A parábola do filho pródigo e a história de dois discípulos

Foto: Felipe Balduino | Pexels

27 Março 2022

 

"A leitura do evangelho deste domingo, sobre o filho pródigo, tem algo a nos dizer sobre o discipulado e a vida comunitária no interior da própria Igreja, sobre o quanto individualmente e comunitariamente contribuímos para continuar mantendo a Palavra de Cristo e sua Igreja 'estranhas'".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

"Uma verdade, uma doutrina, uma religião não exigem espaço próprio. Elas não têm corpo. Podem ser ouvidas, estudadas e entendidas. Nada mais do que isso. O Filho de Deus, porém, não precisa somente de ouvidos ou corações, mas de seres humanos verdadeiros que o sigam. Por isso, Jesus chamava os discípulos ao discipulado corporal, e sua comunhão com eles era visível a todos. Essa comunhão se fundamentava e sustentava no próprio Jesus Cristo encarnado; a Palavra que se fez carne tinha chamado, tinha criado a comunhão corporal e visível. Os que eram chamados já não podiam viver na invisibilidade". Essa reflexão do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer diz muito sobre a sua preocupação com o exercício do discipulado individual e com o Corpo de Cristo, ou seja, a Igreja. Ela e sua mensagem, lamentava nos anos da ascensão do nazismo na Alemanha, "se tornaram estranhas" para muitos.

 

A leitura do evangelho deste domingo, sobre o filho pródigo, tem algo a nos dizer sobre o discipulado e a vida comunitária no interior da própria Igreja, sobre o quanto individualmente e comunitariamente contribuímos para continuar mantendo a Palavra de Cristo e sua Igreja "estranhas".

 

 

Ao contrário do que uma leitura apressada poderia nos levar a pensar, a parábola não nos diz algo somente sobre o filho que renegou a casa do Pai, foi viver por si e para si próprio e depois regressou apelando misericórdia. Como explica o jesuíta Adroaldo Palaoro no comentário do evangelho desta semana, publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a parábola não trata da história de um filho, mas de dois: "Ambos perderam o caminho do coração. Um, esqueceu-o; o outro, endureceu-o". O que estava distante, esqueceu-se do Pai, enquanto o que aparentemente estava muito próximo, tinha o coração tão duro que estava tão longe quanto o outro. Ele explica: "A volta do filho 'distante' ressalta, inesperadamente, a distância do filho mais velho, o 'perfeito', que sempre esteve em casa e que servia ao pai de modo irrepreensível. Na realidade, porém, também ele vivia, sem se dar conta, como estranho e... distante".

 

 

Infelizmente, essa ainda continua a ser, por diversas vezes, a realidade em que se encontra o próprio Corpo de Cristo, sua Igreja visível no mundo. Muitos dos que estão a serviço acham que se encontram em uma condição de proximidade privilegiada com o Pai, mas têm um coração tão dessemelhante da misericórdia que não conseguem se alegrar com o próprio Pai que festeja o retorno do filho que estava perdido. Ao invés de se alegrarem e festejarem por mais um irmão que retorna à casa para auxiliar no serviço, guardam no coração não só a indiferença em relação ao que regressou, mas o desejo de receberem um reconhecimento especial, afinal, enquanto o outro se afastava, vivendo para si mesmo, os filhos 'perfeitos' estavam lá, servindo de modo irrepreensível, mas com o coração em si mesmos.

 

Como pontua Paloaro, "o 'filho mais velho' apresenta uma aparência de perfeição que camufla um medo de viver, uma falsa submissão, uma rejeição do outro, uma incapacidade para receber os dons do pai. Ele ignora que, para entrar na festa, é insuficiente não transgredir as leis, mas ter uma outra disposição do coração. Não é criativo, não assume nenhum risco. Percebe-se que ele não é feliz naquilo que vive: o peso da lei o torna uma pessoa amarga, cheia de ressentimentos, de julgamentos, de indiferença...".

 

 

 

 

Apesar da incapacidade de os filhos viverem como o Pai, o relato evangélico, diz Palaoro, "acentua, em primeiro lugar, a compaixão e a ternura sentidas pelo pai. Ele viu o filho no caminho de volta para casa 'quando estava ainda longe'. Na verdade, não tinha deixado de esperá-lo, com o coração e com os olhos, desde o dia inesquecível em que o filho saíra de casa. Este tinha, sim, partido; mas nunca tinha se afastado do afeto, do amor sofrido do pai, que contemplava todos os dias, com sua vista cansada e com os olhos do coração, o caminho percorrido pelo filho, na esperança de vê-lo voltar".

 

Nos próximos dias, faremos memória à morte de Bonhoeffer, que em definitivo não foi o filho pródigo e estava preocupado com a conduta dos seus irmãos porque ela não dizia respeito somente a eles próprios, mas ao próprio Corpo de Cristo, que cada discípulo tem o compromisso de tornar visível. Que possamos também nós, nos alegrarmos com o retorno do filho pródigo e vigiarmos a nós mesmos, para não vivermos como tal, apesar da proximidade com a Igreja.

 

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