A tragédia brasileira segundo Fernando Bonassi

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

09 Setembro 2016

“A imagem propagada pelos últimos governos de um povo em movimento se revela enquanto seu oposto: um povo paralisado, como num engarrafamento; atolado e sem projeto, como numa fracassada construção de piscina. O ao redor que se movimenta, sempre para o mesmo lugar horroroso e sem esperança, e parece sugar a todos sem motivo. “A dívida cresce mesmo quando a gente não se mexe…”. Paradoxalmente, a tragédia brasileira que Bonassi narra se faz num tempo e espaço marcados pelo vazio, até mesmo de uma experiência trágica de fato”, afirma Alexandre Pimenta, em artigo publicado por LavraPalavra, 07-09-2016.

Eis o artigo.

Luxúria (2015), o último romance do escritor brasileiro Fernando Bonassi, é rico em elementos para pensar a conjuntura nacional. A trágica história de um operário e sua família, baseada “em pessoas e acontecimentos reais, lamentavelmente”, tenta sintetizar nosso último momento histórico “de prosperidade num país acostumado a viver na merda”. Por ironia do destino, o lançamento do livro marcou o início do fim dessa fase – e o um rápido retorno às origens, quer seja, a merda.

A ascendente família operária do livro é um exemplo de um país que se acha, de repente, de/na dita classe média. E como tal, vive uma obsessiva busca e reafirmação de distinção e status via consumo. O carro próprio. O jantar fora. A moradia em um condomínio, o Bairro Novo, que já não é mais o antigo bairro operário ou os aglomerados de barracões das classes populares de outrora… Sem falar no objeto central narrativa: a piscina comprada via financiamento! Esta surge como promessa de felicidade, de ascensão social definitiva, de garantia do vínculo familiar, uma prova de que o protagonista é de fato “especial”.

O operário em questão não é apenas um operário comum, e nem ele se sente enquanto tal. Ele é plus. E se tornará mais após a piscina. Trabalha num setor da fábrica com ar-condicionado. É especializado. Não precisa de seus colegas, e referência de sindicato só tem ao visitar seu velho no asilo de metalúrgicos – aqueles que se insurgiram na história e agora apodrecem nas margens dessa sociedade, junto com seus ideais. Sua potência viril (de demarcação de território pelo consumo) é encenada em atos sexuais com sua esposa: o momento nacional é de puro prazer, afinal.

Mas há algo que não se encaixa, como o amargor na boca e o desconforto físico que toma de assalto o operário de vez em quando. A simulação dessa forma de vida, de aparentar ser sempre mais, apresenta falhas viscerais. O carro próprio, na prática, serve basicamente para se irritar e se engarrafar junto aos outros rivais em rodas, enquanto se intoxica com o ar de uma cidade “que tenta multiplicar o mesmo espaço sem sair do lugar”. O condomínio nada mais é que uma armadilha, longe do trabalho e cuja prometida privacidade é vigiada, solitária e hostil. A piscina da revista não cabe na realidade, por ser além das medidas e do orçamento – e fica lá a eterna construção a anunciar o fracasso reconhecido e sofrido enquanto individual. “Aqui tudo é construção e já é ruína”, já dizia Caetano. O “eu sou especial” que o operário vive falando possui um peso cruel, e sobre essa fala se ergue a tragédia.

Ao longo dos rápidos e fragmentados capítulos do autor, a angústia e a frustração vão crescendo. O operário e sua família entram numa espiral sem fim (aliás, com um fim mortal). Mas já não estamos na época de Chico e sua Construção, quando a morte do operário pelo menos atrapalhava o tráfego. Aqui ela se torna espetáculo midiático e acelera a circulação de imagens e mercadorias. O rei se revela menos que um servo. O pecado capital que intitula o livro representa bem a saga consumista desse sujeito pelo excesso que se encerra na desgraça; nessa seara onde não há bordas, nem lastro, como o capital fictício que reorganiza esse mundo que vemos.

A família em questão é marcada por uma forte incomunicabilidade. O pai usa do não-dizer do sexo e das compras para falar algo de si para a esposa. A esposa se afunda em seus antidepressivos para desaparecer e já não ter que assumir o que quer dizer. O filho, agredido na escola, fala com seus hematomas; o cão, com seus latidos (o único com nome!). Os contatos com os agentes extrafamiliares são meramente contratuais: com a empregada doméstica, o dentista, o patrão, os serventes de obra, a atendente comercial, o pastor. Chegamos ao limite de perguntar se ainda há algo a dizer, tamanha situação absurda. Talvez por isso o linguajar chulo das personagens e sua coleção de xingamentos.

A imagem propagada pelos últimos governos de um povo em movimento se revela enquanto seu oposto: um povo paralisado, como num engarrafamento; atolado e sem projeto, como numa fracassada construção de piscina. O ao redor que se movimenta, sempre para o mesmo lugar horroroso e sem esperança, e parece sugar a todos sem motivo. “A dívida cresce mesmo quando a gente não se mexe…”. Paradoxalmente, a tragédia brasileira que Bonassi narra se faz num tempo e espaço marcados pelo vazio, até mesmo de uma experiência trágica de fato[i].

Através do livro, Bonassi usa toda sua ferocidade e acidez para atacar a tese petista máxima colocada em prática (e cuja morte já está anunciada): “a classe operária quer ser classe média”. Sua crítica ao projeto da dita “cidadania via consumo” aponta para uma crítica à falta de perspectiva política autônoma da classe trabalhadora e seu trágico ponto de chegada.

Não ascendemos, afundamos. O novo-neo-(social)desenvolvimentismo era só o velho capitalismo brasileiro. A história não perdoa ingenuidade ou ilusões. Estas estão sendo cobradas com juros (a taxas brasileiras!).

E afundaremos mais, sem dúvida, e sem tantos adornos ou distrações. Será que isso é ruim? O pessimismo, grandeza e fraqueza de Bonassi, não vê saída diante da experiência trágica e só consegue lamentar o beco sem saída – isso fica mais claro em suas entrevistas sobre o livro. Mas podemos dizer, com Marx (que está no livro, seja na epígrafe, seja no relógio da fábrica andando para trás): talvez voltar à dita velha condição operária seja a oportunidade de realizar uma novidade e transformação de fato. Ou:

“A situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperanças.”[ii].

Notas do autor:

[i] Safatle, ao comentar o filme Revolutionary Road na palestra “Afeto, Psicanálise e Política”, fala da rotina do “sonho americano” como o trágico no anti-trágico.

[ii] Enfim o desespero, de Vladimir Safatle.

Leia mais...