A ética e as práticas sexuais. Artigo de Lucia Ribeiro

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21 Fevereiro 2022

 

"Conseguir nos aproximar de Deus e senti-lo misteriosamente presente em nosso corpo individual e sexuado é um caminho para encontrá-lo com todo o nosso ser, em todas as dimensões da vida", escreve Lucia Ribeiro, socióloga.

 

Eis o artigo.

 

Há poucos dias atrás, Frei Betto publicou um ótimo artigo: “A Bíblia aprova relações homoafetivas?” Dois aspectos são especialmente enfatizados: o primeiro se refere à impossibilidade de uma leitura literal da Bíblia, sem levar em conta o contexto em que o texto foi escrito; já o segundo constata a enorme diversidade de hábitos e costumes no campo sexual, dando como exemplo a aceitação da homossexualidade entre os romanos, há cerca de 2.000 anos atrás (neste aspecto, aliás, estes poderiam se considerar muito mais “abertos” que o pensamento dominante na atualidade...).

 

Entretanto, o artigo, mineiramente, não responde explicitamente à questão levantada no título (ou será que esta é que deveria ser colocada em outros termos?). De qualquer forma, suscita uma serie de questionamentos e reflexões, que há muito tempo me preocupam e que gostaria de aprofundar.

 

Vivemos um tempo de profundas transformações no campo da sexualidade. A liberação sexual que se vive hoje - particularmente no mundo ocidental – leva, por um lado, a uma certa anomia, no campo moral: a permissividade parece ser a tendência predominante. Mas, concomitantemente, também suscita reações que, a partir de fundamentalismos de diversos tipos, afirmam posições radicalmente contrárias.

 

Diante deste quadro, uma doutrina moral única, estipulando regras e normas a serem obedecidas em qualquer tempo e lugar – tal como proclama o discurso oficial da Igreja católica – dificilmente consegue se impor: os questionamentos surgem inevitavelmente, levando a uma crescente defasagem entre as normas estabelecidas e a prática concreta dos cristãos.

 

Esta não é, de forma alguma, uma novidade: a extensão do desacordo, nesta área, vem sendo crescentemente reconhecida. Já no final do século passado, Pietro Prini – teólogo italiano – chegava a falar de um cisma submerso (Prini, 1999, 78). No caso do Brasil, Pierucci, já na década de 1970, afirmava: Ser católico (mesmo praticante) e desobedecer às normas da Igreja não são realidades que se excluem mutuamente (Pierucci, 1978, 7).

 

Muitas pesquisas comprovam esta defasagem, inclusive as que realizamos há mais de duas décadas. A primeira delas foi feita com um pequeno grupo de profissionais católicas: já então descobríamos a “esquizofrenia” crescente de uma prática que, ao enfrentar-se com os problemas concretos – de relações pré-matrimoniais, virgindade, monogamia, contracepção e aborto, até homossexualidade e masturbação - se distanciava das normas oficiais da Igreja (Ribeiro, 1992) (Por coincidência, o artigo daí resultante foi apresentado ao Grupo de Emaús, marcando minha entrada no mesmo).

 

As duas pesquisas seguintes, realizadas entre mulheres das Comunidades Eclesiais de Base/CEBs, com outro enfoque de classe - setores populares – continuavam, entretanto, indicando a mesma “incoerência” entre doutrina e prática. Mas as mulheres entrevistadas não se sentiam “infiéis” em relação à Igreja; em face de uma doutrina inaplicável ao seu cotidiano, descobriam e valorizavam o âmbito da consciência pessoal, reformulando o próprio conceito de pecado, que já não se situaria tanto na desobediência em nível das normas de comportamento, mas na negação dos valores mais profundos aos quais elas se referem (Ribeiro, 1997, 128).

 

Finalmente, a última pesquisa foi realizada com 23 sacerdotes. Em uma posição estruturalmente “incômoda”, entre a rigidez da doutrina oficial e uma realidade em plena transformação, seu discurso expressa dificuldades e embaraço para abordar a temática da sexualidade, junto com o reconhecimento da limitação – ou mesmo inexistência – de espaços intereclesiais para discutir temas considerados “controvertidos e delicados”; neste contexto, seu (aparente) desinteresse mal encobre o receio de possíveis sanções eclesiásticas (Ribeiro, 2002).

 

Na época em que estas pesquisas foram realizadas, esperávamos que o diagnóstico da defasagem entre discurso e prática ajudasse a desenhar mudanças no campo cristão. Entretanto, passado todo este tempo, não houve diferenças significativas a nível do discurso eclesiástico oficial, que permaneceu praticamente idêntico.

 

Já a nível da prática, os recentes escândalos que concernem a pedofilia em meios eclesiásticos, a homofobia persistente – em maior ou menor grau – e a hipocrisia em manter as aparências, no caso do celibato (formalmente) obrigatório, sem falar nas práticas já hoje incorporadas pelos cristãos à sua vida cotidiana – como a contracepção, a vida sexual pré-matrimonial e as segundas e terceiras uniões – apenas comprovam que a defasagem, já constatada pelas pesquisas há cerca de três décadas, se ampliou ainda mais.

 

Creio que houve também uma mudança ao nível da consciência de muitos cristãos: hoje em dia, as normas oficiais passam a ser crescentemente ignoradas, quando não consideradas como irrelevantes. O próprio Cardeal Martini, em sua última entrevista/testamento – publicada um dia depois de sua morte, em 31 de agosto de 2012 – se questionava: Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da igreja em matéria sexual. A igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia (Martini, 2012)?

 

Por outro lado, a transformação social e cultural continuou se acelerando, neste período, com o processo de globalização e os progressos da tecno-ciência: a novidade do sexo virtual, as novas tecnologias no campo da reprodução e a liberdade das relações sexuais, apesar do aumento – ou da maior visibilidade - da violência sexual, da homofobia e do tráfico humano. Ao mesmo tempo, surgem reações opostas e os confrontos ideológicos se acirram, com repercussões inclusive no campo político.

 

Neste quadro complexo e contraditório, é possível detectar uma consciência dos direitos sexuais e reprodutivos que se amplia e, ao mesmo tempo, a importância e a urgência de resgatar os grandes valores éticos.

 

Isto não significa voltar atrás, nem estabelecer de novo uma série de regras que delimitem estritamente os limites do permitido ou do proibido, com o sério risco de recair em um moralismo desvinculado da realidade. Há que preservar espaços onde o desejo possa se expressar: é aí, no campo da liberdade individual, que se exerce, em última análise, o direito a decidir, inerente a cada ser humano.

 

 

Mas talvez se possa falar de uma “ética humana”, que se aplicaria a todas as pessoas, independentemente de terem ou não uma afiliação religiosa. O critério básico para a vivência da sexualidade seria a aceitação livre e recíproca de pessoas adultas e responsáveis, repudiando todo tipo de violência sexual ou de imposição neste campo.

 

E aqui creio que os cristãos podem ter uma palavra a dizer. Não tanto enquanto membros de uma instituição religiosa em plena crise, cuja doutrina moral precisa urgentemente ser reformulada e que – esperamos! – pode mudar no futuro. Mas simplesmente enquanto homens e mulheres comuns, que buscam, à luz da Boa-Nova de Jesus, descobrir caminhos novos, entre os meandros da sexualidade. Traduzir sua mensagem, centrada sobre o valor da vida, a dignidade da pessoa humana, a igualdade entre o homem e a mulher e a lei do amor, no nosso contexto cotidiano, significa optar por uma prática que já não se pauta por certezas absolutas – a partir de uma lista de regras e de uma definição rígida “do que pode” e “do que não pode” – mas que representa uma busca permanente da opção consciente e livre, mesmo implicando riscos e possibilidades de erros.

 

Porque a sexualidade marca nosso corpo, e falar de corpo é descobrir sua profunda imbricação com o sopro que o habita: nesta aliança profunda entre corpo e espírito reside o locus do encontro com a Transcendência. Deus não é primeiramente uma realidade para ser pensada, mas fundamentalmente para ser sentida pela totalidade do nosso ser, semelhante a um perfume, nos diz Leonardo Boff (Boff, 2004, 126) E a imagem do perfume é especialmente feliz, porque indica a ideia de algo que permeia a pessoa humana como um todo e que implica não só a dimensão estritamente espiritual mas também a concretude do corporal e nela a marca da sexualidade.

 

 

Conseguir nos aproximar de Deus e senti-lo misteriosamente presente em nosso corpo individual e sexuado é um caminho para encontrá-lo com todo o nosso ser, em todas as dimensões da vida.

 

Referências

 

BOFF, Leonardo - O Senhor é meu pastor -. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

PRINI, Pietro – Lo scisma sommerso – Il messagio cristiano, la società moderna e la Chiesa cattolica – Roma – Ed. Garzanti, 1999.

RIBEIRO, Lúcia – Vivência da sexualidade entre católicas in RIBEIRO, Lúcia (0rg) Entre o Desejo e o Mistério: novos caminhos da sexualidade (5 / 38) - Número especial de Comunicações do ISER - Ano 11 - No. 42 - Rio de Janeiro, ISER, 1992.

________________ - Anticoncepção e Comunidades Eclesiais de Base ” in: COSTA, Albertina de Oliveira e AMADO, Tina (orgs.) - Alternativas Escassas - Saúde, Sexualidade e Reprodução na América Latina (145-173) vol. 1, São Paulo: Ed. 34 / Fundação Carlos Chagas, 1994

________________ e LUÇAN, Solange - Entre (in)certezas e contradições - Práticas reprodutivas entre mulheres das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja católica - Rio de Janeiro: ISER / Editora NAU, 1997.

________________ Sexualidade e reprodução: o que os padres dizem e o que deixam de dizer - Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.

 

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