26 Novembro 2022
Não que antes o mundo fosse um lugar tranquilo. Mas o novo milênio, que começou com o apocalipse do 11 de setembro de 2001, continuou com a crise econômica de 2008, com o desastre nuclear de Fukushima em 2011, com os atentados islamistas de 2015. Sem falar da pandemia global iniciada em 2020, da guerra na Ucrânia e, portanto, no coração da Europa em 2022, e das mudanças climáticas que parecem ser um cataclismo que está apenas começando.
Parece urgente entender o que é o mal, como nos afeta, o que podemos fazer. Dois livros falam sobre isso, ambos de 2022: “Male” [Mal] (Edizioni Messaggero Padova), do Pe. Andrea Toniolo, reitor da Faculdade Teológica de Triveneto, e “Dialoghi sul male” [Diálogos sobre o mal] (Bollati Boringhieri), do psicanalista e sociólogo Luigi Zoja.
O caderno La Lettura pediu aos dois autores para debaterem a pergunta de todos sobre o mal.
A reportagem é de Ida Bozzi, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 20-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que é o mal?
Andrea Toniolo – Acredito que existem três “fios” entrelaçados do mal: o mal como sofrimento físico e/ou psíquico; o mal moral, como malvadeza, maldade; o mal metafísico, o mal do ser, isto é, a fragilidade que caracteriza o ser no mundo. A reflexão põe em causa o tema da fé e das religiões, da filosofia e da psicologia e, sobretudo, a verdadeira fonte de todo pensamento, a vida, e está ligada à minha profissão não só de teólogo, mas também de pastor que cuida das fadigas do sofrimento. Por exemplo, no meu caso, o acompanhamento do luto de um casal que perdeu uma filha de 32 anos para a Covid.
A morte dos inocentes...
Andrea Toniolo – O mal da natureza, aquele que não tem explicação, também colocou em crise os grandes autores do século XX, e penso em Dostoiévski, nas páginas dos “Irmãos Karamazov”, penso no Camus de “A peste”. Uma das atitudes fundamentais a adotar, acompanhando as pessoas na dor, é a escuta do caminho que o sofrimento faz no coração, sem chegar a “soluções”, como bem dizia o teólogo Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) em seu livro “Resistência e submissão”. Não há apenas o nada, o vazio. Lembro-me da experiência daquele casal: precisavam conversar, repassar a história, e de ajudas psicológicas, mas no fim reconheceram a grande ajuda que vem também de uma perspectiva religiosa. Não porque “resolva”, mas porque permite viver a vida com uma atitude de confiança e de esperança. É claro que o mal da natureza, principalmente aquele que parece não ter responsabilidades humanas (é fácil culpar Deus ou a natureza quando talvez por trás de um fato esteja a responsabilidade de alguém), é um mal a ser vivido compreendendo a realidade da criação no seu caráter de fragilidade. A fragilidade não é apenas um limite: como dizia o teólogo Romano Guardini, é também um sinal da abertura transcendente a algo mais.
Luigi Zoja – Encontro muitas concordâncias com Toniolo, não só nas leituras: não há nenhuma temática consolatória ingênua. Há um combate contra o mal. Cheguei a combatê-lo com muitos pacientes, contra o mal absurdo, isto é, a perda inesperada, a perda de um filho e não de um pai. E, pior ainda do que por uma doença, por suicídio: há muitos suicídios de adolescentes. Cheguei a acompanhar um pai após o suicídio de um filho e também cheguei a acompanhar em sofrimentos até mesmo assustadores, se quisermos ir um pouco mais longe com a metáfora, um tipo de paciente que não é frequente, mas que existe, ou seja, o padre, uma pessoa por definição atormentada e que combate, e quem pode ser ou se sentir órfã, da genitora mãe Igreja. Aqui, gostaria de acrescentar à reflexão o nome de um autor fundamental da e sobre a modernidade, Max Weber, que fala da Entzauberung der Welt: o “desencantamento do mundo”. O desencantamento do mundo é onde tudo perde o sentido, e por isso até mesmo a morte não tem mais sentido, cada um deve adquiri-lo individualmente; assim como a fé não tem mais o Dei gratia como referente, mas é uma luta individual mais sofrida à qual os grandes sujeitos, como a História ou a instituição Igreja, não oferecem mais uma resposta automática. E, ao contrário de uma visão que nos chega das séries e dos filmes norte-americanos, a psicanálise oferece uma ajuda e pode devolver “sentido”, mas não conferindo uma ordem interpretativa à vida do paciente. Não: “Vá ao analista, ele lhe explica, e aí você se sente melhor”. É você quem, ao narrar o caos de seus sofrimentos, dá a ele uma ordem não interpretativa, mas narrativa. A narração é o que nos salva: nós sabemos disso a partir dos grandes autores, não importa se são crentes, ou seculares ou ateus, mas que buscam uma referência superior.
Andrea Toniolo – Uma das experiências que encontrei e sobre a qual refleti, e que se cruza muito com o trabalho da psicologia, é a relação, na nossa consciência, entre o mal e Deus. Ou seja, um dos grandes esforços é justamente o de libertar as pessoas de um certo conceito de Deus, deus ex machina, Deus todo-poderoso, Deus que intervém; uma imagem que cria curtos-circuitos, porque, se não intervém, não é Deus, não é bom, quando, pelo contrário, o Deus de Jesus Cristo, o Deus que o cristianismo propõe, responde ao mal e ao sofrimento com a solidariedade, sofrendo. Outro grande desvio que já está na Bíblia, com Jó, é o da retribuição, isto é, associar um sofrimento a uma culpa e, portanto, a uma punição. Esse também é um trabalho na fronteira entre psicologia, religião, ajuda pastoral. São os resíduos da velha religião que Bonhoeffer também tentou minar, que tornam mais sofrida a alma humana e religiosa.
Luigi Zoja – Quando queremos discutir sobre o mal, muitas vezes nos referimos a pensadores protestantes como Bonhoeffer, enquanto aqui entre nós há uma espécie de isolamento, porque o pensamento católico é considerado mais rígido, menos aberto e menos psicológico. Na realidade, é apenas um estereótipo. É possível olhar debaixo da crosta: um trabalho conjunto, teológico e psicológico, é menos difundido, mas é absolutamente possível e sempre haverá mais espaço para fazê-lo. Esquecemos que existe também um pensamento católico que levanta o problema do mal, como ouvimos há pouco, e que o livro mais conhecido de Jung é a “Resposta a Jó”, enquanto para mim o mais importante entre os epistolários de Jung são as cartas entre Jung e o Pe. Victor White, um dominicano inglês, justamente sobre esse tema. Mesmo as barreiras entre as várias formas de monoteísmo, quando se trata de se perguntar qual é a relação entre Deus e o mal, por sorte não se sustentam, e podemos ir a uma profundidade maior.
Andrea Toniolo – Aceito esse convite para o trabalho conjunto, também no contexto italiano, onde, é verdade, há um pouco mais de esforço, embora existam experiências diferentes no mundo católico. Vi algumas delas durante um período de estudos nos Estados Unidos, sobre aconselhamento pastoral, uma modalidade que é um cruzamento entre ajuda psicológica e pastoral. Sobre esse tema, não existe mal individual que não tenha uma ressonância coletiva ou que esteja isolado do mal social. O ser humano é sempre um ser-com. Falando em estruturas do mal, no livro eu abordo a questão da responsabilidade pelo mal coletivo, que é mais difícil de identificar e do qual custamos a sair: pensemos nas grandes mistificações nos períodos ditatoriais.
Há também um belo filme sobre a vida de Franz Jägerstätter (“Uma vida oculta”, de Terrence Malick, 2022), um camponês austríaco que reagiu sozinho diante de um povo exaltado, sozinho diante de Hitler e diante do regime nazista. Além da questão da responsabilidade coletiva, nesse caso o verdadeiro mal aqui é a mistificação dos males sociais, quando são apresentados ou vendidos como bens. Todos estamos dentro disso: o telefone que estou usando neste momento é feito de coltan, um material cuja produção depende da exploração das crianças do Congo. Por outro lado, existe a resistência ao mal, também coletivo. A história nos dá aqueles que eu chamo de profetas, até mesmo seculares, que souberam resistir ao mal até mesmo sozinhos ou com poucos, com a força do bem: eles nos ensinam que é possível. Também é possível reagir ao mal social, no qual entra em jogo o bode expiatório: é fácil acusar os outros.
Luigi Zoja – Se buscarmos um denominador comum, o mal é a total falta de sentido. No caso do rapaz suicida, de quem só sei o que deixou por escrito, e em outros bem jovens, penso que o mal é a falta de sentido, típica do pós-moderno, em ambientes até mesmo relativamente abastados, cultos, hipertecnológicos, e que leva ao extremo o fato de não perceber o ser-com. O ser humano é um animal que desde a pré-história vive em grupos, em famílias, em bandos; o isolamento é também anti-instintivo, não nos damos conta de que sofremos com isso. Penso nos desastres da sexualidade, que está ruindo justamente entre os mais jovens, obviamente não por falta de liberdade, mas por falta de sentido, porque ela é conhecida no celular, como fato individual, e não está mais ligada àquele evento que sempre se chamou de amor, nas suas mais diversas nuances.
A tecnologia é um elemento negativo?
Luigi Zoja – Ela oferece muitíssimas informações e oferece vantagens imensas, mas ao custo de pagá-las com a mediação de uma tela absolutamente fria e técnica, que não mostra os sofrimentos que existem por trás dela. Outro conceito que eu elaborei é o da assimetria do mal, que se manifesta em todas as épocas e é naturalmente amplificado hoje pela tecnologia. Resumindo em poucas palavras: pensamos por polaridades opostas, por comodidade da nossa mente, masculino-feminino, velho-jovem e também mal-bem, mas aqui a assimetria é forte, no sentido de que às vezes basta um instante – prestemos atenção nisto – para fazer o mal, a escolha egoísta, ou com a tecnologia a escolha militar. Aperta-se um botão, e uma arma destrói mil ou um milhão de pessoas. Muitas dessas pessoas talvez possam se curar, mas curá-las leva tempo, muito tempo. Pensemos no abusador de crianças ou no estuprador de mulheres, que, para se conceder um instante do chamado prazer, um único instante, condena a vítima a anos de terapia, se tudo correr bem, para tentar reencontrar um equilíbrio abalado.
Encontrei o exemplo disso em Santo Telêmaco, que é o santo do dia 1º de janeiro, morto em um instante, em tempos em que não havia a tecnologia: ele havia atrapalhado o espetáculo dos gladiadores. Já se estava, naturalmente, na era cristã, em 404, em Roma, e ele disse não ao espetáculo dos gladiadores, e foi morto pelo público. Em um instante. Ele havia dedicado sua vida para redimir Roma e foi morto em um instante. Por quê? Porque prevaleceu uma coisa que prevalece ainda hoje: o evento midiático. Todos preferiam o espetáculo splatter, a violência. Muitas vezes, sentimo-nos impotentes como aliados do bem, até porque alguém pode dedicar a vida e as energias ao bem, e depois em um instante é destruído.
Andrea Toniolo – Há um belo texto de uma psicóloga francesa, Catherine Ternynck, “O homem de areia”, que trata da perda de sentido de um individualismo excessivo, mas também de outros contextos. Um religioso chinês me explicava que, na China, houve muitas conversões ao cristianismo, tanto protestante quanto católico, pela superação do sentido de vazio deixado pela Revolução Cultural. O mal, aquele que eu percebo, a melancolia, que é “a felicidade da tristeza”, como dizia Victor Hugo, nos pertence.
Um teólogo como Romano Guardini, em seu “Retrato da melancolia”, dizia: “A melancolia é dolorosa demais e afunda suas raízes muito profundamente no nosso ser para ser deixada nas mãos dos psiquiatras”. Não é para ser crítico. Mas é para dizer que a realidade humana está marcada por esse estado de espírito que fala da desproporção daquilo que somos, da brecha entre aquilo que eu desejo e o que realizo. Bem comentada por Ternynck, é a parábola evangélica em que o rico vai ao encontro de Jesus e lhe pergunta o que deve fazer para ter a vida eterna, e ele responde: “Você já tem tudo, mas te falta alguma coisa”.
Luigi Zoja – Conheço quase de cor o texto de Romano Guardini, que naturalmente fala de psiquiatria e não de psicanálise, o que me leva a pensar em outra variável da qual não falamos: o destino. Não vivemos mais no mundo clássico, no ananke, mas existe algo de orgânico, de psiquiátrico: nascemos também com um certo corpo e com um certo temperamento, as nossas características vêm do modo como nossos pais nos educam, de como educamos a nós mesmos (e de um trabalho psicanalítico como autoeducação), mas há também quem nasce mais... mais como? Precisamos fazer uma distinção entre depressão e melancolia, que confundimos na linguagem corrente. A depressão é uma síndrome; a melancolia é também um traço cultural. Se não existisse, não teríamos a metade da música e três quartos da poesia. Contanto que não se caia em um típico excesso pós-moderno, deve-se reconhecer o fator pessoal e até criativo da melancolia.
Falamos sobre os limites da tecnologia. Agora: o mundo digital pode ajudar de alguma forma?
