17 Fevereiro 2012
Entre os 22 novos cardeais que receberão de Bento XVI o barrete no dia 18 de fevereiro, dez têm cargos na Cúria Romana. O grupo mais numeroso é o italiano (sete). Apenas três não são europeus ou norte-americanos. O próximo consistório, portanto, não parece refletir o peso demográfico cada vez mais importante que o Sul do mundo tem na Igreja Católica. Uma reflexão sobre a relação entre Igreja e multiculturalismo.
A análise é do jesuíta Michael Amaladoss, um dos teólogos mais conhecidos da Índia, diretor do Institute for Dialogue with Cultures and Religions, de Chennai. O artigo foi publicado na revista Popoli, dos jesuítas italianos, 14-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Uma das questões postas pela globalização é o risco da projeção e da imposição sobre todos, através da mídia e do mercado, de uma única cultura consumista, a norte-americana. Ela envolve a mídia, a tecnologia, as comunicações, o modo de vestir e de se alimentar. Ela influencia menos os elementos culturais mais profundas como a língua, as atitudes, a literatura e o modo de viver, de pensar e de se relacionar. Nesses níveis, as culturas tendem a se defender, às vezes até com violência. No entanto, se a Meca da globalização, os Estados Unidos, não se tornaram monoculturais, é difícil que possam conseguir se impor totalmente sobre as culturas de outros países.
A nossa visão de mundo ainda é multicultural. Fiquei surpreso ao ouvir a Conferência dos Bispos da França dizer isso recentemente. Os franceses normalmente são considerados nacionalistas com relação à sua cultura. No entanto, em uma declaração dos bispos do último dia 3 de outubro, fala-se do "fim de uma certa homogeneidade cultural das sociedades [ocidentais]", devido às ondas migratórias.
A homogeneização cultural continua sendo uma tentação, não só em nível global, mas também local. Na Índia, existe uma cultura dominante que tenta tornar subalternas todas as outras, dos dalits aos povos indígenas, mas, também em outros lugares, alguns tentam afirmar que a unidade de uma nação depende da unidade da sua cultura ou até mesmo desejam a homogeneidade religiosa.
Assim, defender o multiculturalismo e o pluralismo religioso é um dever constante e necessário, e ficamos contentes que a Constituição indiana defenda ambos, até com medidas especiais para a proteção das minorias.
Mas há um âmbito dessa homogeneização global que comumente ignoramos: a Igreja, uma instituição que, muitas vezes, na história, defendeu impor a sua própria cultura em nome de Deus
Segundo teólogos como Karl Rahner, o Concílio Vaticano II tornou a Igreja consciente de ser uma Igreja global. Ele promoveu a inculturação em vários âmbitos. No da liturgia, por exemplo, o único critério proposto foi o da "participação plena, consciente e ativa" dos fiéis. Afirmou-se que é possível mudar tudo, exceto o que foi instituído divinamente e o surgimento de novos ritos foi promovido.
Apesar disso, e apesar da existência de tantas pequenas Igrejas orientais, a Igreja latina dominou na história recente, e também recentemente a Igreja defendeu com força a unidade do rito latino. A controvérsia sobre o missal em inglês é um exemplo disso: foi imposta uma tradução do texto latino mais literal do que a versão anterior, apesar das objeções de bispos e especialistas. As pessoas não podem rezar criativamente em sua própria língua, senão privadamente. Isso acontece com todas as línguas do mundo, que devem traduzir o texto latino de modo literal e obter a aprovação do Vaticano. O multiculturalismo, recomendado para o mundo, não parece ser respeitado na Igreja.
Portanto, não me surpreendi ao ler um recente artigo de Sandro Magister no site da revista L'Espresso. Questionado se com Bento XVI a Cúria Romana não está se tornando "muito" italiana, ele responde: "O historiador da Igreja Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, também com fama progressista, defendeu uma evolução semelhante. Ele explicou mais de uma vez que a Santa Sé não pode se uniformizar a uma grande organização internacional qualquer [...], não pode se tornar uma espécie de ONU, porque faz parte da Igreja Romana e deve manter com esta última um vínculo eclesial, humano e cultural particular".
Certamente, não é um problema, naturalmente, o fato de que a Igreja romana queira continuar sendo romana. Mas então ela não deveria tentar impor a sua identidade sobre a Igreja universal e multicultural. Quantos dos documentos da Igreja mostram mais preocupação pelos problemas culturais da Europa e da América do que do resto do mundo?
Já é evidente que, de um ponto de vista demográfico, o centro de gravidade da Igreja está se deslocando para o Sul, mas não é assim em nível cultural. Notamos isso também nas congregações religiosas "internacionais", em que cresce muito o componente indiano. Um indiano também pode ser eleito superior-geral da sua congregação, mas, nos capítulos gerais, os poucos europeus e norte-americanos que restaram desempenham um papel preponderante, talvez até por serem facilitados pelo uso da língua, comumente inglês, francês ou italiano. Os documentos que produzem são centrados em questões europeias e norte-americanas.
E os jesuítas? Há diversos anos nos perguntamos: o que acontecerá com os jesuítas com o ingresso de cada vez mais pessoas provenientes do Sul do mundo? Eu não saberia dizer se essa pergunta contém um elemento de medo. As nossas Congregações Gerais foram amplamente multiculturais, mas alguns desdobramentos e atitudes despertam alguma preocupação. Em Roma, temos algumas instituições internacionais. Mas são realmente multiculturais?
Há alguns anos, quando buscavam-se novas pessoas para se dedicar a esses institutos, não se escolheu entre os teólogos que tinham experiência de ensino e de reflexão teológica na Índia, e que pudessem, assim, trazer a contribuição indiana a uma instituição com sede em Roma. Escolheram-se, ao contrário, jovens estudantes que foram levados a Roma para serem formados na teologia romana, preferivelmente em italiano, para depois continuarem lecionando lá. Isso é multiculturalismo ou globalização homogeneizadora?
Mais uma vez: pede-se aos nossos teólogos, que talvez já conhecem duas línguas da Índia, além do inglês, que aprendam outras duas ou três línguas europeias. Mas aos teólogos ocidentais que lecionam em uma instituição multicultural requer-se que aprendam línguas asiáticas ou africanas? E se, mesmo que não conheçam essas línguas, podemos ao menos esperar que se familiarizem com as teologias e as culturas do Sul do mundo, dado também o alto número de estudantes que provêm desses continentes?
Em 2010, no México, o padre geral dos jesuítas, Adolfo Nicolás, fez uma observação estimulante durante um encontro internacional sobre a educação superior: "Chama-me a atenção o fato de que, na Companhia, temos problemas com a formação. Há quase 20 anos, registramos vocações de novos grupos: aborígines, dalits na Índia e outras comunidades marginais. Acolhemo-las com alegria, porque fomos ao encontro dos pobres, e os pobres se uniram a nós. Essa é uma maravilhosa forma de diálogo. Mas também nos sentimos um pouco incapazes: como formamos essas pessoas? Pensamos que elas não têm educação suficiente sobre as costas e, assim, lhes oferecemos um ou dois anos de estudo a mais. Não acredito que essa seja a resposta certa. Acho que a resposta certa é perguntarmo-nos: de onde eles vêm? Qual é a sua formação cultural? Que visão da realidade nos trazem? Devemos acompanhá-los de um modo diferente. Mas, para fazer isso, precisamos de um enorme esforço de imaginação e de criatividade, uma abertura para outros modos de ser, sentir, se relacionar".
Em outras palavras, quando nos tornaremos verdadeiramente multiculturais no mundo, na Igreja e na Companhia de Jesus?
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A Igreja é multicultural? Um ponto de vista indiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU