06 Dezembro 2023
Ou prevalece no imaginário popular que a democracia pode e deve orientar a economia, na sociedade autorregulada; ou afundaremos em um retrocesso civilizacional.
O artigo é de Luiz Marques, professor de ciência política na UFRGS, ex-secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra, publicado por A Terra é Redonda, 02-12-2023.
Os problemas sociais e políticos percorrem todas as épocas. As ideias se destacam em períodos de acontecimentos rápidos e confusos, quando encarnam um mobilismo redentor. Nenhuma época alterou tanto os seres humanos, com fanatismo e sangue nos olhos, do que a década de incubação do nazifascismo. Quase um século depois, o cenário se assemelha, revalidando o estoque de conceitos que fundou a modernidade. República x tirania, democracia x autoritarismo, esquerda x direita, cidadão x servo, tolerância x arbítrio são categorias que servem ainda de leme para os países.
As questões de antanho enlaçam as que, no presente, agitam e polarizam as nações com as cores do ódio, do ressentimento e da ignorância. A indagação que fica é se o indispensável enfrentamento da boa política com a necropolítica implica, sempre, uma escolha entre a “liberdade” e a “obediência”?
Para Étienne de La Boétie, no Discurso sobre a servidão voluntária, de 1549, o fato de um homem aceitar de espontânea vontade o jugo de déspotas é expressão torta do desejo de também dominar. O espírito renascentista salienta a condição autônoma das individualidades que, pela primeira vez, assumem as consequências de intervir para emoldurar o futuro como sujeitos ou objetos da história, para o bem e o mal. Em nosso tempo e espaço, com a carga de 350 anos de escravidão, o argumento da subserviência “consciente” e “consentida” soa esquisito. Não capta a dinâmica da dominação nas sociedades coloniais, a cultura da mercantilização das gentes qual coisas e as técnicas de martírio.
Hoje indivíduos adaptam-se a uma realidade que substitui o “ser ou não ser”, em face da autoridade, pelo totalitarismo da mercadoria. Almas e corpos se persignam ao mercado. Experiências pessoais relativizam os paradigmas impessoais da sociedade (preservação do meio ambiente, sinalização das estradas, vacinação). Os pós-modernos fazem da necessidade uma virtude, ao acatar a nova forma do capitalismo. A autonomização caricata confronta o Estado de direito democrático que protege, a privacidade, da vigilância invasiva da Big Tech. Pior: coroa a “infocracia” que, com algoritmos da inteligência artificial, controla o consumo e o voto para converter a autonomia em um “destino”.
A liberdade negativa dá a tônica no ataque da extrema direita à ingerência estatal para regular o fluxo mercadológico, sob a alegação dos “direitos individuais” para legitimar um laissez-faire. Por outro lado, a liberdade positiva inspira-se na filosofia moral kantiana (regras da própria conduta) para prospectar um autogoverno, onde aquiescer traduz o comportamento livre na medida em que cada um participa na elaboração da legislação da coletividade. É o que, em parte, sucede à multidão de adeptos do Plano Plurianual Participativo criado pelo governo Lula, no corrente. Quem respeita as deliberações que ajudou a aprovar, supera a falsa contraposição entre a liberdade e a obediência.
No mapa da rebeldia, a metáfora da “margem” e do “centro” irrompe em uma conferência de Isaac Deutscher, acolhida sob desconfiança pelos estudantes estadunidenses na febril agitação sessentista. “Vocês estão em atividade efervescente às margens da vida social, e os trabalhadores estão passivos no centro dela. É esta a tragédia de nossa sociedade. Se não enfrentarem esse contraste, vocês serão derrotados”. Apesar de promissores, os insurgentes nas ruas não agiam no coração das engrenagens; tangenciavam a dialética da majestosa máquina sistêmica. O alerta prossegue em plena vigência.
A Parada do Orgulho LGBT, de São Paulo, em 28 de junho de 2023, segundo os organizadores do grandioso evento, mobilizou um elenco formidável: quatro milhões de entusiastas anti-homofobia. Nem por isso ruiu a muralha que separa suas causas específicas das demais lutas em curso e, em especial, a dos trabalhadores formais sindicalizados e a dos batalhadores de aplicativos sem vínculo empregatício. Urge desenvolver, com a práxis de camaradas, a síntese superior das contestações ao status quo para pôr abaixo as barreiras existentes, eis aí o desafio posto para todas, todos e todes.
Nada a censurar na audiência contra os preconceitos sexistas. Mas achar que “o movimento é tudo” não eleva, ao nível socialista, a conscientização política dos lutadores. Politizar é romper com os nichos. A democratização setorial incentiva a consecução de muitos bens imateriais, é certo; em contrapartida, reduz a concepção de socialismo dos partidos de esquerda à extensão dos direitos do cidadão. O discurso moderado coloca em ato uma interpretação reformista das mudanças e joga na lixeira a perspectiva de modificações profundas nas estruturas sociais. Parafraseando o título de uma obra de Emir Sader, O poder, cadê o poder?, é de se perguntar – a utopia, cadê a utopia?
A contradição entre o capital e o trabalho, núcleo primordial da luta de classes, trocou de endereço. De acordo com Ellen Wood, em Democracia contra capitalismo: A renovação do materialismo histórico, a ênfase transferiu-se ao “extraeconômico”: afirmação de gênero, igualdade racial, saúde ecológica. Trata-se de um salto da emancipação de classe à emancipação humana. A transição não surgiu de reflexões no Fórum Social Mundial (FSM), no Foro de São Paulo ou no Grupo de Puebla. Aconteceu no vácuo das “grandes narrativas”. Com efeito, não é evidente o vetor antissistêmico dos movimentos identitários. As identidades extraeconômicas aumentam a representação parlamentar (negros, mulheres, gays). Não obstante, as identidades do trabalho diminuem, eleição após eleição.
O que singulariza o teatro capitalista é a separação, agravada na fase neoliberal, entre o circuito da produção econômica e o da política. A economia foi feudalizada por “sábios competentes”. A política confinou-se em salões de brancos héteros, graças ao custo das campanhas eleitorais que consolidam o perfil ultraconservador do Legislativo. A proposta de democracia, que o socialismo oferece às comunidades, baseia-se na reintegração da economia ao rol da política, o que começa com sua subordinação à autodeterminação dos produtores. A interpelação do povo tem de acenar para os ideais da solidariedade. A unificação de uma frente plural, com palavras de ordem sobre a vida, o trabalho e a dignidade, potencializaria as vitórias, e aprofundaria o ânimo transformador.
Desde o decênio de 1980, usa-se o poder do choque para impor sofrimentos. O fantasma da crise visa afugentar a “grande recusa” marcuseana. Compõe o programa das finanças o arrocho salarial, a precarização do labor, a extração da mais-valia, os ajustes fiscais da austeridade e o desemprego de longo prazo – o melhor indicador do colapso estrutural. Para avançar há que designar um porto utópico aos anseios das massas. Ou prevalece no imaginário popular que a democracia pode e deve orientar a economia, na sociedade autorregulada; ou afundaremos em um retrocesso civilizacional.
Eleutério Prado, em Capitalismo no século XXI: Ocaso por meio de eventos catastróficos, conta que o livro mencionado “nasceu para sacudir uma bandeira: atenção, há grande turbulência a frente, a nave capitalismo se desgovernou por si mesma. Agora somos verdadeiramente muitos e estamos na mesma viagem, precisamos nos unir para mudar o rumo da história. Há motivos para pensar que a humanidade entrou em uma nova era de catástrofes (aquecimento global, desastres ecológicos)”. O fenômeno atingia lugares isolados. No exato minuto, ameaça a totalidade do homo demens. Não basta acusar prefeituras, e calar sobre o culpado pelo caos – o capitalismo. Falta a crítica radical do sistema. O “antropogênico” (ações das criaturas adâmicas) é um eufemismo para absolver o réu.
O capitalismo é incapaz de garantir o bem-estar no mundo. Vide as rebeliões na África, o conflito bélico entre OTAN-Ucrânia e Rússia, a disposição colonialista e racista de Israel no Oriente Médio e a desigualdade esgaçada com as leis de terceirização, no Ocidente. O relatório SOFI 2023, da ONU, sobre a urbanização e as evoluções agroalimentares informa que, diariamente, 735 milhões de excluídos passam fome no planeta. A crise climática bateu na irreversibilidade, conquanto o cuidado ambiental tenha virado um produto rentável; tipo os carros elétricos ou as placas de energia solar. A “destruição criativa” já não consegue restaurar o que destrói. A “ceifadora” ronda a nossa casa (Gaia).
O PPA Participativo, ensaio embrionário de autogoverno fora de uma conjuntura revolucionária, tem um caráter pedagógico para o bloco histórico das classes laboriosas. O aproveitamento dos flancos institucionais abertos contribui na organização da sociedade civil. Hora dos movimentos sociais e dos partidos progressistas sacudirem a tentação da “estatolatria”, que consiste em esperar conquistas vindas do alto. As iniciativas coletivas, de baixo para cima, é que sedimentam a unidade política, cultural e moral para ir além dos direitos negados.
O governo federal é um aliado, que fará mais com uma retaguarda forte e mobilizada. Se fosse fácil como ir ao parque, domingo, não se estaria falando de uma revolução. “Esforçai-vos / Por criar uma situação que a todos liberte / E também o amor da liberdade / Faça supérfluo!”, anuncia o profético poema de Bertolt Brecht.
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