Andrea Toniolo – Sou reitor da Faculdade Teológica e lido com estudantes que acabaram todos online com a pandemia. A experiência da Covid desmitificou, ou desencantou, para usar o termo de Weber, essa ideia de que os jovens são virtuais e amam o virtual. Na realidade não, eles são muito reais, são carnais, precisam de corpo mais do que pensamos. Eu havia proposto, também para a crise energética, que se introduzissem alguns dias online. Eles me responderam: “Peça-nos quaisquer outros sacrifícios, mas não para voltar a ficar online. Nós queremos vir presencialmente”. Os jovens precisam de presença e de relação física. E acho que Zoja sabe bem todos os efeitos que o tempo do confinamento teve sobre os adolescentes. A realidade da internet representa também a “cesta de lixo” do ódio, onde as pessoas despejam o ódio visceral que sentem, mas nunca substituirá a realidade antropológica.
Luigi Zoja – Há um debate nas últimas duas décadas sobre as sessões psicanalíticas em vídeo ou presenciais. Eu quase sempre estive entre os que mais pediam a presença. É fundamental. Certamente, o virtual provoca uma perda. Mas, sobre o tema que Toniolo estava abordando, que diz respeito ao mal mais do que à privação de relação, ou seja, à agressividade, típica dos últimos anos nas mídias sociais digitais, existem estudos de universidades estadunidenses nos quais a neurociência e outras disciplinas dizem que o nosso sistema neuronal, o cérebro, precisa de uma certa quantidade de segundos para dar uma resposta moral e ética a uma circunstância que lhe é apresentada. Assim, um sistema de comunicação como os chats da internet, que reduz cada vez mais os tempos e que premia os tempos cada vez mais curtos, tende a excluir o elemento moral, enquanto condensa e enfatiza o elemento agressivo, senão imoral. Não por acaso, surgem políticos que passam mensagens violentas e as passam por meio de instrumentos violentos.
Mas é possível dizer que “Putin é mau”?
Andrea Toniolo – Pergunta difícil. Vou deixar a resposta para Zoja.
Luigi Zoja – Eu vi muitos vídeos sobre Putin. Estou assistindo às intermináveis entrevistas com Oliver Stone, assim como sempre assisti aos filmes sobre Hitler e sei de cor o filme de Franz Jägerstätter. Pedi que ele fosse exibido no Congresso Junguiano Internacional, para dizer quantas coisas temos em comum. Jägerstätter, uma dupla figura do mártir cristão e do profeta em sentido judaico. Quem é mau hoje? Lembro-me de uma frase em um prefácio de “Se isto é um homem”, de Primo Levi, que diz: “Os monstros existem, infelizmente”. E perguntemo-nos então se Putin é um monstro ou não, quando o vemos naquela mesa imensa que coloca uma distância até mesmo material dos outros: dá medo, de fato. Logo pensamos em Hitler, que em certo ponto já não aparecia em público e só dava ordens para continuar até ao massacre final. Esse é o fanático. Então, o isolamento é ruim, e voltamos ao que dizíamos antes. Mas Primo Levi continua: “Os verdadeiros monstros existem, mas geralmente são muito poucos para realmente importar”, exceto em algumas circunstâncias históricas, como a grande inflação da Alemanha nos anos 1920, ou mais recentemente o colapso da União Soviética. “O que é perigoso é o homem comum”, conclui Levi. O vizinho que denuncia o vizinho judeu, esse é o grande problema. O conformismo é um problema. Apontar o dedo para fora, que impede você de girar o dedo indicador 180 graus para você mesmo e se perguntar: “Mas quem sou eu, como contribuo com o mal?”.
Andrea Toniolo – Existem algumas figuras para as quais parece fácil responder à pergunta: quem são os malvados? Falamos de Putin, abordamos a figura de Hitler, no campo teológico abordamos também o tema do demoníaco, personificação do mal. Hannah Arendt responderia que são pessoas banais. Preocupa-nos o aspecto do mal mais invisível: Hitler não chegou ao poder por meio de golpes de Estado, mas por meio de um processo democrático, com uma maioria que o seguiu.
Luigi Zoja – Parte da culpa recai também sobre nós, quando, por exemplo, assistimos à televisão e chega um documentário histórico, que nos fala sobre como chegamos a certas monstruosidades que se legalizaram em um sistema. E nós, com o controle remoto, mudamos de canal.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As profundezas do mal. Entrevista com Andrea Toniolo e Luigi Zoja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU