16 Fevereiro 2022
Enquanto o confronto interno à Igreja sobre o envolvimento do Papa Emérito Bento XVI no escândalo da pedofilia não dá sinais de enfraquecimento, existe no Vaticano um “sistema” testado e comprovado de encobrimentos que envolve as atuais lideranças da Santa Sé e os fidelíssimos do Papa Francisco. Um método de silêncio que previa (prevê?) evitar denúncias públicas e que certamente foi usado pelo atual chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, Luis Francisco Ladaria. Um influente cardeal que em 2017 foi nomeado pelo papa argentino como prefeito do dicastério encarregado de proteger a doutrina da Igreja e de realizar processos canônicos contra os supostos padres pedófilos.
A reportagem é de Emiliano Fittipaldi, publicada em Domani, 11-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Antes do seu alto cargo, Ladaria foi, a partir de 2008, por vontade de Bento XVI, secretário da mesma Congregação e assinou pelo menos duas cartas idênticas (uma nunca havia sido publicada antes na íntegra) nas quais fala de padres pedófilos, sugerindo aos bispos italianos e cardeais franceses que “evitem o escândalo público”. Com isso, convidava, de fato, ao silêncio e a não denunciar os fatos que a Igreja conhecia muito bem às autoridades judiciárias civis. Uma escolha que, como veremos, teve consequências graves.
O primeiro documento oficial, já publicado por este que escreve e por Giuliano Foschini no jornal La Repubblica há algum tempo, é de março de 2012. Trata-se de um decreto em que Ladaria e o então chefe da Congregação, William Levada, condenaram um sacerdote maníaco ao estado laical.
Giovanni Trotta – esse é o seu nome – residia no bispado de Lucera, perto de Foggia, Itália. Ladaria e Levada comunicaram primeiro que “o Pe. Gianni Trotta é culpado de crimes com menores contra o sexto mandamento”, mas depois acrescentaram que a destituição de Trotta não devia “gerar escândalo nos fiéis”.
Na prática, um convite à omissão, aquiescência que só podia ser rompida diante de um novo “perigo de abusos de menores” por parte do padre.
Em 2014, Trotta deixou a batina, mas se tornou treinador de um clube de futebol juvenil. Ninguém estava ciente da condenação canônica, de modo que ele pôde agir sem ser incomodado: em poucos meses, ele abusou de toda a equipe de meninos, 10 crianças entre os 11 e os 13 anos. Somente quando as famílias apresentaram algumas denúncias à Procuradoria é que um promotor italiano ordenou a prisão de Trotta, que, há dois anos, foi condenado, depois de um recurso, a 20 anos de prisão.
“A atitude das autoridades religiosas locais foi no mínimo superficial”, escreveu o juiz da audiência preliminar. “Mantiveram um silêncio absoluto, permitindo assim que o acusado continuasse frequentando menores impunemente e os tornando objeto das suas abomináveis perversões.”
No entanto, a questão parece sistêmica. Porque outra carta enviada por Ladaria ao bispo de Lyon, o cardeal Philippe Barbarin, é quase idêntica ao documento enviado ao bispado de Lucerna três anos antes. Era o dia 3 de fevereiro de 2015. Francisco era pontífice há dois anos e há meses prometia uma linha dura contra a chaga da pedofilia. Ele até anunciou “um tribunal para os bispos acobertadores”, que até hoje nunca viu a luz.
Em Lyon, porém, o seu amigo Barbarin estava lidando com um padre então desconhecido: o ogro em série Bernard Preynat. O bispo estava ciente de algumas denúncias que chegaram até ele sobre o sacerdote de Lyon, mas que permaneceram ocultas durante décadas, e perguntou a Roma como devia se comportar.
Ladaria lhe respondeu mais uma vez, convidando a “evitar escândalos públicos”: “Eminência, esta Congregação, depois de estudar atentamente o caso do sacerdote da sua diocese, Bernard Preynat, que Vossa Eminência nos indicou, decidiu lhe confiar a tarefa de prescrever as medidas disciplinares adequadas, evitando escândalos públicos. Deixando claro que, nessas condições, não pode ser confiado outro ministério pastoral que inclua eventuais contatos com menores”.
Apenas um ano depois, no início de 2016, o muro da omissão caiu. Não graças à Igreja, mas porque algumas vítimas pediram ajuda à justiça francesa. “Eu abusei de menores durante os campos de escoteiros por 20 anos. Isso podia ocorrer com quatro ou cinco crianças todas as semanas”, confessou Preynat aos juízes, condenado a cinco anos de prisão em 2020.
O cardeal Barbarin, que foi acusado de não fazer de denúncia, foi recentemente absolvido em um recurso, enquanto o Vaticano e Francisco invocaram a imunidade diplomática para Ladaria, que foi chamado a comparecer perante o Tribunal Criminal de Lyon.
Se o direito internacional de fato reconhece a imunidade penal aos agentes públicos por atos cometidos em nome do “soberano pontífice”, as duas cartas evidenciam que Ladaria pode não ter cometido crimes penais, mas certamente promoveu uma cultura da omissão que pouco se concilia com o cargo que ele detém e com as promessas de Francisco sobre a transparência do seu pontificado em relação ao caso da pedofilia eclesiástica.
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Os documentos vaticanos sobre os pedófilos, Papa Francisco e o “sistema do silêncio” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU