29 Fevereiro 2024
"Estamos perante um cisma na Alemanha? Haverá uma fratura na Igreja católica ao norte dos Alpes? Uma segunda Reforma? Esse fantasma circula pelo mundo católico há alguns anos. Até agora, na Alemanha, não conseguimos dissipar esse espectro, especialmente no que diz respeito à percepção no exterior, mas não só. Vamos logo esclarecer: não haverá nenhum cisma e nenhum dos bispos da Alemanha jamais o quis", escreve Heiner Wilmer, ex-superior geral dos dehonianos, bispo de Hildesheim na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 28-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois da carta do Vaticano aos bispos alemães, depois das intervenções mais ou menos polidas e apropriadas dos cardeais Kasper e Schönborn sobre a relação entre a Igreja católica alemã e a Santa Sé, Mons. Heiner Wilmer (bispo de Hildesheim) toma a palavra para favorecer um processo de compreensão mútua e honesta entre Roma e a Alemanha. A Igreja alemã, como povo de Deus e como bispos, quer caminhar junto com Francisco no caminho de uma Igreja católica realmente sinodal. Uma sinodalidade concreta e visível, não apenas afirmada em palavras; uma sinodalidade que possa ser sentida como tal por todos os fiéis; uma sinodalidade que saiba equilibrar com equidade dimensão universal e local. Quando a suspeita der lugar à confiança, se poderá ver que estamos muito mais próximos do que se acredita - e se quer fazer acreditar (a versão alemã deste artigo está publicada no site da edição alemã da revista Communio).
Estamos perante um cisma na Alemanha? Haverá uma fratura na Igreja católica ao norte dos Alpes? Uma segunda Reforma? Esse fantasma circula pelo mundo católico há alguns anos. Até agora, na Alemanha, não conseguimos dissipar esse espectro, especialmente no que diz respeito à percepção no exterior, mas não só.
Vamos logo esclarecer: não haverá nenhum cisma e nenhum dos bispos da Alemanha jamais o quis.
Na semana passada, nós, bispos alemães, reunimo-nos para a Assembleia Plenária da Primavera em Augsburgo. Pouco antes, recebemos uma carta de Roma pedindo-nos que não aprovássemos os estatutos da Comissão Sinodal durante essa reunião.
Os cardeais Pietro Parolin (Secretaria de Estado), Victor M. Fernández (Dicastério para a Doutrina da Fé) e Robert F. Prevost (Dicastério para os Bispos) recordaram-nos o acordo para “aprofundar conjuntamente as questões eclesiológicas abordadas pelo Caminho Sinodal, incluindo o tema de um órgão consultivo e de decisão supradiocesano, no próximo encontro entre os representantes da Cúria romana e da Conferência episcopal alemã".
Foi acertada a decisão de não proceder à votação dos estatutos da Comissão Sinodal. Foi correto levar a sério as preocupações dos três cardeais e, portanto, também as do Santo Padre.
E ainda continua sendo a coisa certa a fazer refletirmos juntos sobre como anunciar o Evangelho na nossa Igreja, sobre como estar com as pessoas em nome de Jesus Cristo, sobre como acompanhá-las na vida - especialmente aquelas marginalizadas e que por isso mesmo estão no centro do Evangelho. Nós entendemos.
Como podemos seguir em frente? Como podemos levar a sério as preocupações do Santo Padre sobre a unidade da fé, como perguntou recentemente o Cardeal Christoph Schönborn?
Como interpretar o ministério do Papa não em termos de poder, no modelo de “Roma contra a Alemanha”? Mas também como não alimentar a discussão de uma desafeição romana do tipo “Alemanha contra Roma”?
E, naturalmente, como é possível para nós, bispos, em nome de Jesus Cristo, permanecer ao lado dos fiéis, compreender os seus sofrimentos e preocupações, não só os da sua vida quotidiana e da sociedade, mas também em relação à nossa Igreja?
Gostaria de buscar uma resposta a essas questões abordando dez temas. Considero-os uma contribuição para a discussão sem qualquer pretensão de completude. Podem ser uma ajuda para uma compreensão compartilhada, para entender-se reciprocamente.
O pano de fundo das minhas reflexões não é a questão de como fazer valer certas opiniões políticas, mas de como fazer crescer entre as pessoas a fé, o amor e a esperança, “para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
“O caminho da sinodalidade é o que Deus espera da Igreja do terceiro milênio”. O Papa Francisco já proferiu essa frase em outubro de 2015, no seu discurso por ocasião do 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos. Também se encontra no texto da Comissão Teológica Internacional A sinodalidade na vida e na missão da Igreja de 2018.
Os fiéis também atribuem grande importância a uma Igreja sinodal. Mas o que significa sinodal? A resposta a essa pergunta será o resultado do próprio processo sinodal.
O que é claro, contudo, é que a ação sinodal significa escuta: escuta do Espírito Santo, escuta mútua, escuta de como o Espírito de Deus se manifesta na história, no povo crente, no presente.
O Papa Francisco recorda repetidamente o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a infalibilidade do povo de Deus em questões de fé (cf. LG 12).
No entanto, esse “sensus fidei” não pode ser acertado por meio de investigações sociológicas religiosas baseadas nos big data. O sentido de fé do povo de Deus está encastoado na grande rede espiritual que é tecida pela meditação da Sagrada Escritura, pela tradição, pelo magistério, pela competência dos teólogos e das teólogas, e pelos sinais dos tempos.
Juntos com o Santo Padre, é tarefa dos bispos ser autores dessa dinâmica. Isso faz parte da sua responsabilidade, que não podem delegar a grupos de trabalho ou conselhos específicos.
A Igreja não é simplesmente o resultado das nossas ideias, mas é uma comunidade dada por Deus, uma comunidade construída pelo Espírito. Como comunidade, vive do estar juntos uns com os outros, de um estilo de reciprocidade e de fraternidade.
Dessa forma, a presença de Deus pode ser experimentada e vivida também entre nós. É um dom para nós e para o mundo. É, como diz o Concílio, um ícone da Trindade (cf. LG 4), sinal e instrumento do amor de Deus pelos homens e da unidade e copertença de toda a humanidade (cf. LG 1).
Quando falamos do mistério da sacramentalidade da Igreja, encontramo-nos hoje numa situação que também representa um desafio: a diversidade de posições leva à polarização, ao endurecimento das frentes, à exclusão mútua - e, em última análise, a um contratestemunho da unidade que é a Igreja.
Precisamos de uma espiritualidade que saiba viver a discordância e a comunidade sem dissolver o que nos liga uns aos outros. Essa é a nossa vocação e o nosso ser.
Tendo em vista a nossa missão de proclamar as boas novas de Jesus Cristo, estamos profundamente gratos, no espírito do Vaticano II, pelos conhecimentos adquiridos pelas ciências – como as da filosofia e da psicologia, e aquelas que são aportadas pelas diferentes culturas.
Somos gratos pela história do desenvolvimento da nossa sociedade. Isso inclui também os nossos conhecimentos sobre o ser humano, o que nos ajuda hoje a reconsiderar as ideias tradicionais sobre a natureza do ser humano e o seu ser enigmático.
Porque é assim que se aprende, como diz o Concílio. “É dever de todo o Povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo conveniente" (GS 44).
Não podemos compreender a mensagem do evangelho sem esse processo de aprendizagem. Trata-se então de saber como anunciar o Evangelho de tal maneira que possa ser um fermento também na nossa sociedade de hoje (cf. GS 44).
Trata-se de não permanecer fechados na sacristia e nos nossos ambientes internos, mas de sair pelas ruas do mundo.
Não podemos ser uma Igreja autorreferencial, como adverte repetidamente o Papa Francisco. Não devemos ser guiados pelo medo do espírito do tempo, mas pela confiança de poder descobrir o Espírito no tempo.
Como Igreja somos povo de Deus, somos peregrinos, não somos uma sociedade perfeita. O Papa Francisco também afirma isso em sua carta Ao povo peregrino de Deus na Alemanha de 29 de junho de 2019 – quando ressalta que a Igreja nunca será perfeita neste mundo, mas que “a sua vitalidade e a sua beleza se fundam naquele tesouro que lhe foi confiado salvaguardar desde o início” (n. 3).
Guardamos esse tesouro em vasos frágeis. Com esse tesouro, como os discípulos, estamos no caminho de Jerusalém a Emaús, às margens, juntos, lado a lado, em diálogo com o Senhor - especialmente quando o reconhecemos nos momentos chave de fragilidade.
Somos pecadores. A conversão não é apenas um preceito da Quaresma. Mas a Quaresma recorda-nos que devemos seguir por esse caminho.
A conversão na Igreja é essencial para garantir que a terrível história da violência sexual nunca mais se repita. Não podemos celebrar a Eucaristia na casa de Deus e perder de vista as vítimas do caminho que percorremos.
A história das vítimas não deve ser espiritualizada, mas deve perfurar os nossos corações. As pessoas atingidas pela violência, cujas bocas foram fechadas, devem ser ouvidas. São necessárias medidas, controles e responsabilizações adequadas para pôr fim à violência demoníaca contra os outros.
É necessária a reconciliação entre nós, bispos. É necessária a reconciliação entre aqueles que vivem e agem na Igreja, entre posições extremas. É necessária a reconciliação na e com a Igreja universal.
Na Alemanha, são necessários sinais claros para demonstrar que ninguém quer um cisma, ninguém quer uma ruptura com Roma.
Precisamos de sinais que demonstrem que apreciamos as diferentes culturas e as diferentes formas de fé na nossa Igreja. Essa reconciliação está ao serviço daquela unidade à qual o próprio Jesus nos chamou quando disse aos discípulos no seu discurso de despedida: “Que todos sejam um” (Jo 17,21).
É algo bom e necessário que os bispos Georg Bätzing, Michael Gerber, Stephan Ackermann, Peter Kohlgraf, Bertram Meier e Franz-Josef Overbeck continuem os diálogos iniciados com os representantes da Cúria em Roma.
Além disso, é também necessário um diálogo aprofundado com os países vizinhos para nos questionarmos sobre como podemos testemunhar e anunciar o Evangelho juntos no mesmo espaço geopolítico.
Mas o diálogo por si só não é suficiente. Os encontros por si só não bastam. Precisamos de uma confiança subjacente. Precisamos do calor dos corações. É preciso confiança, isto é, a aceitação básica do fato de que o outro tem boas intenções.
Para essa hermenêutica da confiança seria oportuno recordar não só os textos do Vaticano II, mas também a "atmosfera" - aliás, melhor ainda, o seu estilo: por isso, durante o Concílio, foram montados dois cafés na Basílica de São Pedro, um chamado “Abba”, o outro “Jonas”. Lá se podia tomar um cappuccino em companhia entre uma sessão e outra, e certamente havia também alguns bons biscoitos.
Imaginem que afinidades se descobriam então ao saborear juntos as iguarias italianas...
Muitos católicos ficaram surpresos e se regozijaram com a amplitude e profundidade dos temas abordados pelo Sínodo Mundial. Quase todos os temas do Caminho Sinodal da Igreja alemã também se encontram na mesa do processo sinodal que envolve toda a Igreja católica.
Certamente precisamos de entendimentos compartilhados, mas talvez nesse Sínodo aprendamos todos novamente o que efetivamente significa unidade. Já dizia Santo Agostinho: “unidade no essencial, liberdade na dúvida, amor em tudo”.
Se todos somos Igreja, Igreja universal, podemos aprender de novo nesse Sínodo quais são os elementos essenciais e onde são necessárias formas particulares para uma específica Igreja local.
É agora importante refletir com aqueles que estão ativos na nossa Igreja local (os bispos, o Comité Central dos católicos alemães, as mulheres e os homens batizados que exercem ministérios de responsabilidade na comunidade) sobre como proceder concretamente nos próximos meses.
Tratar-se-á também de continuar a praticar a sinodalidade, de estar ao lado dos fiéis com uma base de confiança, de apreciar e integrar os seus carismas e de escutar com o coração aberto como Deus quer guiar-nos na nossa peregrinação através da história.
Vamos percorrer esse caminho juntos com o Santo Padre e a Igreja universal – neste mundo, no qual todos fomos postos por Deus.
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Juntos com Francisco, por uma Igreja sinodal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU