O ícone de Stalin com a Santa enfurece os georgianos. “Moscou quer nos desestabilizar”

Foto: Ant Rozetsky | Unsplash

Mais Lidos

  • O economista Branko Milanovic é um dos críticos mais incisivos da desigualdade global. Ele conversou com Jacobin sobre como o declínio da globalização neoliberal está exacerbando suas tendências mais destrutivas

    “Quando o neoliberalismo entra em colapso, destrói mais ainda”. Entrevista com Branko Milanovic

    LER MAIS
  • Abin aponta Terceiro Comando Puro, facção com símbolos evangélicos, como terceira força do crime no país

    LER MAIS
  • A farsa democrática. Artigo de Frei Betto

    LER MAIS

Assine a Newsletter

Receba as notícias e atualizações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em primeira mão. Junte-se a nós!

Conheça nossa Política de Privacidade.

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

16 Janeiro 2024

Um devotado Joseph Stalin, de pé, com a mão enfiada em seu longo e distintivo casaco, ao lado da Santa Matrona, a Cega, a visionária morta em 1952 e venerada como santa pelo Patriarcado de Moscou. O ditador soviético, que entre as décadas de 1920 e 1930 perseguiu ferozmente a Igreja Ortodoxa, arrasando os locais de culto e ordenando a execução de dezenas de milhares de religiosos, é agora retratado como um crente num ícone sagrado exibido na principal igreja georgiana, a imponente Catedral de Sameba, no coração de Tbilisi. Um alvoroço estourou na Geórgia e o Patriarcado foi obrigado a recuar, decretando a necessidade de modificar a efígie.

A reportagem é de Luna De Bartolo, publicada por La Repubblica, 15-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Mas, no momento, continua em seu lugar, o último em que se esperaria encontrar um revolucionário comunista.

Uma história grotesca mas muito séria, na qual se cruzam muitas das tensões que dilaceram o pequeno país do Sul do Cáucaso: dos esforços do Kremlin para continuar a influenciar a ex-República Soviética que olha para o Ocidente, ao curto-circuito causado pela profunda proximidade entre as igrejas ortodoxas georgiana e russa, à falta de elaboração crítica do passado na URSS e especificamente da figura de Stalin, compatriota odiado ou admirado, mais frequentemente lembrado com afetuosa indulgência.

As tensões culminaram na última quarta-feira, após dias de violento debate, numa expedição organizada pela extrema direita Alt-Info, da qual também participaram membros do clero ortodoxo de batina, em frente à casa da ativista Nata Peradze, que na noite anterior tinha sujado o ícone escandaloso em sinal de protesto.

Só a intervenção da polícia, que apareceu com 300-400 unidades, evitou que uma maré de homens invadisse a casa da mulher. "Diversos membros da minha família foram executados ou enviados para a Sibéria por Stalin, acho que não tenho que explicar por que considero repugnante a presença daquele indivíduo em uma igreja", contou ao Repubblica na quinta-feira Peradze enquanto esperava para ser evacuada para um local protegido. Segundo a ativista, a história do ícone é uma provocação intencional e não tem dúvidas sobre o mandante: “Tem a assinatura de Moscou".

Peradze não é a única a acreditar que a efígie é mais uma bomba lançada pela Rússia para desestabilizar o país, que no mês passado obteve o cobiçado status de candidato à UE. Diferentes representantes da sociedade civil manifestaram-se nesse sentido. O ícone foi doado à catedral pela Aliança dos Patriotas, partido conservador que múltiplas investigações acusam ser financiado pelo Kremlin.

Além disso, a Igreja Ortodoxa Georgiana, acéfala mas fortemente influenciada pelo Patriarcado de Moscou, é o meio pelo qual a Rússia pode veicular a sua propaganda. O clero georgiano é o megafone na pátria de todas as narrativas antiocidentais plasmadas em Moscou, prega a intolerância para com as comunidades LGBT, considera-se parte de um choque entre civilizações. E se a maioria dos georgianos têm um ataque de bile à simples menção da Rússia, tem grande respeito pela instituição da Igreja, é religiosa e conservadora.

Aqui está a chave nas mãos do Kremlin: um precioso recurso autóctone. E, além disso, tem Stalin. O ditador era georgiano e, apesar da rejeição da experiência soviética, o sentimento popular em relação a ele, especialmente entre os menos jovens, permanece ambíguo. Se na Rússia a sua reabilitação está ligada à evolução do regime de Putin, na Geórgia o apego à sua figura está imbuído de orgulho patriótico.

O ícone do qual ele é protagonista retrata cenas da vida da mística Matrona Moskovskaya. Cega de nascença, acreditava-se que tinha o dom da clarividência. Segundo uma fonte, após a invasão nazista, Stalin visitou a futura santa, que previu a vitória soviética desde que o líder não tivesse deixado a capital. Uma circunstância rotulada como absurda pelo próprio Patriarcado Russo, mas que contribuiu para apoiar o mito popular do "Stalin cristão", cujas raízes estão no passado do estadista soviético como seminarista e no afrouxamento do controle sobre os ortodoxos durante a guerra.

O primeiro ícone representando o fantasioso encontro entre Stalin e a Matrona aparece em 2008 em São Petersburgo. Mesmo na época, o escândalo foi tal que teve de ser removido. Hoje o encontramos novamente em Tbilisi. Quer se trate ou não de um presente envenenado do Kremlin, o certo é que a Igreja georgiana se confirma como a força reacionária mais poderosa no pequeno país pós-soviético que sonha com a Europa.

Leia mais