24 Mai 2012
Antecipamos o texto da carta aberta escrita a Kofi Annan, enviado especial das Nações Unidas e da Liga Árabe para a crise síria, escrita por Paolo Dall'Oglio, jesuíta e fundador da Comunidade Monástica de Deir Mar Musa.
O texto foi publicado no sítio da revista dos jesuítas italianos, Popoli, 23-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na carta, que o jesuíta pretende entregar pessoalmente ao ex-secretário-geral da ONU que está em visita à Síria nestes dias, pede a criação de uma força de paz de 3.000 mil soldados, para garantir o respeito ao cessar-fogo e a proteção da população civil, acompanhados por 30 mil voluntários da sociedade civil que apoiem a retomada da vida democrática no país.
"A presença desarmada da ONU hoje na Síria – conclui o Pe. Dall'Oglio – é uma profecia gandhiana que vale muito mais do que a crise pontual que se quer resolver. A prioridade é, então, proteger a liberdade de opinião e de expressão da sociedade civil síria, sem a qual é impossível buscar os outros objetivos essenciais para a pacificação nacional".
Paolo Dall'Oglio, jesuíta de Roma, fundou em 1982 uma comunidade monástica, masculina e feminina, no antigo mosteiro de Deir Mar Musa al-Habashi (São Moisés, o Abissínio), 80 km ao norte de Damasco. Pela sua atividade, em 2006, Dall'Oglio ganhou o Prêmio Euro-Mediterrânico pelo Diálogo entre as Culturas. Depois do início da guerra civil síria, o jesuíta foi ameaçado de expulsão pelo governo, e, em fevereiro, o mosteiro foi alvo de uma misteriosa invasão de homens armados.
A experiência de Deir Mar Musa é contada no recente livro La sete di Ismaele (Ed. Gabrielli, 2011), que reúne os artigos publicados na revista Popoli nos últimos anos.
Eis a carta.
Exmo. Sr. Kofi Annan, Secretário-Geral Emérito da ONU,
Paz e bem. Com esta comunicação pública, gostaria de lhe expressar, acima de tudo, a gratidão por ter aceito esse encargo delicadíssimo para a salvação da Síria e para a paz regional. Aferramo-nos à sua iniciativa como náufragos em um bote! O senhor conseguiu superar o obstáculo da oposição russa a qualquer proposta que implicasse em uma autêntica mudança democrática.
Em perspectiva, a Síria pode e deve constituir um elemento de equilíbrio das problemáticas regionais, e não um câncer corrosivo. Parece-me que uma maioria de sírios pensa em termos de equilíbrio multipolar, e não nos de uma nova Guerra Fria. O povo sírio é tradicionalmente anti-imperialista, mas muito mais é a favor da criação de um polo árabe que representa o seu difundido desejo de emancipação e de autodeterminação. Um sentimento que implica a aspiração à verdadeira democracia e à reconhecida dignidade dos componentes culturais e religiosos dessa sociedade e dos indivíduos humanos que a compõem.
A dinâmica regional é marcada hoje por uma dificuldade real de convivência entre populações xiitas e sunitas e de concorrência entre elas. Isso também provoca graves mal-estares para as outras minorias, principalmente as cristãs. A primavera árabe, inicialmente caracterizada pela exigência, especialmente juvenil, dos direitos e das liberdades, corre o risco do desvio confessional violento, especialmente quando a irresponsabilidade internacional favorece a radicalização do conflito.
Senhor Annan, o senhor sabe melhor do que ninguém que o terrorismo internacional islamita é um dos milhares de arroios da ''ilegalidade-opacidade" (mercado de drogas, armas, órgãos, indivíduos humanos, finanças, matérias-primas...). O pântano interconectado dos diversos "serviços secretos" é contígua à galáxia do submundo também caracterizado ideológica e/ou religiosamente. Chama a atenção que pouquíssimos dias bastaram para altos representantes da ONU aceitarem a tese da matriz "al-qaedista" dos atentados "suicidas" na Síria. Uma vez aceita mundialmente a tese liberticida de que há na região apenas um problema de ordem pública, só resta esperar a retirada dos seus soldados da ONU para deixar à repressão todo o espaço necessário para obter o "mal menor".
O fato de o poder nuclear e confessional israelense ter interesse em uma guerra civil de baixa intensidade e de longa duração é apenas um corolário ao teorema. Acrescente-se que "os árabes" não são culturalmente maduros para a democracia "real", e o jogo está feito! Resta, em alternativa, a opção do esmagamento sobre a base confessional do país, talvez encontrando aos soldados da ONU um papel antimassacre para evitar excessos bósnios indecorosos.
Por causa das experiências nem sempre felizes dos observadores da ONU, o otimismo fica condicionado à emergência de uma concreta vontade de negociação no Conselho de Segurança e dentro do país, e a um grande apoio por parte da sociedade civil internacional à local. Três mil soldados, e não 300, são necessários para garantir o respeito ao cessar-fogo e a proteção da população civil da repressão para permitir uma retomada da vida social e econômica. É urgente pedir a abolição das sanções não personalizadas que punem as partes mais frágeis e inocentes da população.
Além disso, há a necessidade de 30 mil "acompanhadores" não violentos da sociedade civil global que venham para ajudar in loco o início capilar da vida democrática. Trata-se de favorecer uma organização estatal baseada no princípio de subsidiariedade e do consenso, favorecendo eventualmente aquela estrutura federal mais correspondente para as principais particularidades geográficas (a federação é o exato oposto da divisão!). Só dando confiança à autodeterminação dos povos em nível local se poderá restaurar a ordem e combater toda forma de terrorismo, sem cair de volta na repressão generalizada e sectária.
É oportuno e urgente criar comissões locais de reconciliação, protegidas pelos soldados da ONU e em coordenação com as agências especializadas da ONU, também em vista da busca dos detidos, dos sequestrados e desaparecidos das diversas partes em conflito. Também será necessário por o mais rápido possível a questão da reabilitação civil dos jovens envolvidos em organizações terroristas e criminosas.
O senhor repetiu que, para pacificar novamente, é preciso um processo político de negociação. Mas se pode imaginar isso sem uma verdadeira mudança na estrutura do poder, especialmente em uma situação como esta, em que o governo é uma fachada, e o regime no poder também obedece a um grupo obscuro de super-hierarcas? É preciso salvar o Estado, certamente. Ele é de propriedade do povo. Mas primeiro é necessário libertá-lo.
A sua iniciativa, caro Sr. Annan, marca uma etapa revolucionária no caminho do exercício da responsabilidade internacional na resolução dos conflitos locais. A presença desarmado da ONU na Síria, hoje, é uma profecia gandhiana que vale muito mais do que a crise pontual que se quer assim resolver. A prioridade é, então, a de proteger a liberdade de opinião e de expressão da sociedade civil síria, sem a qual é impossível buscar os outros objetivos essenciais para a pacificação nacional.
Com estima e gratidão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Crise síria: jesuíta escreve carta aberta a Kofi Annan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU