07 Junho 2022
"A promoção da paz é, portanto, em última análise, o efeito de uma pluralidade de intervenções, tanto no plano cultural como político, visando a busca do bem de toda a família humana", escreve o teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado por Rocca, nº 12, 15-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A questão da guerra e da paz é tão antiga quanto a história da humanidade. Em todas as culturas, a partir das mais distantes no tempo, os questionamentos sobre a legitimidade (ou não) da guerra e sobre os caminhos a percorrer para construir a paz ocuparam um papel central na reflexão ética. A tradição judaico-cristã não é exceção. O Antigo Testamento, assumindo os modelos culturais da época (ainda que com variações devidas às diferentes épocas históricas em que se inserem os vários textos), nunca se recusou a dar o seu assentimento à legitimidade da guerra, embora não carecendo, ao mesmo tempo, de propostas e perspectivas – basta pensar na tradição profética – visando almejar a promoção da paz e ver nela um dos sinais mais significativos do advento dos tempos messiânicos.
O Novo Testamento destaca a exigência de construir a paz como uma tarefa fundamental do empenho cristão.
Ao lado da bem-aventurança contida no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5, 9), são numerosas as intervenções que confirmam esta mensagem, que veio a afirmar-se com força nos primeiros séculos do cristianismo. A radicalidade da proposta evangélica levou a comunidade cristã primitiva a assumir o ideal pacifista, a ponto de dar testemunho pela escolha da objeção de consciência.
Um ponto de virada dessa posição foi Agostinho de Hipona, que foi o primeiro a formular o conceito de "guerra justa". Embora reconhecendo que a promoção da paz é a tarefa mais importante da comunidade política, reconhece a inevitabilidade da guerra em alguns casos, delineando as condições que a justificam. O que torna legítimo o recurso à guerra é, por um lado, o pessimismo antropológico agostiniano que considera o homem sob o domínio do mal; e, do outro lado - e isso justificaria também a participação dos cristãos na guerra – uma interpretação redutiva do Sermão da Montanha, que inspira sentimentos interiores e as opções privadas, mas que não pode dizer respeito às opções públicas. Agostinho, lembrando que o objetivo da chamada “guerra justa” não é autorizar o exercício de qualquer tipo de guerra, mas colocar limites a possibilidade de declará-la (ius ad bellum), estabelece três condições a esse respeito: a justa causa, a reta intenção e a autoridade legítima.
A Escolástica Medieval retoma esse conceito. Tomás de Aquino, embora considere a paz um bem a ser perseguido com todas as forças, reconhece a existência de situações em que, devido às graves violações dos direitos de um povo, a guerra se torna legítima, e às condições postas por Agostinho acrescenta mais duas: a extrema ratio, o fato de terem sido feitas todas as tentativas para chegar a um acordo por via diplomática, e o debitus modus, ou seja, a limitação da intervenção ao uso de meios legítimos e a proteção dos civis (ius in bello).
A plena formulação da doutrina da "guerra justa" virá mais tarde na época moderna. A provocar seu desenvolvimento contribuiu tanto o nascimento dos Estados absolutos, que reivindicam para si o monopólio da força, quanto a recuperação do direito de legítima defesa, transposto do plano individual para aquele social, ampliando, em razão do absolutismo autoritário, a possibilidade de intervenção e centrando a atenção no delineamento das condições acima referidas, sobretudo na "autoridade legítima", conferindo assim centralidade ao princípio de autoridade.
A guerra, tanto defensiva como ofensiva, torna-se assim a forma normal de regulamentação da solução dos conflitos; aliás, é até considerada - esta é a tese de Carl von Clausewitz - "a continuação da política por outros meios".
Assiste-se, assim, à politização da guerra com formas de militarismo radical, enquanto se desenvolvem paralelamente movimentos e experiências pacifistas - basta pensar no testemunho de Gandhi - que, no entanto, não conseguem alterar a trajetória dominante marcada por um duro belicismo.
O que determina a atenuação dessa posição é sobretudo a disponibilidade de um potencial bélico de enorme dimensão destrutiva – por exemplo, as armas químico-bacteriológicas e sobretudo a descoberta da energia atômica - que forçam uma profunda mudança na percepção do significado da guerra, destinada a tornar possível a destruição de toda a humanidade. Insere-se neste contexto a promulgação da Pacem in terris de João XXIII (1963) que rejeita o conceito de "guerra justa", chegando a afirmar que é "totalmente desarrazoado (alienum a ragione) pensar que na era da bomba atômica a guerra possa ser utilizada como instrumento de justiça” (n. 67). Em princípio, esta é a doutrina que prevaleceu (e prevalece) no magistério posterior da Igreja, até as últimas tomadas de posição do Papa Francisco que, em relação ao conflito Rússia-Ucrânia em curso, não hesitou em falar de loucura.
A gravidade de algumas situações em que ocorreram atrocidades inauditas, com violências, estupros e verdadeiros genocídio - o que aconteceu nos Balcãs foi determinante nesse sentido – provocou a exigência de intervir também com as armas, assumindo, até o possível, absurdas formas de barbárie. É por isso que nasceu a doutrina da "ingerência humanitária" e das operações de "polícia internacional". O objetivo aqui é prestar socorro às vítimas da agressão por meio do envolvimento da comunidade internacional. São instituições que se diferenciam radicalmente da guerra, tanto pelo objetivo perseguido - deter ou pelo menos conter um processo de grave violência - quanto pelas modalidades de execução, caracterizadas por uma intervenção claramente limitada e destinados exclusivamente a desarmar o agressor.
A legitimidade dessas ações depende estritamente da ocorrência de determinadas condições, como a imparcialidade, a vontade de promover uma verdadeira “desescalada” da violência e a prudência no uso das armas. Por isso, sua plausibilidade só é tal na presença de situações extremas, nas quais o uso coercitivo da força se faz necessário tanto pelo fracasso da negociação política quanto pela consideração de que os efeitos negativos da não intervenção seriam mais graves do que os produzidos pela própria intervenção. Ou ainda: por isso é necessário como garantia de imparcialidade o controle das grandes organizações internacionais em condições de avaliar, para além e fora de interesses particulares, a oportunidade (e mesmo a necessidade) de intervir.
Mas, a par da rejeição da guerra, a paz necessita, para se afirmar, da promoção de iniciativas que contribuam para construir uma consciência pacífica e que deem vida a instituições destinadas a constituir uma alternativa à guerra e a favorecer formas de diálogo e de confronto diplomático.
O que deve ser visado é a difusão de uma "cultura de paz", saindo de um estéril utopismo, e lutando para que se concretizem as mudanças necessárias para tornar o projeto pacifista cada vez mais plausível em todos os níveis. Nesse sentido, parecem existir três áreas a serem privilegiadas: a construção da justiça e dos direitos, a adoção da não violência como forma ativa de resolução dos conflitos e, por fim, o exercício do direito de resistência, da desobediência civil e da objeção de consciência.
O primeiro âmbito - o da justiça e dos direitos humanos - não pode deixar de lidar com o crescimento exponencial das desigualdades, não só entre os povos - basta aqui recordar o fosso entre o Norte e o Sul do mundo - mas também entre as classes sociais com forte incremento da pobreza mesmo nos países chamados desenvolvidos. As fortes tensões levantadas por verdadeiras (ou presumidas) motivações ideológicas ou religiosas se devem em grande parte a razões econômicas; ou seja, são a expressão de uma reação violenta à violência institucional de uma ordem mundial, que mantém uma ampla área da família humana em estado de minoridade.
A incapacidade de dar vida a um sistema baseado na justiça distributiva e na equidade é a principal causa de situações socialmente conflituosas que desembocam nas (inúmeras) guerras que assolam hoje nosso planeta. Não há paz sem justiça ou – como recordava Paulo VI na encíclica Populorum progressio – a justiça é o verdadeiro nome da paz. O capitalismo totalitário, ainda hoje hegemônico, deve ser superado pela construção de uma nova ordem, que destrua todas as estruturas injustas (que em si são violentas e geradoras de violência) e responda adequadamente às necessidades fundamentais de toda a humanidade a partir dos mais pobres. Os direitos da pessoa (de cada pessoa) devem ser reconhecidos e salvaguardados, não esquecendo que, numa época de globalização como a atual, isso só pode acontecer alargando a esfera de ação da comunidade mundial.
O segundo âmbito – o da não-violência como forma ativa de resolução de conflitos – exige a adesão a um modelo não violento, não uma escolha tática e contingente, mas como uma opção de princípio. As dificuldades na implementação dessa escolha multiplicaram-se hoje. Não apenas para a acentuação dos conflitos e sua radicalização, mas também para o avanço de uma mentalidade justificacionista que, em nome do realismo político, se recusa a considerar toda tentativa de enfrentar situações de conflito sem recorrer à violência. Isso significa que é primordialmente necessário redescobrir as raízes antropológicas da não-violência que devem ser buscadas na recusa a considerar o outro como "inimigo", reduzindo-o a um simples "objeto" e negando-lhe toda dignidade pessoal.
A paz requer, portanto, a superação da distância do outro e a positiva elaboração dos conflitos originados pelas "diferenças". A persistência no homem de profundas ambivalências, que têm sua sede no eu profundo, requer o recurso a uma educação positiva da consciência orientada a internalizar valores como a confiança no outro, o diálogo, a tolerância, a mansidão, a abnegação, a paciência, a coragem e aceitar os próprios limites e falibilidades. Mas isso não é o suficiente. É necessário inserir tudo isso em um projeto de ética pública, que se propunha como ética da não-violência, e não como ética de violência legítima e da guerra justa, a criar instrumentos para uma solução pacífica dos conflitos como a via diplomática, o fortalecimento das instituições internacionais que promovam o desenvolvimento do sistema democrático, não apenas no sentido formal, mas na direção socioeconômica e política.
Por fim, o terceiro âmbito - aquele do direito de resistência, da desobediência civil e da objeção de consciência - exige que se abra espaço para algumas formas de testemunho radical da não-violência, que confiram ao pacifismo um caráter prático e ativo a ser vivido na história. Dessa forma é possível implementar ações públicas que concretamente possibilitem uma forma de não-violência com efeitos imediatos na mudança social. Entre essas ações merecem ser lembradas as práticas de defesa não violenta (infelizmente ainda pouco conhecidas e implementadas), o direito de resistência e a desobediência civil, que comportam uma verdadeira violação da lei, violação que tende a impelir à mudança e, finalmente (mas não na ordem de importância), a objeção de consciência.
A eficácia dessas práticas (e de sua própria legitimidade ética) está estreitamente ligada à sua capacidade de se tornarem apelo público e ao significado simbólico que sabem desencadear. Mas é também ligada aos desenvolvimentos de uma sociedade autenticamente democrática, na qual o profundo respeito pelas instituições é acompanhado pelo reconhecimento de suas limitações e da necessidade de submetê-las a constantes mudanças. A promoção da paz é, portanto, em última análise, o efeito de uma pluralidade de intervenções, tanto no plano cultural como político, visando a busca do bem de toda a família humana.
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O caminho de uma ética para a convivência. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU