24 Junho 2020
Foi um dos últimos espectadores que pisou em La Scala, de Milão, antes do fechamento. Na noite anterior à quarentena forçada na Lombardia, Luigi Zoja assistiu à apresentação de O Trovador, de Verdi. E mesmo que ame a ópera e que a histórica sala de música anuncia sua reabertura para setembro, o psicanalista italiano não será dos primeiros a retornar. “O retorno será difícil, levará tempo. A Lombardia foi uma das regiões com mais contágios por coronavírus, mas ainda não há imunidade coletiva. Pessoalmente, prefiro ser prudente”, diz.
Nascido em Varese [Itália], em 1943, Luigi Zoja sabe que está entre o grupo de maior risco por causa de sua idade. Ex-professor do Instituto Carl Jung de Zurique, o eminente psicanalista passou os três últimos meses em seu escritório milanês. Embora nunca tenha sido muito partidário da comunicação virtual, adaptou-se progressivamente e agora costuma ter reuniões ou atender seus pacientes através do Zoom.
De um modo inesperado, em março, a pandemia afetou gravemente a Itália, e em especial a Lombardia. Mesmo assim, Luigi Zoja resgata alguns aspectos positivos da crise. “Obrigou-nos a assumir um ritmo mais tranquilo. Se um psicanalista da Idade Média visitasse o nosso tempo, diria que estamos muito acelerados. A pandemia foi uma situação contemporaneamente trágica pelos doentes e as mortes, mas no ambiente familiar houve um pouco mais de paz e de ritmos naturais, e se redescobriu algo que na Itália é muito importante, a cozinha. Diz-se que é algo tradicional, mas na realidade se cozinha pouco, porque todos têm pressa. Então, agora, são preparados mais pratos tradicionais, lentos, a cozinha da avó. E se conversa mais em família”, disse por telefone.
Luigi Zoja vivia em Nova York, em 2001, quando os atentados terroristas derrubaram as Torres Gêmeas. No dia seguinte, começou um estudo sobre o pânico coletivo que resultou no ensaio “Paranoia, la locura que hace historia”.
Nesses dias, o autor voltou a refletir a respeito do tema. “Nenhuma desinfecção ou vacina elimina a paranoia. Em todas as épocas, em todos os lugares, os homens sofrem de medo: um instinto natural e necessário, mas que em certos ambientes coletivos se torna pânico irracional”, escreveu no ensaio “Nuevas notas sobre el pánico”, publicado pela revista Ñ.
A entrevista é de Andrés Gómez, publicada por La Terceira, 20-06-2020. A tradução é do Cepat.
O medo provocado pela pandemia poderia alimentar a paranoia coletiva?
Claramente, esta é uma ocasião maravilhosa para os políticos mais perigosos, que sempre estão buscando um inimigo. A dificuldade, em uma perspectiva psicológica, é que o vírus não é um inimigo pessoal, e nossa psique tem uma tendência à personificação, inclusive em nossos sonhos, em nossos pesadelos, personificamos o mal. O vírus é algo abstrato e pertence à ordem da biologia. Evidentemente, há uma tensão muito próxima à paranoia, uma emotividade excessiva. Parece-me que é o que acontece nos Estados Unidos, o que vemos agora.
Nos Estados Unidos, em geral, a polícia tem uma tendência à brutalidade bastante paranoica, é um fato cultural. Quando vivia ali, uma vez a polícia me parou em um sinal vermelho. Eu tenho o costume de guardar os documentos dentro do bolso, mas a polícia não queria que eu o mostrasse, porque muitos americanos têm armas. Então, é preciso sair do carro, abrir as pernas e as mãos, e eles revistam você. É um modo muito parecido ao que usaram com o pobre George Floyd.
Em geral, a relação entre polícia e cidadãos não é boa, mas agora tudo está mais tenso, com o fechamento tudo se torna mais difícil. Na Itália, agora há uma concentração de pequenos roubos, é uma manifestação da aceleração das tensões provocada pelo fechamento. Nos Estados Unidos, claramente as coisas são bastante extremas.
Como recorda o ambiente em Nova York, pós-11-S?
Comecei a estudar a paranoia coletiva no dia 12 de setembro, vendo a paranoia das pessoas. Claro que a diferença hoje é a personificação. Em uma perspectiva psicanalítica, falamos da projeção da sombra, do que é mal, sobre um adversário, sobre o outro. Isso foi algo estrutural durante a Guerra Fria, e com o término do comunismo, nos anos 1990, vieram anos tranquilos. Mas houve um vazio na psique coletiva pela dificuldade de projeção da sombra: quem é o mal agora.
Os fundamentalistas islâmicos ofereceram um presente maravilhoso ao senhor Bush: a guerra contra o terror. E começou um grande jogo global muito confortável para a simplificação. Lembra-se do livro “O choque das civilizações?” É um livro de inícios dos anos 1990, mas com Osama Bin Laden se tornou best-seller, e foi muito acertado para o que hoje chamamos de populismos: a política simplificada, o dedo que aponta o mal.
Há um ensaio muito bom de um cientista político americano da metade do século, que se chama “O estilo paranoico na política norte-americana”. Tudo se torna uma conspiração. Se você tem um inimigo real, então ele é o mal, caso contrário, trata-se de uma conspiração, e particularmente perigosa, porque é secreta. A impossibilidade de mostrar argumentos e a argumentação conspiratória se tornou um estilo, a política conspiratória.
Hoje, voltamos a escutar teorias conspiratórias, como a ideia de que o vírus foi criado em um laboratório chinês.
Isso tem um nome, Donald Trump. Ele criou muitas expectativas para a sua reeleição. Neste momento, a economia e o setor sanitário norte-americano estão em um estado crítico e, então, a projeção do mal se torna particularmente importante. Mas, em geral, é uma característica da nova direita. Na Itália, um século depois de Mussolini, temos um renascimento da agressividade mussoliniana, movimentos racistas, etc. Agora, a Itália tem população estrangeira, migração, e temos desemprego, então, o bode expiatório é bastante fácil. Uma política conspiratória ou do bode expiatório.
As redes sociais reproduzem estas teorias...
Não tenho Twitter, nem Facebook, mas alguns colegas estudam estes problemas. As redes sociais são bastante perigosas e ampliam as políticas do bode expiatório.
O curioso é que as pessoas compartilham estas ideias conspiratórias, as ‘fake news’, os boatos...
É a fascinação do mal. Hollywood trouxe a simplificação do relato visual: a transformação do teatro, a tragédia, Shakespeare e os antigos gregos, antecedentes da psicanálise. Hollywood produziu produtos de maravilhosa qualidade, mas a maioria de seus produtos são simplificados e comercializados com o “happy ending”. E a unilateralidade da cultura de massas norte-americana é perigosa.
Minha leitura junguiana da alma coletiva é que temos o bem e o mal em nós. É artificial a representação de um mundo no qual o bem triunfa sobre o mal. Isso nunca ocorreu, tivemos Hitler, Stalin. É uma simplificação comercial hollywoodiana. Então, todos temos um excesso de fascinação frente ao mal.
Temos predisposição ao sentimento paranoico?
A paranoia é simplesmente um excesso de suspeita. Nós somos animais que vivemos em uma civilização extremamente complexa. Não podemos ter confiança em todos, então, a suspeita é necessária. Mas dizemos paranoia quando essa suspeita é extrema e o mal está projetado para fora. O indivíduo verdadeiramente paranoico não tem uma dimensão psicológica, ou seja, tem uma radical falta de introspecção, de autocrítica. Vejo a paranoia como uma característica geral, mas se torna perigosa quando perdemos o controle, queremos destruir o mal e o vemos no exterior.
Neste sentido, qual deveria ser a atitude dos líderes hoje?
Claramente, a automoderação e não se tornar paranoicos.
Ouviu discursos moderados nesta crise?
Ouvi duas boas falas de uma pessoa que fala muito pouco e que está encerrando sua vida política: Angela Merkel. Ela falou muito bem sobre a necessidade de se cuidar, com a informação científica e de maneira muito simples. É bastante moderada. Também pressionou muito por uma ajuda aos países do sul da Europa, contra a opinião pública alemã. Seu discurso é muito antiparanoico, de moderação. Há cinco anos, aceitou um milhão de refugiados, contra todas as regras e a opinião de seu partido. Ela disse: simplesmente, com a história alemã, temos uma obrigação moral de ajudar. Sua popularidade caiu e cairá agora também. Mas foi tão boa líder que se permitiu duas ações antiparanoicas.
Quais conclusões você tira, hoje, da pandemia?
Parece-me muito cedo para tirar conclusões gerais. Realmente, disse a você os lados positivos que observo, de forma pessoal, por outro lado, não tenho muito otimismo quando me perguntam se depois deste sofrimento, que foi particularmente difícil na Itália, em números de mortos, contágios e o dano econômico, aprendemos algo. Eu leio bastante sobre a história. Na Europa, tivemos duas guerras mundiais e não é verdade que o indivíduo médio aprendeu e se tornou melhor, após muito sofrimento. Não. Em alguns casos, as pessoas se tornaram inclusive mais cínicas, após muita destruição e mortes.
Não se tornaram mais solidárias?
Não necessariamente. Na Itália, houve a peste negra em 1300, e depois voltou em sucessivas ondas. Particularmente, a de 1600 está descrita em “Os noivos” (de Alessandro Manzoni), um livro muito interessante psicologicamente. Não, o que fica é a paranoia, a desconfiança. Alguns aprendem com o sofrimento, mas, em geral, a sociedade não. As pessoas não se tornaram melhores.
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“A paranoia se torna perigosa quando perdemos o controle, queremos destruir o mal e o vemos no exterior”. Entrevista com Luigi Zoja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU