19 Outubro 2020
"Mais do que uma ilusão, um dilema ou um problema de ordem meramente técnica, o que está em jogo na comunicação digital, no fundo, é de ordem ética – por parte das plataformas e das empresas que as gerenciam, mas também de cada interagente que alimenta os fluxos das redes. Nesse sentido, o convite de Francisco na encíclica Fratelli tutti é a pôr em prática, também em rede, um 'diálogo social' para a construção de uma cultura do encontro", escreve Moisés Sbardelotto, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação, professor colaborador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e autor de "Comunicar a Fé: Por quê? Para quê? Com quem?" (Vozes, 2020).
A nova encíclica do Papa Francisco, Fratelli tutti, é um hino à “fraternidade aberta”, ao “amor fraterno” e à “amizade social” (nn. 1-2). É um apelo “ardente” a reconhecer a “dignidade de cada pessoa humana” e a fazer renascer “um anseio mundial de fraternidade” (n. 8).
A inspiração e a motivação do documento é Francisco de Assis, alguém que “comunicava o amor de Deus” e, assim, foi um “pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna” (n. 4).
A partir da experiência do Santo de Assis, desponta um processo transversal para a concretização desse sonho: a comunicação. É ela que possibilita a realização da própria existência humana: “A vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade” (n. 87), ou seja, onde há comunicação. “Só comunico realmente comigo mesmo na medida em que me comunico com o outro”, afirma Francisco, citando o filósofo francês Gabriel Marcel (ibid.). Trata-se, portanto, de uma necessidade (co)existencial: “Precisamos de comunicar” (n. 134).
A partir desse horizonte, quero evidenciar aqui alguns pontos de inter-relação entre a fraternidade e a comunicação, presentes na Fratelli tutti. Para isso, não farei uma análise geral do texto, mas destacarei três aspectos principais que afloram no documento a partir do olhar da comunicação: a forma como a própria encíclica se comunica em sua textualidade; as críticas do papa a certas tendências da comunicação digital que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal (cap. 1); e o estilo comunicacional indicado por Francisco para tornar possível a amizade social (cap. 4).
A Fratelli tutti, no rastro dos demais documentos do Papa Francisco, caracteriza-se por uma linguagem direta e concreta, sem grandes teorizações ou conceitualizações. Assim como o Santo de Assis, Francisco não busca promover uma “guerra dialética impondo doutrinas” (n. 4), nem tem a pretensão de “resumir a doutrina sobre o amor fraterno” (n. 6).
Em vez disso, o papa se dirige a todos os seus irmãos e irmãs “com poucas e simples palavras”, seguindo os passos do Pobrezinho de Assis, para explicar o “essencial de uma fraternidade aberta” (n. 1). Assim, Francisco apresenta a sua encíclica como uma “humilde contribuição para a reflexão” sobre a dimensão universal do amor fraterno (n. 6).
O documento vai sendo tecido a partir de uma textualidade que envolve interlocutores diversos, em uma rede de relações pré-textuais e intertextuais. Desde o início do texto, o papa assume Francisco de Assis como o seu principal interlocutor, aquele que o inspirou (n. 2) e o motivou (n. 4) a escrever a nova encíclica.
Além dele, se, na redação da encíclica anterior, a Laudato si’, o seu inspirador e interlocutor foi o “meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação”, desta vez Francisco se diz “especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’” (n. 6).
Reitera-se, aqui, não apenas o diálogo ecumênico buscado pelo papa junto às demais Igrejas cristãs, mas também inter-religioso, em um gesto de reconhecimento e aprendizagem por parte da própria Igreja em relação aos demais saberes e fazeres religiosos. É o que Francisco também reafirma ao confiar o texto ao seu leitorado: embora tendo escrito a encíclica “a partir das minhas convicções cristãs”, ele afirma ter se esforçado para que “a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (n. 6).
A Fratelli tutti também menciona diversos interlocutores intertextuais. O papa afirma ter acolhido “numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo” (n. 5). Sinal disso – assim como ocorreu em suas outras encíclicas e exortações apostólicas – são as diversas citações de documentos de várias Conferências Episcopais do mundo inteiro, por meio das quais o papa põe em prática uma forma de colegialidade magisterial.
São citados documentos das conferências dos bispos da África do Sul, da Austrália, da Colômbia, do Congo, da Coreia, da Croácia, dos Estados Unidos, da França, da Índia, do México, de Portugal, além do Documento de Aparecida, texto aprovado pelos bispos latino-americanos e caribenhos e cujo Conselho de Redação foi presidido pelo então arcebispo Bergoglio.
Junto com a Sagrada Escritura, a tradição e o magistério da Igreja se fazem presentes por meio de citações de documentos do Vaticano II, como a constituição pastoral Gaudium et spes e a declaração Nostra aetate, do Compêndio da Doutrina Social da Igreja e do Catecismo da Igreja Católica.
Além de Francisco de Assis, também são citados Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Basílio, São Boaventura, São Gregório Magno, Santo Irineu de Lyon, São João Crisóstomo, São Tomás de Aquino, São Pedro Crisólogo e o bem-aventurado – e muito em breve santo – Charles de Foucauld. Entre os antecessores de Francisco no pontificado, são mencionados Nicolau I (século I), Pio XI, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.
Francisco cita ainda diversos autores clássicos, como Aristóteles, Cícero, Hillel, Lactâncio. E também pensadores mais recentes, como os filósofos franceses Gabriel Marcel (1889-1973) e Paul Ricoeur (1913-2005); e o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918). Do universo católico, são mencionados o teólogo franciscano francês Eloi Leclerc (1921-2016); os teólogos jesuítas Karl Rahner (1904-1984), alemão, e Marcelino Zalba (1908-2009), espanhol; o teólogo dominicano espanhol Antonio Royo Marín (1913-2005); o teólogo francês René Voillaume (1905-2003), fundador dos Irmãozinhos de Jesus; e o cardeal chileno Raúl Silva Henríquez (1907-1999).
Destaca-se ainda a citação da letra de uma canção da música popular brasileira, o “Samba da Bênção”, escrito por Vinícius de Moraes (1913-1980).
O papa também menciona outros pensadores vivos, como o jesuíta colombiano Jaime Hoyos-Vásquez, professor da Pontifícia Universidade Javeriana, e o jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica.
O que chama a atenção são as “autorreferências” de documentos e discursos do próprio Papa Francisco. Das 288 citações da Fratelli tutti, nada menos do que 170 (59%) são de autoria de Francisco ou de textos em coautoria (por exemplo, com o Patriarca Bartolomeu e com o Grande Imã al-Tayyeb). O papa justifica que as questões relacionadas à fraternidade e à amizade social “sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente nos últimos anos e em vários lugares”, e, por isso, ele quis reunir muitas dessas intervenções na encíclica, “situando-as num contexto mais amplo de reflexão” (n. 5).
Destaca-se, dentre as “autocitações” de Francisco, o ineditismo da presença de produtos audiovisuais, como a vídeo-mensagem gravada pelo papa para o encontro internacional TED2017 de Vancouver (assista abaixo, na íntegra) e o documentário “Papa Francisco: um homem de palavra”, dirigido por Wim Wenders e disponível na Netflix (assista ao trailer abaixo).
Nesse conjunto de referências intertextuais, entretanto, uma grande ausência são as mulheres. Não há nenhuma estudiosa ou pensadora citada pelo papa. A única mulher presente no documento é Maria, apresentada como servidora e mãe (cf. n. 276 e 278).
No capítulo 1, Francisco tece críticas a certas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal. Entre estas, está também a comunicação digital, apresentada pelo papa, ao longo de oito parágrafos (nn. 42-50), como uma “ilusão”. É o que diz literalmente o entretítulo que abre essa reflexão: “A ilusão da comunicação”.
Essa crítica já aparece no início do documento, quando o papa afirma que, em tempos de pandemia, “apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos” (n. 7). Mais adiante, ele diz de forma contundente: “Empanturramo-nos de conexões e perdemos o gosto da fraternidade” (n. 33).
Diante disso, Francisco apresenta a comunicação digital a partir de suas limitações e deficiências, assumindo uma posição quase apocalíptica. A comunicação em rede, segundo o papa – retomando algumas críticas já presentes em outros de seus documentos –, envolve as seguintes “sombras” principais (cf. n 42-43, 45, 47, 50):
• “atitudes fechadas e intolerantes”
• desaparecimento do “direito à intimidade”
• espetacularização
• “controle constante” (sutil e invasivo)
• diluição do “respeito pelo outro”
• invasão “despudorada” da vida alheia
• “risco de dependência, isolamento [consumista e acomodado] e perda progressiva de contato com a realidade concreta”
• individualismo
• xenofobia
• “desprezo dos frágeis”
• “manipulação das consciências e do processo democrático”
• “circuitos fechados [que] facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios”
• um “mecanismo de ‘seleção’” e descarte de pessoas e situações
• um “círculo virtual que nos isola do mundo em que vivemos”
• uma “acumulação esmagadora de informações”
Como síntese de todas essas falhas, Francisco denuncia a “agressividade despudorada” praticada em rede. Exemplos disso são os “movimentos digitais de ódio e destruição” (n. 42) e a “grosseria impune” até mesmo de autoridades políticas (n. 45) – uma referência, talvez, aos atuais presidentes estadunidense e brasileiro?
Mas, segundo o papa, esses não são fenômenos alheios à vida eclesial. Para Francisco, os “fanatismos” contemporâneos “são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem fazer parte de redes de violência verbal através da internet”, retomando algo que ele já havia afirmado na exortação apostólica Gaudete et exsultate. As próprias mídias católicas podem praticar “a difamação e a calúnia [...] parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia” (n. 46). “Agindo assim – questiona Francisco –, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?” (ibid.). A resposta só pode ser absolutamente negativa.
Em todo esse trecho da Fratelli tutti, Francisco se aproxima, de certo modo, das críticas feitas ao chamado “capitalismo de plataformas” (Nick Srnicek) ou “capitalismo de vigilância” (Shoshana Zuboff), ou seja, os modos que o capitalismo encontrou para gerar lucro a partir dos dados gerados pelos usuários em suas conexões. A privacidade, assim, se converte em moeda de troca, em matéria-prima a ser “mineirada”, processada, empacotada e vendida sob a forma de perfis de comportamento previsíveis, a serem explorados por possíveis anunciantes empresariais ou político-ideológicos. Retomando aquilo que o papa escreve em outra parte da encíclica, a “ganância de lucro fácil continua a fazer estragos” (n. 168) também no campo da comunicação digital. Pelo contrário, “devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (ibid.). A pessoa humana é mais do que um amontoado de dados a serem explorados financeiramente.
Quando o papa busca explicar tais distorções da comunicação, ele aponta dois caminhos possíveis. Primeiro, ele afirma que “a agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores” (n. 44). Isto é, o ambiente digital operaria ampliando a violência já existente nos contatos sociais em geral.
Por outro lado, ele diz que a comunicação digital está marcada por um “desregramento tal que se existisse no contato pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós” (n. 44). Ou seja, as redes seriam uma espécie de ambiente paralelo à vida social, rompendo suas regras e podendo potencialmente destruí-la.
Essa segunda leitura do fenômeno, mais apocalíptica, reforça ainda uma dicotomia entre digital e social que vem perdendo força nos estudos mais recentes. Para o bem e para o mal, o digital é social, e não extrassocial, parassocial ou antissocial. É a sociedade, em sua complexidade, que dá forma ao digital.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que a agressividade social – com toda a sua inegável carga de “insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro” (n. 43) – não é fruto da digitalização. Alguns dos maiores “desregramentos” da história, que provocaram a destruição de populações inteiras – como os cometidos em Auschwitz, Dachau, Hiroshima, Nagasaki, dentre outros – ocorreram muito antes da existência de redes digitais.
Assim como em outros momentos do texto, parece haver nas entrelinhas dessas críticas um certo saudosismo de uma “era de ouro” da comunicação (sem revelar quando ela teria ocorrido). Ou ainda um certo entendimento da comunicação humana apenas como aquilo que ocorre mediante “gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração” (n. 43), como se a digitalização tivesse varrido tudo isso do mapa ou apresentasse o risco de fazê-lo.
Especialmente durante o confinamento vivido nesta pandemia, foi possível perceber, pelo contrário, como os contatos em rede envolvem uma forma de presença fortemente corpórea e “encarnada”. A comunicação humana ocorre quando seres humanos se relacionam e interagem, independentemente dos meios, das mídias e das mediações em jogo. E as relações digitais não “dispensam”, mas, pelo contrário, até aumentam aquilo que o papa chama de “fadiga de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que amadurece com o tempo” (n. 43), sendo espaços concretos de sociabilidade.
Sem dúvida, “a conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade” (n. 43). Mas há alguma forma de comunicação que seja autossuficiente e capaz de promover isso sozinha?
Embora as críticas de Francisco sobre a comunicação digital sejam realistas e concretas, a partir de fatos reconhecíveis por qualquer pessoa que acompanhe minimamente aquilo que ocorre nas redes, é preciso levar em consideração que a leitura papal, nesse trecho, é deliberadamente unilateral. O título do capítulo explicita isso: “As sombras de um mundo fechado”. E se reitera claramente que são “sombras densas” (n. 54).
Mas não ficam claras quais seriam as possíveis “estruturas sociais alternativas” às atuais plataformas digitais. A sensação que fica é quase a de um beco sem saída, em uma espécie de “tradução católica” do recente documentário “O dilema das redes”, disponível no Netflix, em que as únicas opções seriam sair o mais rápido possível de todas as redes, ou ficar e sofrer as consequências.
Embora aquelas críticas sejam pertinentes e válidas, é importante também observar as plataformas a partir de outros ângulos e observar ainda processos outros em jogo nelas. Para além de todo possível controle e manipulação em rede, há também aquilo que chamo de heresia comunicacional (do grego hairein/hairesis, “escolher”, “fazer uma escolha”), isto é, ações de desvio, desestabilização, desafio, contestação, subversão, transgressão de padrões ou expectativas sociocomunicacionais convencionais, em contextos interacionais diversos.
Trata-se de perceber as operações dos interagentes que “trapaceiam” com os sentidos, os símbolos e as práticas em jogo, “insinuando sua inventividade nas brechas de uma ortodoxia cultural” (Michel De Certeau) e assumindo a sua heterodoxia comunicacional frente às forças hegemônicas (neste caso, as próprias plataformas e seus algoritmos). Explicitam-se aí as “microdiferenças [de sentido e de ação], onde tantos outros só veem obediências e uniformização”.
É preciso lembrar, porém, que, até esse ponto da encíclica, Francisco falou apenas das tendências da comunicação digital que “dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal” (n. 9), deixando intencionalmente de fora outras tendências dessa mesma comunicação digital, mediante as quais “Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade” (n. 54), indo além dos “condicionamentos históricos” (n. 55).
Senão, se a comunicação digital fosse apenas “choro e ranger de dentes”, para que o próprio papa estaria presente, pessoalmente, no Twitter e no Instagram? De que serviria o projeto “O Vídeo do Papa” no YouTube? Qual seria a contribuição do aplicativo “Click to Pray”, iniciativa fomentada publicamente por Francisco e apresentada como a “plataforma oficial de oração pelas intenções do papa”?
Do ponto de vista da relação entre fraternidade e comunicação, o desafio, também no ambiente digital, é buscar “superar o narcisismo e acolher o outro, prestar-lhe atenção, dar-lhe lugar no próprio círculo” (n. 48), evitando “transformar tudo em cliques e mensagens rápidas e ansiosas” (n. 49).
Uma das formas de fazer isso, segundo Francisco, é por meio do diálogo. “Podemos buscar juntos a verdade no diálogo, na conversa tranquila ou na discussão apaixonada. É um caminho perseverante, feito também de silêncios e sofrimentos, capaz de recolher pacientemente a vasta experiência das pessoas e dos povos” (n. 50). É a esse tema que ele dedica o capítulo 6 da encíclica.
Nesse capítulo, há um parágrafo que sopesa todas as fortes críticas feitas antes sobre a comunicação digital. Nele, o próprio Francisco afirma que as diversas redes da comunicação humana “podem ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade” (n. 205). Reafirmando o que já havia dito em sua primeira mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2014, o papa diz que “a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus” (ibid.).
A fraternidade, portanto, também pode emergir a partir das redes, pois estas podem ser ambientes de encontro e solidariedade. Mas, para isso, “não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e tirar fora o pior das pessoas” (n. 205). No entanto, mesmo quando isso ocorre, “a internet corrige a internet” (Patrice Flichy). Grande parte da manipulação e da desinformação que circula nas redes é denunciada e desmentida também graças às próprias redes, a partir de outras conexões.
Exemplo disso é a emergência das chamadas agências de checagem de fatos, que assumiram um papel relevante no combate à desinformação contemporânea. Além disso, se há campanhas de difamação e de ódio em rede, há também uma série de campanhas de defesa da dignidade humana que se articulam nas próprias plataformas digitais, por exemplo contra o sexismo (#MeToo e #NiUnaMás) e o racismo (#BlackLivesMatter e #VidasNegrasImportam). O período da pandemia também permitiu evidenciar que as redes digitais não são apenas “esgotos” de fake news, mas também podem ser ambientes de boa (in)formação, como no fenômeno das “lives”, muitas delas oferecendo momentos de reflexão e debate com grandes pensadores contemporâneos, gratuitamente e sem (poder) sair de casa.
Mais do que uma ilusão, um dilema ou um problema de ordem meramente técnica, o que está em jogo na comunicação digital, no fundo, é de ordem ética – por parte das plataformas e das empresas que as gerenciam, mas também de cada interagente que alimenta os fluxos das redes. Nesse sentido, o convite de Francisco é a pôr em prática, também em rede, um “diálogo social” para a construção de uma cultura do encontro. “Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar” (n. 198). E, se há fatores que agem contra esse objetivo (como as próprias interfaces e protocolos das plataformas digitais, muitas vezes), é preciso “inventividade e ousadia” para promover “percursos de paz” que levem a um “novo encontro” entre as pessoas (n. 225).
O papa reconhece que o diálogo não é sinônimo de uma “troca febril de opiniões nas redes sociais”, geralmente marcada por um “tom alto e agressivo” e por conteúdos “oportunistas” (n. 200). Pelo contrário, o diálogo “não faz notícia como as desavenças e os conflitos”. Ele age “de forma discreta” e, assim, “ajuda o mundo a viver melhor” (n. 198). O diálogo é uma opção comunicacional “entre a indiferença egoísta e o protesto violento” (n. 199). Por isso, ele tem em vista o bem comum, e não os “próprios interesses ideológicos” (n. 201) ou as próprias “conveniências pessoais” (n. 202).
O diálogo envolve abertura, “a capacidade de dar e receber”, e o reconhecimento das “diversas riquezas culturais” (n. 199). Segundo Francisco, “as diferenças são criativas, criam tensão, e, na resolução de uma tensão, está o progresso da humanidade” (n. 203). Somente comunicando segundo a própria diversidade é que é possível expressar a unidade (cf. n. 144). Comunicar é harmonizar diferenças.
Dialogar, portanto, não é praticar uma mera tolerância em relação ao outro e ao diferente, mas sim “procurar pontos de contato e sobretudo trabalhar e lutar juntos” (n. 203). Pressupõe “a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro” e ainda de “entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria” (ibid.).
Para isso, é preciso “cultivar a busca da verdade”, começando pela “verdade da dignidade humana” (n. 207). Aqui, Francisco lança uma forte crítica àquela que podemos chamar de “cultura do fake”, convidando a “desmascarar as várias modalidades de manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada” (n. 208). E a verdade, segundo o papa, é “a busca dos fundamentos mais sólidos que estão na base das nossas opções”, aqueles “valores que são universais” (ibid.), “aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional” (n. 211).
É nesse contexto que o papa cita Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. O convite é a construir uma “cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro”. Trata-se de edificar “uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente”, como em um poliedro, “que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes”. De acordo com Francisco, podemos aprender alguma coisa com todos e todas: “Ninguém é inútil, ninguém é supérfluo” (n. 215).
Nesse sentido, para construir a “comunhão universal”, é preciso promover uma comunicação universal, que busca o “encontro com o mistério sagrado do outro” (n. 277). “Isso implica o hábito de reconhecer, ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente” (n. 218). Trata-se daquilo que o papa chama de “realismo dialogante”, que leva a pessoa a “ser fiel aos seus princípios, mas reconhecendo que o outro também tem o direito de procurar ser fiel aos dele” (n. 221).
A construção da cultura do encontro, porém, não demanda “recursos profissionais e midiáticos” (n. 216). É um trabalho “artesanal (...) muito mais difícil e lento”, que envolve “querer encontrar-nos, procurar pontos de contato, lançar pontes, projetar algo que envolva a todos”, cujo fruto é a “paz social” (n. 217). A cultura do encontro é construída por “artesãos de paz” (n. 225).
Além de dialogante, Francisco convida ainda a uma comunicação marcada principalmente pela amabilidade (chrestotes, no grego), um dos frutos do Espírito Santo mencionados na Carta de Paulo aos Gálatas (5,22). Trata-se de “um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta”. Isso significa “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam” (n. 223).
O “milagre de uma pessoa amável”, como afirma Francisco, é cada vez mais raro, especialmente na comunicação digital – mas não só. Porém, somente uma comunicação dialogante e amável consegue “criar aquela convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos”, e “abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes” (n. 224).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Comunicação, uma “ilusão”? A fraternidade na era digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU