aquele garoto de 16 anos não fica verdadeiramente motivado a buscar uma experiência sexual, torna-se tímido.
Um dirigente libertário recomendou a suspensão das aulas de Educação Sexual Integral nas escolas, uma iniciativa muito importante em sala de aula. Em vez disso, propôs que os alunos vejam pornografia…
Como argumento, é de um nível de inteligência bastante fascista. A pornografia nasceu como imitação da sexualidade para animar a sexualidade. Agora, é o contrário, a vida sexual real tenta imitar a pornografia, o que é muito mais difícil.
É disso que você fala quando se refere ao excesso de desejo? Entra em contradição com a perda do desejo? Há uma contraposição com a perda do desejo ou uma coisa leva a outra...
Existe um círculo vicioso, uma coisa leva a outra. É o mesmo fenômeno circular, cultural, passa pela nossa psique e influencia a relação com o nosso corpo. Nos adolescentes, é pior do que nas gerações anteriores, nos dois sentidos.
E a comunicação naufraga...
Hoje, existem mais formas de se comunicar, com as redes sociais, e percebe-se certa impossibilidade de conexão. Existem aplicativos de encontro e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, parece mais difícil conhecer alguém, relacionar-se e formar um casal. Você tem muitas ferramentas para se comunicar, mas nada acontece...
Paradoxos tecnológicos...
A lei do paradoxo da Internet diz que em princípio há um crescimento dos conhecimentos, o que é maravilhoso, mas o gráfico mostra que quanto mais você usa a Internet, mais seu conhecimento para de crescer. Sim, cresce a sua confusão porque cada um de nós tem limites cerebrais.
Posso reconhecer os rostos de 100 pessoas? No Facebook, você pode ter milhares de amigos. Isto é uma falsificação não estrutural porque você pode ter milhares e milhares de amigos, mas não conhece o rosto real deles, é abstrato.
É uma alienação total, é vender um produto desde o início como mentira. Então, sim, a sexualidade é um aspecto específico desta lei dos números e de nossos limites, provavelmente o fenômeno das atrações também. São mostrados garotos jovens, garotas nuas que se repetem uma após a outra. No começo, geram atração, mas é como o chocolate, você gosta, mas depois de um quilo, começa a vomitar, a sentir repulsa, rejeição.
Para Marx, seria uma exibição permanente de mercadorias no celular, certo?
Sim, o excesso. Da mesma forma, esses corpos muito jovens podem desejar fazer amor outra vez, após um breve tempo, as mulheres ainda mais, mas há limites.
Você também analisa a dinâmica dos gêneros. Do que depende a decisão de uma mudança de gênero? De que “olhem para mim”?
Parece-me que o mais trágico são as expressões da oferta de identidade pessoal e da projeção que se faz para fora. Antes de formarem um casal, os jovens têm problemas de insegurança, dizem: “primeiro tenho que escolher bem” e, inclusive, “tenho que decidir se sou heterossexual, homossexual ou bissexual etc.”. São racionalizações de uma insegurança geral, não apenas sexual.
Sua identidade não pode depender exageradamente do que os outros lhe enviam. Quando você é muito pequeno, é muito importante a forma como o seu pai reage diante de você, sua identidade se reflete neste espelho. Hoje, os jovens, com menos de 30 anos, ainda fazem a sua identidade depender de imagens, de si mesmos, de suas postagens e das reações que recebem. Alguém que você não conhece, que pode ser um idiota, um sádico, pode te ferir com uma resposta agressiva nas redes.
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O desejo extraviado. Entrevista com Luigi Zoja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU