08 Julho 2022
"Aqui volta emergir mais uma vez a dificuldade da Igreja em estabelecer uma relação serena com a sexualidade, concebendo-a como uma dimensão constitutiva da pessoa e como um componente essencial da relacionalidade humana, que deve, portanto, crescer com o desenvolvimento da relação e poder se expressar nas modalidades escolhidas pelo casal, sem ter que se submeter a proibições externas que acabam por empobrecer e, às vezes, até colocar em sério risco a comunhão mútua", escreve o teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, nº 14, 15-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O recente documento do Dicastério para os leigos, a família e a vida intitulado Itinerários catecumenais para a vida matrimonial. Orientações pastorais para as Igrejas particulares, publicado cinco anos após a publicação da Exortação Apostólica Amoris Laetitia por ocasião da celebração do Ano "Famiglia Amoris Laetitia" suscitaram (e não poderiam deixar de suscitar) vivas reações na opinião pública. De fato, os meios de comunicação social de diversas naturezas e orientações têm dado grande destaque ao tema da castidade pré-matrimonial (e, em outra valência, também matrimonial), enfatizando sobretudo a importância que assume no período que antecede o casamento, confirmando assim a doutrina tradicional da Igreja que sempre condenou as relações pré-matrimoniais.
A reação negativa (de resto justificada e sobre o mérito da qual voltaremos mais adiante) a essa posição, acabou por ofuscar os aspectos significativos do documento que merecem atenção. Embora essa posição ocupe um espaço bastante reduzido - o número 57 (com alguns breves acenos posteriores) dos 94 que compõem o texto – constitui, em todo o caso, o elemento destinado a causar escândalo no plano jornalístico e, portanto, a multiplicar a audiência.
Mas, para além do juízo que os instrumentos da comunicação social lhe deram, é principalmente importante apreender o sentido que o documento assume e o objetivo que persegue. Significado e objetivo, desde o início, especificados no Prefácio do Papa Francisco, que destaca como a preparação para o matrimônio deva assumir a forma de um verdadeiro catecumenato - em analogia com a preparação para o batismo dos adultos - como parte integrante do processo sacramental, a fim de evitar a multiplicação de celebrações matrimoniais nulas ou inconsistentes.
A preparação demasiado superficial e, portanto, a edificação da vida a dois em bases frágeis, é de fato a motivação de muitos fracassos; motivação que torna necessária (e urgente) uma renovada ação pastoral, que pressuponha um caminho em etapas que se prolongue no tempo. O documento aborda tal questão a partir de dois pontos de vista que constituem as duas partes principais em que se divide: os princípios gerais e a proposta pastoral.
Na primeira parte - aquela dedicada aos princípios gerais - o objetivo buscado é fazer com que os cônjuges percebam através da experiência do catecumenato a beleza do encontro com Cristo e ajudá-los a discernir sua vocação com o acompanhamento de toda a comunidade - o sacramento é um fato eclesial - e aprofundar o sentido da própria escolha, bem como superar os obstáculos que inevitavelmente surgirão no curso da existência futura. Para tanto é solicitada a adoção de uma "pastoral permanente", que deve desenvolver-se ao longo de todo o percurso da vida nas várias fases de seu crescimento humano e de fé.
A segunda parte (a mais consistente) – aquela em que é ilustrada a proposta pastoral – centra-se nas exigências do itinerário catecumenal, nos tempos e nas modalidades em que deve desenvolver-se. Apresentam-se aqui os pressupostos da formação pessoal em vista da realização de uma maturidade humana e espiritual que dê solidez à relação conjugal e abra os futuros cônjuges às instâncias da sociedade e da Igreja. Neste contexto, o documento se detém em destacar, por um lado, a necessidade de uma séria educação afetiva e sexual e, por outro, lançar luz sobre a importância da fé, pois a participação no matrimônio no amor de Deus oferece uma nova profundidade ao amor humano.
Mas o que ocupa o maior espaço de reflexão é a apresentação das etapas a serem percorridas no desenvolvimento do itinerário catecumenal, que prevê momentos de escuta da Palavra de Deus e de oração, de aprofundamento dos valores que devem estar na base da vida de relacionamento, focalizando o significado do matrimônio cristão e o caminho a percorrer para vivê-lo.
Assim passa-se da catequese de iniciação à fé ao aprofundamento de temas ligados à vida do casal (dinâmicas do amor conjugal e regras a respeitar, conceito de paternidade responsável e orientações para a educação dos filhos); até o oferecimento de critérios para o correto discernimento da própria escolha e a preparação da liturgia. A proposta se encerra com a solicitação à comunidade cristã para acompanhar os primeiros anos de vida do casal e prestar atenção específica aos casais em dificuldade ou irregulares, criando espaços e roteiros especiais para que possam se sentir, em todos os aspectos, inseridos na vida da comunidade.
No contexto dessa reflexão, insere-se o tema da castidade. O documento destaca, em primeiro lugar, que "nunca deve faltar à Igreja a coragem de propor a preciosa virtude da castidade, ainda que isso agora esteja em contraste direto com a mentalidade comum", enfatizando como ela "ensina os recém-casados os tempos e os modos do verdadeiro amor, delicado e generoso, e prepare para que o autêntico dom de si possa ser vivido posteriormente por toda a vida do matrimônio" (n. 57). Essa é a confirmação do "não" às relações pré-matrimoniais e a exigência de limitar o exercício pleno da sexualidade apenas ao âmbito da vida matrimonial.
Ora, além do anacronismo dessa posição, aqui volta emergir mais uma vez a dificuldade da Igreja em estabelecer uma relação serena com a sexualidade, concebendo-a como uma dimensão constitutiva da pessoa e como um componente essencial da relacionalidade humana, que deve, portanto, crescer com o desenvolvimento da relação e poder se expressar nas modalidades escolhidas pelo casal, sem ter que se submeter a proibições externas que acabam por empobrecer e, às vezes, até colocar em sério risco a comunhão mútua.
A restrição exclusiva do uso completo da sexualidade dentro do perímetro do casamento, além de ser antinatural - é difícil justificar que o que na véspera era proibido se torne lícito no dia seguinte, após a celebração do casamento - impede às pessoas ainda não casadas um conhecimento global do outro/outra, que ofereça garantias tranquilizadoras para a escolha que se está prestes a fazer. No passado, não eram raros os casos de casais que, não tendo experimentado plenamente o conhecimento sexual, em conformidade com os dispositivos da Igreja, mais tarde passavam a ter sérias dificuldades que podiam chegar a pôr em crise a sua relação.
A inserção da proibição mencionada no documento acabou levando muitos à sua recusa, com a consequência de impedir que os aspectos positivos (que não faltam) sejam apreendidos e usufruir dos importantes estímulos que oferece para uma reflexão séria sobre o significado e a dignidade do matrimônio cristão.
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A dificuldade em estabelecer uma relação serena com a sexualidade. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU