01 Agosto 2023
"Parto de uma de suas passagens mais polêmicas sobre seu discurso de autodefesa, sem rodeios, porque as palavras do padre Paolo Dall'Oglio não podem mais ser domesticadas. Quem o conheceu e leu sabe: era sanguíneo, um místico, um espiritual, mas muito concreto; um intelectual, mas também um trabalhador, em sentido literal, um sofisticado e um espírito muito direto. Para interpretá-lo, não se pode olhar para um polo de sua personalidade sem olhar também para o outro", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 29-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 29 de julho de 2013, o padre jesuíta Paolo Dall'Oglio era sequestrado em Raqqa, na Síria. Desde então não houve mais notícias dele. Dez anos após o sequestro realizado pelo Isis – precedido, onze anos atrás, pela expulsão da Síria a mando de Assad – estou cada vez mais convencido de que a visão do padre Paolo Dall'Oglio permanece muito atual, e não apenas pelo que se refere diretamente à Síria.
Posso dizer que é muito atual – e precisa ser estudada – a sua visão do diálogo islâmico-cristão, considerando que o padre Paolo foi certamente um precursor de fato do Documento sobre a fraternidade humana assinado em conjunto por Francisco e o imã da Universidade Islâmica de al-Azhar, Ahmad al Tayyib, em 2019 em Abu Dhabi.
Também não é excessivo considerar que Paolo tenha apreendido um traço vivo do encontro com os pós-crentes, ou seja, com um mundo que pede para ser novamente tomado pelo encanto por uma espiritualidade que não teme as contaminações religiosas, desde que não se chegue aos extremos desconcertantes - escrevia - das estatuetas de Nossa Senhora com os quatro ou dez braços da deusa Kali.
Basta lembrar sua admiração pelos jesuítas que desafiaram a todos na China afirmando que Confúcio certamente não estava no inferno, ou sua capacidade de perceber o quanto o cristianismo e o islamismo deixaram, em termos de estima dos povos, com sua identificação com o colonialismo ocidental.
Até as suas ideias sobre a Igreja – a sua Igreja! – têm, para mim, grande importância neste tempo sinodal. Elas deveriam ser recuperadas.
padre Paolo Dall'Oglio (Foto: Vatican News)
Querendo aqui escolher aquilo que dele me parece mais urgente destacar para o nosso aqui e agora no mundo, só posso recuperar, das minhas lembranças mais vivas, a sua capacidade de conjugar junto autodefesa e não violência, como arquitrave não abstrata de um pensamento sobre o qual apoiar o grande peso moral dos tantos conflitos que ainda fazem escorrer sangue aos borbotões: evidentemente na Ucrânia, mas não só.
Arrisco-me a escrever que o padre Paolo tinha previsto tudo o que aconteceria na Síria, com as consequências para a Itália, Europa e nosso mar Mediterrâneo. Eu posso fazer isso porque ele escreveu e falou muito. É surpreendente reler hoje o que ele disse já em 2012, prevendo protocolos de entendimento e abraços de políticos ocidentais com déspotas norte-africanos, ou seja, o êxodo de migrantes e refugiados ao longo da rota dos Balcãs.
Ele tinha visto à frente, sem dúvida. Mas o aspecto mais profético – a lição maior– reside precisamente no ponto delicado da afirmação do direito de autodefesa dos povos vinculada ao empenho cristão, religioso e profundamente humano da não-violência.
Só mais tarde – depois de ouvi-lo – compreendi, lendo a Evangelii Gaudium de Francisco, que também em Paolo havia aquela tensão polar de que trata a encíclica: a ideia de que os polos não podem ser elididos, mas, se não exprimem contradições, mas sim contraposições, podem e devem permanecer numa relação de opostos, capaz de libertar energia humana positiva, vida, capacidade para resolver o conflito em um nível mais alto.
Vou tentar explicar da melhor maneira possível. Parto de uma de suas passagens mais polêmicas sobre seu discurso de autodefesa, sem rodeios, porque as palavras do padre Paolo Dall'Oglio não podem mais ser domesticadas. Quem o conheceu e leu sabe: era sanguíneo, um místico, um espiritual, mas muito concreto; um intelectual, mas também um trabalhador, em sentido literal, um sofisticado e um espírito muito direto. Para interpretá-lo, não se pode olhar para um polo de sua personalidade sem olhar também para o outro.
Preparo o leitor: coloco um primeiro ponto a que se segue um segundo, que poderá parecer de sinal oposto. No final, espero, tudo ficará mais claro.
Padre Paolo considerava que a luta contra o regime sírio de Assad fosse uma escolha precisa: corajosa, aliás, heroica, de parte do povo sírio; uma oportunidade irrepetível para refazer a bacia geopolítica do Mediterrâneo. Ele tinha visto nascer aquela luta, acertadamente, na não-violência, que só a ferocidade do regime havia transformado, obrigando o povo à autodefesa, necessariamente também armada.
Se os cristãos, por medo e por autopreservação, tivessem decidido abandonar aquela luta de povo, teriam favorecido o projeto reacionário, tanto dos jihadistas como do regime: duas faces da mesma moeda, para Paolo. E ele estava certo.
Também os jihadistas, para ele, tinham que ser "entendidos". Muito fácil defini-los todos e apenas "terroristas": a definição, abusada, os teria simplesmente assistido em seu projeto totalitário. Assim aconteceu.
O empenho cristão com a revolução democrática, portanto, não deveria faltar, porque era vital. Quando o Papa Bento XVI recomendou à comunidade internacional para não vender armas aos sírios em revolta, ele escreveu no Twitter: “concordo, vamos entrega-las de graça”.
Ele já sabia que, se o Exército Livre Sírio não tivesse podido dispor ao menos de armas leves - diante da desumanidade da repressão que o regime estava manifestando sem poupar idosos, mulheres e crianças - a raiva teria aumentado cegamente e se teria transferido para os braços - como desejava o regime de Assad - dos grupos mais extremistas do jihadismo local e internacional; o regime, depois de ter favorecido de todas as formas aquele abraço, teria se aproveitado da deriva para se apresentar ao mundo como o "mal menor".
Estava tudo claro para ele. Não para nós. O Mediterrâneo teria assim se despedaçado, com a sua carga de boat people, aos milhões. Bem, acho que foi exatamente isso que aconteceu, vendo a situação em retrospecto.
Pelo que sei, o padre Paolo estimava Bento XVI com sua escolha de envolver o Vaticano no grupo internacional chamado "Os Amigos da Síria". Mas aquele apelo do papa ele o denunciou como um erro crucial pelo que teria produzido nos ânimos de milhares de jovens sírios. Ele disse isso, justamente.
Deve ser considerado, portanto, um cantor de luta armada? Ele não tinha sido sempre um firme, até teimoso, defensor da não-violência? Claro que sim: Paolo era um não-violento, mas suas posições não viviam no abstrato, mas na realidade.
Lembro-me bem de como ele nos pediu para compreender o que hoje deveria finalmente ser evidente para todos, pelo que aconteceu na Síria, mas também na Líbia ou no Egito, mais do que no Líbano: a Primavera árabe era uma oportunidade sem volta, uma chance irrepetível da qual dependia o futuro: dificilmente uma segunda chance se apresentaria.
Aqui estamos, então, no segundo ponto histórico, aparentemente em contraste com o primeiro. A irrepetibilidade daquela Primavera estava na oportunidade de superar o secular mal-entendido entre árabes e europeus, o mesmo que havia colocado o cristianismo e o islamismo em conflito. O mal-entendido tinha que ser resolvido!
Disse-lhe um dia que os seguidores de Assad eram irredutíveis a nós - cristãos ocidentais - pela certeza depositada no seu "homem forte", o ditador. Ele respondeu que as coisas não eram exatamente assim: a distinção entre os bons e os maus não era tão clara. Nesse sentido, ele me enviou o texto de um intelectual próximo ao regime - não orgânico ao mesmo - que explicava coisas que eu também poderia ter entendido e, em grande parte, compartilhado.
Relato esse detalhe porque ajuda a entender que padre Paolo não é de forma alguma um esquemático e um partidário – um extremista - como alguns ainda o pintam: absolutamente não. Ele estava bem ciente de que mesmo sobre alguns dos partidários de Assad pesavam erros e horrores do passado, motivos de uma rigidez compreensível. Aquele intelectual próximo ao regime, portanto, via o bem da Síria de uma forma diferente da minha, mas ainda um bem livre de opressão e arbitrariedade.
A autodefesa para ele é, portanto, um direito humano fundamental, mas a ser exercido dentro de uma cultura autenticamente não violenta que impede descambar na desumanidade no mesmo plano dos regimes. Para Paolo era preciso defender o direito à autodefesa justamente para evitar que se transformasse em uma ação injustificável contra as outras comunidades, caindo na provocação sectária típica do regime de Assad, na falta de respeito por todo ser humano.
A autodefesa resiste ao exército agressor, mas não se revolta contra as comunidades que o regime proclama querer defender. É preciso consciência, mas também os instrumentos para poder exercer o direito de autodefesa.
Ele falou sobre isso com seus amigos de Libera, como é conhecido, ativos na Itália em áreas com alta infiltração da máfia. Ele escreveu: “Perguntei a padres e leigos que lutam contra as máfias no sul da Itália –verdadeira ditadura sobre as populações – para saber se é possível prescindir da ação militar da polícia para que a não violência se torne o verdadeiro ator da transformação civil.
Eles reconheceram que não é possível: a forma militar é necessária, assim como é necessária a forma não violenta dos atores sociais: o crime organizado tem poucos freios simbólicos nos quais as chantagens emocionais podem agir. [...] Iniciativas positivas de não violência devem sempre nos convidar a buscar uma solução alternativa, mas não nos autorizam a recusar a solidariedade a um povo que leva adiante a sua luta pela liberdade e pela democracia com os meios que tem à disposição.
Certamente há um problema com a evolução do mundo muçulmano. De fato, a sociedade muçulmana tradicional, bastante folclórica e mística, divide-se entre um monopólio da violência exercido por um poder militar central e uma gestão da sociedade em que a misericórdia, a boa vizinhança, a paciência, o restabelecimento da justiça através da negociação familiar são mais a regra do que a exceção.
As decisões do sultão não são discutidas: ele detém o monopólio da violência por meio da tortura. Ao mesmo tempo, porém, a sociedade tenta insuflar outra lógica: é uma dialética nunca resolvida. [...] Na realidade, a sociedade muçulmana colonizada percebeu o valor da mensagem de Ghandi (muitas crianças foram chamadas com esse nome na década de 1930). Foi somente com a crise dos Estados nacionais (crise dos ideais provocada pela corrupção, crise da violência policialesca que se torna arcaica) que abriu caminho a ideia de mudar a sociedade por meio dos movimentos sociais, o surgimento de uma sociedade civil nos países árabes. […]
Em março de 2011, no início da revolução que se seguia passo a passo as Primaveras Árabes, o desejo de uma mudança sem derramamento de sangue era muito claro: nas classes populares e entre as elites, contavam apenas a força das ideias e uma autêntica convicção não violenta. […] O regime, portanto, usou uma dupla estratégia. Por um lado, a afirmação de um princípio segundo o qual haveria mudanças, reformas, construir-se-ia a democracia. De outro, o uso sistemático de repressão, espancamento, tortura, [...] uma colossal obra de desinformação. […] Em nossa cultura [síria, ndr] à violência injusta deve se opor um uso justo da força. […] Os sírios não podem ser criticados por não se deixar matar aos milhares”.
Aqui está, então, a troca direta – sobre a ideia de autodefesa - com dois jovens sírios que iriam lutar contra aqueles que queriam matar seus entes queridos, estuprar suas mulheres, torturar seus filhos. Eles diziam "Abuna (padre) hoje partimos para Homs, para lutar. Viemos pedir a tua bênção e a esmola da tua palavra”. Paolo respondeu a Musa, um dos dois jovens: “Vocês são combater. Mas se um dia deixarem de reconhecer a dignidade humana de seu inimigo, vocês perderão a sua própria e estará acabado para o país”.
Aos jovens combatentes disse ainda: “A reconciliação nacional começa pela forma como você olha para o inimigo na mira da sua arma antes de disparar. Você vê alguém com quem gostaria de compartilhar uma vida em comum? Hoje você tem que lutar contra ele, mas esse não é o seu objetivo final!" O mais jovem dos dois acrescentou: "Sim, é preciso abster-se de praticar atos monstruosos e desumanos, evitar tornar-se bestas".
Padre Paolo no mosteiro de Musa (Foto: African Express)
A razão subjacente para a incompreensão entre Paolo Dall'Oglio e muitos pacifistas italianos - entre os quais ninguém jamais sentiu a necessidade de responder às suas teses ao longo desses dez anos, favorecendo assim a obra de remoção - está no silêncio que se seguiu, em 2012, à sua carta ao enviado da ONU, Kofi Annan, na qual escreveu: “São necessários três mil capacetes azuis e não trezentos para garantir o cumprimento do cessar-fogo e a proteção da população civil da repressão, para permitir uma retomada da vida social e econômica.
É urgente pedir a abolição das sanções não personalizadas que punem as partes mais fracas e inocentes da população. Há também a necessidade de trinta mil ‘acompanhantes’ não violentos da sociedade civil global, para que venham a ajudar aqui o início da vida democrática".
Os interlocutores pacifistas alguma vez compartilharam a distinção entre sanções generalizadas a serem abolidas e sanções personalizadas a serem mantidas? E, acima de tudo, já tentaram organizar os trinta mil acompanhantes não violentos? Tiveram acaso algum impedimento? Seria importante saber disso, bem como saber, eventualmente, de parte de quem.
Mas se ninguém realmente tentou, como penso, isso significa que a lição, em palavras, mas também em carne e sangue, do padre e do homem Paolo Dall'Oglio - posto avançado de paz e de reconciliação - não foi compreendida: talvez porque muito incômoda e difícil.
Agora, depois de dez anos, a nós, ocidentais - que nos chamamos, de alguma forma, cristãos – deveria ensinarmos algo a enorme popularidade do padre Paolo entre tantos muçulmanos sírios: essa é o testemunho de uma atualidade impressionante.
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Paolo Dall'Oglio: autodefesa e não violência. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU