04 Fevereiro 2024
Para ser franco, às vezes as conversas que nós, jornalistas, temos sobre as últimas notícias podem ser quase autoparódias. Muitas vezes, por exemplo, isso ocorre porque estamos mais focados em como apresentar algo do que no significado do que realmente ocorreu.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 28-01-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Exemplos? Uma figura pública (normalmente, mas não exclusivamente, um político… poderia ser também uma celebridade, um astro do esporte, quem quer que seja) diz algo que é considerado crítico sobre outra pessoa. Nós nos perguntaremos: deveríamos considerar isso uma “explosão” de raiva? Uma “repreensão”? Uma “ironia”? Ou então uma figura pública ignora a presença de outra em algum evento. Vamos nos reunir e debater: isso foi “desprezo”? Uma “afronta”? Uma “desfeita”? Ou, se quisermos ser coloquiais, talvez possamos chamar isso de “pirraça”?
A apresentação, como se costuma dizer, é metade da batalha em qualquer campanha, seja de namoro ou de vendas, e no jornalismo é muitas vezes três quartos do total.
Assim chegamos às últimas observações do Papa Francisco sobre o hipercontroverso documento do Vaticano Fiducia supplicans [proferidas no discurso aos participantes da assembleia plenária do Dicastério para a Doutrina da Fé], e ao debate ativo que desencadearam na comunidade jornalística sobre como as palavras do pontífice deveriam ser mais bem descritas.
Aqui estão apenas algumas das possibilidades para caracterizar o que o papa disse na sexta-feira, 26, que surgiram nas últimas 48 horas:
- “Recuou”
- “Esclareceu”
- “Refreou”
- “Minimizou”
- “Repudiou”
- “Confirmou”
- “Distanciou-se”
- “Corrigiu”
- “Retrocedeu”
- “Reiterou”
Provavelmente nem é preciso dizer que essa é apenas uma lista parcial de formulações verbais. Na realidade, neste momento existem tantos bordões quanto repórteres, comentaristas e especialistas que os usam (Wags poderia dizer que tal perplexidade é deliberada sob um papa peronista, para o qual manter as pessoas na dúvida nem sempre é algo ruim, e a clareza nem sempre é uma consumação a ser devotamente desejada).
Primeiro, sejamos claros sobre o que o papa realmente disse, que apareceu no parágrafo final de um breve discurso aos participantes de uma assembleia plenária do Dicastério para a Doutrina da Fé, o departamento vaticano que emitiu a declaração Fiducia supplicans.
“A intenção das ‘bênçãos pastorais e espontâneas’ é mostrar concretamente a proximidade do Senhor e da Igreja a todos aqueles que, encontrando-se em situações diversas, pedem ajuda para levar adiante – às vezes para iniciar – um caminho de fé”, disse ele em italiano.
“Gostaria de sublinhar brevemente duas coisas: a primeira é que essas bênçãos, fora de todo contexto e forma de caráter litúrgico, não exigem uma perfeição moral para serem recebidas; a segunda, que quando um casal se apresenta espontaneamente para pedi-las, não se abençoa a união, mas simplesmente as pessoas que juntas fizeram o pedido. Não a união, mas as pessoas, naturalmente levando em conta o contexto, as sensibilidades, os lugares em que se vive e as modalidades mais adequadas para fazê-lo”, afirmou.
Para começar, a consequência mais imediata das observações do papa é que isso muda a forma abreviada que todos usamos para descrever a Fiducia supplicans. No último mês, nós o chamamos de documento vaticano sobre a bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo; agora, presumivelmente, teremos de apresentá-lo como um documento vaticano sobre a bênção das pessoas envolvidas em uma união entre pessoas do mesmo sexo.
Até que ponto essa nuance muda a equação?
Bem, para os ativistas pró-LGBTQ+ no ambiente católico, que saudaram a Fiducia supplicans como um divisor de águas quando ela foi publicada há um mês, até certo ponto as observações do papa podem moderar seu entusiasmo. Eles podem se sentir menosprezados pelo fato de Francisco aparentemente ter feito de tudo para tentar aplacar os críticos, talvez tirando assim um pouco do ímpeto de esperança de que a Fiducia supplicans fosse um prenúncio de mudanças ainda mais ousadas que estavam por vir.
Para os moderados inclinados a dar o benefício da dúvida ao Papa Francisco, as observações dessa sexta-feira provavelmente se tornarão um ponto de referência para argumentar que a Fiducia supplicans tem a ver com o bom senso pastoral, nada mais do que isso: quando um casal pede uma bênção, você não tem fazer uma verificação de antecedentes primeiro para ter certeza de que eles passam na triagem moral. Você dá a bênção, sabendo que não está endossando as formas pelas quais aquele casal pode não estar à altura da jornada da fé, mas sim o fato de que eles estão em tal jornada.
(Eu observaria, por exemplo, que depois que Elise e eu nos casamos, há quatro anos, fomos à Praça São Pedro para o tradicional encontro papal com os casais recém-casados, no final da Audiência Geral. Fomos admitidos e recebemos a bênção do papa sem ter de passar por nenhum teste de virtude... e, falando apenas por mim e definitivamente não por minha esposa, graças a Deus que foi assim!)
Os críticos conservadores da Fiducia supplicans, no entanto, dificilmente parecem ter ficado tranquilos, por algumas razões.
Primeiro, Francisco ainda se refere aos casais e às pessoas que “juntas” pedem uma bênção, e não aos indivíduos ou às pessoas individuais. Essa linguagem sugere que o que está sendo abençoado é o casal, e a perspectiva crítica seria que, não importa o quanto você tente girar em torno disso, abençoar um casal do mesmo sexo implica algum tipo de aprovação ou pelo menos tolerância de sua relação – certamente no tribunal da opinião pública, senão em termos estritamente teológicos.
Vejamos como o influente blog católico italiano Korazym expôs a questão.
“Quando duas pessoas que vivem juntas como casal se apresentam juntas e são abençoadas juntas de mãos dadas, simplesmente não é possível sustentar que os dois indivíduos como um casal são abençoados, mas não sua união, [ou seja] os pecadores, mas não o pecado. Dizer o contrário é uma zombaria e, de fato, um jogo de fachada”, escreveu o autor da postagem no blog.
Em segundo lugar, o que irrita os críticos é o fato de Francisco não ter feito nenhuma menção às dispensas da Fiducia supplicans que ele próprio autorizou, mais notavelmente a decisão dos bispos africanos de não darem bênçãos a casais do mesmo sexo em seu continente. Em uma entrevista recente, o cardeal Fridolin Ambongo, da República Democrática do Congo, explicou que a declaração deles foi elaborada em colaboração com Fernández, consultando o pontífice ao longo do caminho.
“Preparamos o documento em diálogo e em acordo com o Papa Francisco, de modo que a cada momento lhe telefonávamos para lhe fazer perguntas, para ver se ele concordava com aquela formulação etc.”, disse Ambongo a um blog católico francês.
Resumindo: embora as pessoas que já apoiam Francisco possam achar tranquilizadora sua declaração da sexta-feira, os ativistas de ambos os lados do debate sobre a Fiducia supplicans, com toda a probabilidade, sairão ainda mais agitados.
Tudo isso nos leva à minha candidata pessoal sobre a melhor forma de caracterizar o efeito das observações do papa. Eu diria que a fórmula certa é que Francisco “amplificou” a batalha em torno a Fiducia supplicans … talvez dando a todos os lados novas munições, mas não realmente uma razão para deporem as armas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa Francisco “amplifica” debate sobre documento Fiducia supplicans - Instituto Humanitas Unisinos - IHU