29 Março 2023
Estávamos no meio do nosso semestre de Estudos Bíblicos quando uma das minhas colegas fez a pior pergunta que já ouvi sobre as pessoas queer. Estávamos lendo os Evangelhos, as parábolas e os ensinamentos de Jesus, quando ela levantou a mão e perguntou: “As pessoas gays são as prostitutas e os leprosos dos tempos modernos?”.
O comentário é de Ryan McQuade, designer gráfico e ilustrador de Nashville, Tennessee com a característica de que suas ilustrações exploram sua perspectiva única de fé, reinterpretando imagens e símbolos religiosos para uma igreja moderna e inclusiva, publicado em National Catholic Reporter, 25-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não consigo explicar como fiquei mal ao ouvir isso. Eu não fiquei surpreso, porém. Para muitos, a visão do cristianismo sobre as pessoas queer é que estamos em algum lugar entre os indivíduos doentes que precisam de cura, ou seja, os leprosos, e os desviantes sexuais que precisam de correção, ou seja, as prostitutas. Além de serem usadas para pintar um retrato dolorosamente terrível sobre nós, as Escrituras são frequentemente citadas diretamente para condenar as nossas experiências, o nosso amor e as nossas identidades.
[O contexto tem um papel importante no modo como o termo “queer” é empregado aqui. Essa palavra tem um histórico de ser usada como calúnia e pode ofender algumas pessoas. No entanto, à medida que a linguagem evolui, alguns indivíduos e comunidades optam por recuperar termos que antes eram usados para insultá-los. As palavras recuperadas ganham novos significados para as comunidades que se identificam com elas e muitas vezes são imbuídas de um sentimento de orgulho e resiliência. Neste artigo, o termo “queer” é usado como um termo guarda-chuva para qualquer pessoa da comunidade LGBTQIA+ e sua experiência de sexualidade e/ou gênero.]
Nos anos que se seguiram àquela aula, tenho me perguntado como deve ser a relação das pessoas queer com as Escrituras. O Evangelho é uma boa notícia para as pessoas queer? E, se Jesus veio para libertar todos nós, isso também significa uma libertação queer?
Rolf R. Nolasco Jr. enfrenta essa questão em seu novo livro “Hearts Ablaze: Parables for the Queer Soul” [Corações em chamas: parábolas para a alma queer]. Nele, ele reflete sobre dez parábolas a partir de uma perspectiva queer. As parábolas, a forma primária pela qual Jesus apresentou sua visão invertida do mundo, são o veículo perfeito para transmitir a dimensão queer [queerness] das Escrituras.
Como afirma Nolasco, as parábolas são “verdades travestidas”, no sentido de que “nos atraem ou nos provocam em uma história que é familiar, vívida e estranha (como uma performance drag queen) e depois nos deixam perplexos e surpresos”.
“Corações em chamas: parábolas para a alma queer”, em tradução livre (Foto: Divulgação)
O “espetáculo drag” de Nolasco é composto por dez atos (ou parábolas): o Bom Pastor, o Grande Banquete, o Grão de Mostarda, o Tesouro Escondido, o Semeador, Vinho Novo em Odres Velhos, o Filho Perdido, o Bom Samaritano, Os Talentos e Os Construtores Sábios e Tolos. Cada um funciona como uma janela para o coração radical do contador de histórias queer divino. Afinal, escreve Nolasco, “as parábolas de Jesus são muito queers em suas tentativas de evocar tanto ‘alegria e instrução para inúmeras pessoas quanto ofensa para outras’”.
Essa ofensa geralmente surge “naqueles que se recusam a ter sua versão da realidade interrogada e abalada”. Para Nolasco, as parábolas de Jesus são histórias que estão no centro da luta pela libertação queer. “A elite religiosa, então e agora, sempre estremeceu ao pensar em Jesus inaugurando uma visão radical de um mundo (reino, reinado [kingdom] ou queerdom de Deus) que não é governado por um sistema de poder e de privilégio.”
As parábolas se tornam histórias sobre o mundo vindouro, quando a libertação queer se realizará plenamente. O “reinado” dos céus, como Nolasco o chama, não é um paraíso no qual as pessoas queer são meramente bem-vindas, mas sim uma visão de mundo imbuída da dimensão queer.
Isso fica explícito na reflexão de Nolasco sobre uma das parábolas mais famosas de todos os tempos. Por meio dessa releitura da história do filho pródigo, os leitores são encorajados a refletir sobre a dimensão queer exibida no retrato do pai que rompe todas as convenções da cultura e do patriarcado.
Quando o filho perdido deseja a morte de seu pai e exige sua herança, o pai a dá a ele. Quando esse mesmo filho retorna, o pai corre ao encontro dele. Quando seu outro filho grita com ele em sua própria casa, ele o atende com sensibilidade e amor.
Como Nolasco afirma, “o amor rejeitado e o amor perdido são contrabalançados pelo amor do pai, não importa o que ocorra. É algo completamente queer”. A dimensão queer, então, se torna uma lente que é oferecida a todos, um estado de espírito para olhar para fora das convenções do “amor” cis/heteronormativo e, em vez disso, as expressões ilimitadas de um amor que se torna queer.
Há algo sutil que ocorre no coração quando alguém lê essas reflexões. O intercâmbio entre “queer” e “bom” é impactante, e quanto mais você o vê, mais você percebe o quão pouco ouviu as duas palavras usadas na mesma frase. A dimensão queer, muitas vezes mencionada como um obstáculo à verdadeira fé, é um tesouro aqui. E o corpo queer, visto por alguns como desordenado, é um odre novo que carrega o vinho novo do Evangelho libertador de Jesus.
Eu estava conversando com um amigo queer sobre o que costumamos ver em livros como este, sobre leituras queer das Escrituras. “Eles me deixam triste”, confessou o meu amigo. Eu concordei. Há uma espécie de desespero que pode surgir nesses “reexames” das Escrituras. Pode ser reconfortante imaginar que a amizade de Jônatas e Davi pode ter sido algo mais, ou que Paulo confirmou o espectro de gênero quando disse: “Não mais homem e mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus”.
Mas, no fim das contas, você, eu e o pregador fanático da esquina sabemos que, se voltássemos no tempo e perguntássemos a Jônatas, Davi e Paulo se eles tinham um conceito de teoria queer, eles diriam que não.
O que torna “Hearts Ablaze” diferente é que Nolasco não está interessado em provar a validade de nossa perspectiva queer por meio das Escrituras, mas sim em trazer as lentes queer para as Escrituras e ver quais mistérios se desenrolam.
Ele explica: “Eu levei a sério os contextos socioculturais e políticos a partir dos quais os textos emergiram, mas eles não tiveram a última palavra sobre o sentido das parábolas. (...) A diferença que eu espero mostrar é centralizar as particularidades da vida queer no modo como eu as experimentei e encarnei, e usar os textos para enriquecer e expandir essa vida para que ela floresça”.
“Hearts Ablaze” cumpre sua promessa de ser “para a alma queer”. É uma honra e um encorajamento para o leitor ou a leitora queer. É uma leitura refrescante de histórias antigas e um convite à missão libertadora de Jesus. Em uma Igreja que muitas vezes me faz perguntar: “Onde está a dimensão queer nas Escrituras?”, o livro “Hearts Ablaze” responde: em todas as páginas.
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É possível encontrar a libertação queer nas parábolas de Jesus? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU