08 Dezembro 2023
"Cada um dos autores desse comentário queer sobre toda a Bíblia, desde No princípio do Gênesis até o Marana thà do Apocalipse, lê o livro bíblico que lhe foi confiado; sejam os cinco livros da Torá, ou Jó, Salmos e o Cântico dos Cânticos, passando pelos Evangelhos e pelas cartas paulinas", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, membro da comunidade Casa Madia, em artigo publicado por La Stampa, 02-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bibbia Queer (editada por Mona West e Robert E. Shore-Goss, edição italiana de Gianluca Montaldi, EDB). Mona West tem PhD em Bíblia Hebraica e tem no currículo muitas publicações no campo da hermenêutica bíblica queer. Atuou como pastora nas Metropolitan Community Churches por 28 anos. Robert E. Shore-Goss, Doutor em Teologia Comparada por Harvard, é um reverendo aposentado da Igreja Unida de Cristo (UCC) e está envolvido em justiça ambiental. Participa do Conselho confessional pela justiça ambiental da UCC e da Conferência da Florida. A edição italiana é organizada por Gianluca Montaldi, professor de teologia e diretor editorial do Il Portico, contém uma nota introdutória de Selene Zorzi e outra de Martin Lintner.
"Bibbia Queer: un commentario", editada por Mona West e Robert E. Shore-Goss (Foto: Divulgação)
Se na história da literatura mundial existe um texto queer por excelência, esse texto é a Bíblia!
Sim, justamente a Bíblia, universalmente considerada o livro sagrado por excelência, o “grande código” da cultura ocidental, de acordo com a famosa definição de Northrop Frye, é em si mesma queer, pois é o não ordinário, o insólito, o não conforme com uma norma imposta. De resto, o adjetivo e substantivo inglês queer é geralmente traduzido como bizarro, estranho, curioso, excêntrico, extravagante, original, irônico, mas também suspeito, duvidoso, pouco claro. Devido a isso, a tarefa do queer é estragar, romper os equilíbrios, minar as certezas, sair do que é convencional, pré-estabelecido, recusando-se a aceitar respostas fáceis e convencionais. A Bíblia é uma coleção de livros que contém uma infinidade de episódios curiosos, estranhos, bizarros e às vezes até inacreditáveis, absurdos. Encontram-se histórias das mais diversas pessoas: personagens de grande fé, justos e amigos de Deus, mas também contadores de histórias, aventureiros, impostores, assassinos, fratricidas e criminosos. A Bíblia conta uma história de histórias queer porque, ao contrário de outros textos sagrados, os livros da Bíblia narram situações e apresentam figuras que ultrapassam as fronteiras traçadas por culturas, instituições, saberes, conhecimentos, linguagens, gêneros e ambientes sociais. Graças às Edizioni Dehoniane de Bolonha, apenas um ano depois do original em inglês, também está agora disponível na Itália Bibbia Queer, Un commentario de Mona West e Robert E. Shore-Goss. É um texto ao mesmo tempo rigoroso e revolucionário, capaz de dar um rosto novo e imprevisível à mensagem bíblica.
Cada livro da Bíblia é comentado por estudiosos e pastores que buscam suas fontes nas teorias feministas, queer, desconstrucionistas e utópicas, nas ciências sociais e nos discursos histórico-críticos para oferecer uma leitura até então completamente inédita e ignorada das Sagradas Escrituras. A atenção está focada tanto na maneira como a leitura, a partir de perspectivas contextuais, influi sobre a leitura e a interpretação dos textos bíblicos, quanto na maneira pela qual os textos bíblicos influenciaram e influenciam as comunidades LGBTQ+. Com essa publicação o novo grupo editorial Il Portico (que reúne as marcas históricas Dehoniane e Marietti 1820) oferece uma contribuição significativa no debate sobre um dos temas mais discutidos e polêmicos da atualidade. Com pertinência, o organizador da edição italiana Gianluca Montaldi – doutor em teologia e também diretor editorial EDB e Marietti 1820 – destaca que apresentar esse texto ao público italiano significa lançar uma primeira obra. Se na Itália pode-se considerar que a discussão entre a reflexão teológica e as temáticas de gênero e, em particular queer, existe, ainda assim é necessário reconhecer que essa discussão ainda está ligada a realidades marginais, se não mesmo desviantes, “que queer poderia dizer respeito, em vez disso, a uma opção de toda a sociedade continua a ser ideia de poucos, à qual Michela Murgia – a quem essa edição italiana é dedicada – propiciou muitas contribuições”.
O que é colocado no centro é a questão da diferença que revela a inadequação radical daquele espírito geométrico que sempre e apenas distingue a realidade em duas grandes espaços, típico do pensamento binário: o meu e o teu, o masculino e o feminino, o normal e o anormal e assim por diante. Se aplicar isso em todas as situações, o que se perde é a riqueza multifacetada do humano, as mil gradações, tonalidades e nuances que tornam fascinante a humanidade. A Bíblia moldou a cultura ocidental por séculos, forjou referências, constituiu o seu imaginário, imprimiu conceitos, por isso Bibbia Queer: un commentario é decisivo para oferecer oportunidades de releitura, meditação e verificação. “Retomar a leitura de alguns episódios bíblicos que fundaram a nossa relação cultural e social com a alteridade em si - observa Montaldi – não tem como não ser um útil exercício ascético de limpeza da mente" (e das relações entre nós). Na apresentação da edição italiana Selene Zorzi e Martin M. Lintner, antecipando a imediata e certa objeção, esclarecem o significado cultural desse comentário. O que autoriza uma leitura queer da Bíblia? É uma operação cultural, exegética e teológica correta? Sim, certamente, porque é extremamente evidente - para a exegese contemporânea é um dado já irrefutável - que os autores dos textos bíblicos são pessoas históricas cuja visão antropológica e do mundo é moldada e condicionada pelos conhecimentos de sua época, ou seja, de milhares de anos atrás.
Para Zorzi e Lintner tudo leva a pensar que os redatores bíblicos supunham que existiam apenas dois sexos, masculino e feminino, “os antigos ainda não conheciam o complexo desenvolvimento da identidade sexual e de gênero de uma pessoa e a possível existência de diversas identidades sexuais e de gênero”.
Se por um lado temos hoje consciência de que a concepção patriarcal permeou a cultura e a mentalidade em que a Bíblia foi se formando, estamos igualmente conscientes que a mensagem bíblica é uma mensagem libertadora para toda estrutura autoritária e tirânica. A revelação bíblica contém uma mensagem de libertação e uma mensagem de justiça para todas as pessoas marginalizadas, excluídas e oprimidas. O Deus que “derrubou os poderosos dos seus tronos” é o Deus que está do lado dos oprimidos, excluídos e perseguidos: do lado dos escravos até às identidades sociais (e sexuais) consideradas “desviantes” do modelo culturalmente imposto e socialmente reconhecido, ou seja, queer. Portanto, a hermenêutica queer da Bíblia não é uma interpretação imposta a ela de fora, mas uma possibilidade de leitura interna da própria Sagrada Escritura. Quais são os pressupostos teológicos para essa hermenêutica? A resposta de Zorzi e Lintner é clara: o pressuposto teológico fundamental é que o Deus bíblico é um Deus queer: excessivo em seu amor pela humanidade e, portanto, saindo de si. A própria linguagem usada para revelar o mistério de Deus tem dificuldade para entrar na distinção de gênero: na Bíblia Deus é chamado tanto no masculino quanto no feminino, lhe são atribuídas características comportamentais que possuem propriedades masculinas ou femininas. Em última análise, de acordo com a Bíblia, Deus não tem sexo.
“Um Jesus queer, testemunha de um Deus queer”, afirmam Zorzi e Lintner, já que o próprio Jesus, que para os cristãos é a revelação total e definitiva de Deus, na sua vida transcende os modelos tradicionais, os esquemas habituais: “Dirige-se a pecadores, mulheres, crianças, escravos, doentes, abjetos e todos aqueles que estavam à margem, excluídos da normalidade e da cidadania do poder, da palavra e da ação. Zomba da família de sangue, se cerca de uma família de eleição em que a atenção não se concentra na relação de sangue, mas na relação de amor e de cuidado. Ele não se preocupa com a sua reputação pública, frequentando de bom grado cobradores de impostos e pecadores”.
Em suma, a exegese queer quebra esquemas familiares um tanto desgastados e apresenta novas formas de refletir sobre o divino, aliás “uma leitura queer poderá libertar o próprio Deus dos vínculos estreitos em que uma cultura patriarcal, androcêntrica, machista, binária e colonialista o relegou no exato momento em que os textos bíblicos eram reunidos."
Cada um dos autores desse comentário queer sobre toda a Bíblia, desde No princípio do Gênesis até o Marana thà do Apocalipse, lê o livro bíblico que lhe foi confiado; sejam os cinco livros da Torá, ou Jó, Salmos e o Cântico dos Cânticos, passando pelos Evangelhos e pelas cartas paulinas.
Utilizando a leitura queer como método exegético traz à tona o que já está presente nos textos sagrados, mas para o qual a cultura bimilenária nos tornou cegos, incapazes de ver por estarmos acostumados a um único tipo de interpretação. Descobrir-se-á um Deus que não entra, e nunca entrou, nos estreitos esquemas humanos.
Deixo para os leitores se surpreenderem, assombrar-se, maravilhar-se e talvez até desconcertar-se e escandalizar-se diante de comentários sobre as páginas bíblicas fundamentais, como a criação do homem e da mulher, o relato de Sodoma e Gomorra, o amor dos jovens no Cântico dos Cânticos e mais ainda os gestos e relações queer (desestabilizadoras) de Jesus, seu desafio às hierarquias religiosas e ao mundo simbólico judaico, o ensinamento de Paulo sobre a sexualidade e o papel das mulheres na igreja e, finalmente, o comentário ao Apocalipse de João e à hermenêutica quer do fim.
Confesso que ainda não li por inteiro as duas mil páginas do comentário, mas dei uma olhada em busca da interpretação dos episódios mais interessantes e das páginas mais intrigantes para um comentário queer. Realmente a Bíblia se oferece a uma leitura infinita! Tenho oitenta anos e como monge há quase sessenta leio, medito e estudo a Bíblia todos os dias, mas devo confessar que a hermenêutica queer abriu meus olhos para possibilidades interpretativas que até agora ignorava. É possível ler a Bíblia com outros olhos, mas sobretudo com um olhar mais atento à globalidade da humanidade. É inacreditável constatar como também a Sagrada Escritura, se lida de forma diferente, como gosto de dizer, pode convidar e de certa forma obrigar a não conceber o sexo e o gênero como realidades completamente alternativas, mas como fatores que podem e devem integrar-se reciprocamente. É um erro contrapô-los e é necessário colocá-los em circulação entre si. Se a história do Gênesis, por exemplo, narra o arquétipo fundamental da diferença entre homem-mulher, que tem a sua raiz no sexo biológico, da mesma forma hoje é obrigatório reconhecer o papel decisivo da cultura e das estruturas sociais na definição da identidade subjetiva.
O falecido Giannino Piana, que continua sendo um ponto imprescindível no campo da teologia moral também por sua reflexão sobre a questão do gênero, defendia veementemente uma maior atenção de parte da moral católica a todas as dimensões do humano, observando como “a leitura do mundo humano que vem da correta aquisição dos estímulos provenientes da reflexão proposta pelo gênero obriga a uma revisão das orientações tradicionais da ciência moral, prestando maior atenção à complexidade das dinâmicas que regem a construção dos comportamentos e das escolhas subjetivas. A procura de soluções que respeitem todas as dimensões do humano é, portanto, o caminho a seguir para contribuir para o crescimento de uma sociedade livre e solidária".
Uma obra aguardada e hoje mais necessária do que nunca como a Bibbia Queer ensina a evitar falar de forma simplista sobre homossexuais, heterossexuais, bissexuais ou transexuais porque as pessoas não podem ser definidas pelos seus comportamentos ou reduzidas a eles. Ajuda a compreender que a orientação sexual aparece como um enigma: não é uma escolha do indivíduo nem se situa no espaço das patologias; emerge em diferentes situações; até diante dos próprios percursos educativos e do próprio “vir ao mundo”, a orientação pode manifestar-se como heterossexual, homossexual ou com outras variantes para além das escolhas livres. Por quê? Por enquanto não há uma resposta certa: porém, não se deve ter medo do enigma, mas levá-lo a sério porque faz parte da realidade complexa do humano.
Onde há “histórias de amor”, há o amor sempre vulnerável, a necessidade de perdão, de confiança que deve sempre ser renovada, o esforço da fidelidade, nunca plena. O amor, que é o propósito da relação, é maior do que a condição em que estamos acostumados a amar. Essa é a humaníssima mensagem da Bibbia Queer.
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No princípio Deus era queer? Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU