10 Março 2023
Apenas alguns meses após sua eleição em 2013, o Papa Francisco anunciou que romperia com 400 anos de tradição e não passaria mais as férias de verão em Castel Gandolfo, uma mansão papal fora de Roma, preferindo permanecer no Vaticano e trabalhar durante os meses de verão.
A reportagem é de Christopher White, publicada em National Catholic Reporter, 08-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em uma entrevista em janeiro de 2023 para a Associated Press [disponível em espanhol aqui], Francisco citou sua decisão de não se mudar para o palácio de verão, dizendo: “Castel Gandolfo era um pouco a corte, o espírito de corte. Em junho, a corte se mudava para lá, assim como de Londres se vai para a Escócia. A corte. É esse tipo de ideia de corte. É a última corte absoluta da Europa”.
Sua visão para o papado, disse ele, é “ir tirando toda aparência de corte e ir lhe dando aquilo que, na realidade, é um serviço pastoral”.
Como arcebispo de Buenos Aires, Argentina, o cardeal Jorge Mario Bergoglio já era conhecido por ter saído do palácio episcopal, por cozinhar por conta própria e por usar o transporte público.
Quando ele apareceu pela primeira vez na sacada da Basílica de São Pedro na noite de sua eleição, vestindo apenas uma simples batina branca e recusando-se a vestir a tradicional mozeta de veludo, os sapatos vermelhos e a cruz peitoral de ouro para o novo papa, o arcebispo Mark Coleridge, de Brisbane, Austrália, lembrou-se de ter ficado intrigado.
Como alguém que havia trabalhado na corte papal, na Secretaria de Estado do Papa João Paulo II, ele achou estranho. Depois, Francisco pediu aos que estavam na praça que rezassem por ele antes de lhes dar a bênção.
“Ficou claro que isso não era normal”, disse Coleridge ao NCR, antes do aniversário de 10 anos de Francisco. “E foi tudo menos um ‘show’. Uma das coisas sobre Francisco é o modo como ele se livrou dos protocolos muito poderosos da corte papal.”
As mudanças na última década, observa Coleridge, são mais do que cosméticas. É um “desmantelamento da monarquia papal”, em que o líder global do catolicismo está deslocando a Igreja daquilo que Coleridge descreve como uma “Igreja hierárquica para uma Igreja sinodal” e “de uma Igreja poderosa para uma Igreja pobre e impotente”.
“A mudança de paradigma que vimos ocorrer nesses 10 anos foi surpreendente”, acrescentou, “e é algo que eu nunca pensei que veria”.
Em 11 de outubro de 2022, Francisco celebrou uma missa pelo 60º aniversário de abertura do Concílio Vaticano II, na qual ele disse que o Concílio de 1962 a 1965 foi um momento de “reacender” a missão externa da Igreja.
De acordo com Anna Rowlands, professora de Pensamento e Prática Social Católica na Durham University, na Inglaterra, os 10 anos do papado de Francisco podem ser vistos não apenas como “um retorno a certos ensinamentos-chave do Vaticano II”, mas também como a “incorporação desse ensino nas práticas da Igreja”.
Como ensinou o Vaticano II, a Igreja não pode ser vista como uma instituição monárquica ou vertical, de acordo com Rowlands. Em vez disso, o Concílio elevou a importância de toda a Igreja.
“E, se realmente vemos a Igreja como povo de Deus, então precisamos discernir o que o Espírito está fazendo no meio do povo de Deus e deixar esse processo falar”, disse ela ao NCR.
O teólogo italiano Andrea Grillo, que leciona no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, concordou.
“Restaurar o lado dinâmico da tradição católica e superar um modelo de visão católica do século XIX é o maior mérito dessa década de pontificado”, disse ele ao NCR, observando que, nos últimos 10 anos, Francisco “desbloqueou” aquilo que estava impedindo a reforma da Igreja em várias áreas-chave, como liturgia, vida familiar e questões de autoridade.
Para Rowlands, um dos principais projetos do papado de Francisco até hoje é pegar os ensinamentos teológicos centrais do Concílio e “transformá-los em processos acessíveis e significativos, para que, ao recuperar os ensinamentos e o processo, eles se tornem as práticas da instituição”.
“E é isso que eu acho que Francisco e muitos outros sentem que nunca ocorreu em termos de recepção do Concílio”, acrescentou ela.
O arcebispo Roberto González, de San Juan, Porto Rico, concordou, dizendo: “Francisco é o papa mais importante na implementação do Concílio Vaticano II”.
Embora González reconheça que João Paulo II começou a iniciação ao Concílio, e os escritos teológicos do Papa Bento XVI elevaram sua importância, Francisco exemplificou a implementação do Concílio com sua linguagem, gestos e processos.
Para muitos observadores, os dois maiores pilares do processo de reforma de Francisco são seu foco na sinodalidade, que ele está usando como um veículo para implementar as reformas do Concílio, e sua nova constituição vaticana, que expandiu dramaticamente o número de cargos de liderança que leigos homens e mulheres podem assumir e reorganizou os dicastérios vaticanos a partir da prioridade central da evangelização.
Intitulada Praedicate Evangelium (“Pregai o Evangelho”), a nova constituição apostólica foi lançada em março de 2022 e entrou em vigor em junho, revisando a burocracia central do Vaticano pela primeira vez em mais de 30 anos.
O cardeal Arthur Roche, prefeito do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos do Vaticano, lembrou-se que ouviu seus coirmãos cardeais que participaram das reuniões de cardeais antes do conclave de 2013 que elegeu Francisco dizerem: “A voz que foi ouvida acima de todas as outras foi a do cardeal Bergoglio, ao dizer que devemos deixar de ser introspectivos e redescobrir que a natureza da Igreja é missionária”.
“Francisco disse que uma Igreja que para de se mover perde sua natureza”, disse Roche em entrevista ao NCR.
A nova constituição não apenas reforma a Cúria Romana, mas também exige uma reforma das cúrias diocesanas em todo o mundo, disse Roche, acrescentando que, no centro de todas as estruturas da Igreja, deve estar a questão: “Como podemos nos tornar mais missionários?”.
Coleridge também apontou para as reformas constitucionais, que, depois de nove anos de preparação, enfatizam a descentralização – afirmando explicitamente que os escritórios da Cúria estão a serviço tanto do papa quanto dos bispos do mundo, e não acima deles – e elevam a importância da corresponsabilidade, inclusive com os leigos.
“Pode não ser uma bala mágica, mas é a melhor tentativa que se pode esperar para mudar essa cultura”, reconheceu Coleridge. “Se ela for posta em prática, é a melhor tentativa que se poderia esperar para mudar não apenas a cultura do Vaticano, mas também a Igreja em todo o mundo.”
No fim do Vaticano II, em 1965, o Papa Paulo VI estabeleceu o Sínodo dos Bispos, no qual os bispos de todo o mundo se reuniam em Roma periodicamente para discutir certos temas importantes na vida da Igreja.
Francisco, no entanto, fez com que ele deixasse de ser um evento para se tornar um processo e uma forma importante de convidar à participação de todos os membros da Igreja.
A sinodalidade, que significa “caminhar juntos”, disse Coleridge, deixou de ser “de alguns bispos, uma parte do tempo, passando a ser de todos os bispos e, de fato, de toda a Igreja, o tempo todo”.
“A sinodalidade talvez seja a coisa mais importante que ele fez”, disse a Ir. Katharina Kluitmann, das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã, da Alemanha.
Kluitmann, que em 2018 se tornou presidente da Conferência Alemã de Superiores Gerais, disse que a sinodalidade responde a duas grandes questões que a Igreja enfrenta hoje: a crise dos abusos sexuais clericais e como a Igreja comunica sua mensagem ao mundo, especialmente quando perdeu sua credibilidade moral.
“O abuso sexual é sempre um abuso de poder”, disse ela ao NCR. “E a comunicação é o melhor meio de combater esse poder, mas muitas vezes não sabemos como fazê-lo bem.”
Com a sinodalidade, disse ela, a Igreja está mudando a forma como se comunica sobre questões cruciais – até agora, Francisco convocou sínodos sobre o casamento e a vida familiar, os jovens, a região amazônica e o ambiente – “mas é mais do que apenas conteúdo. Isso muda o estilo de como a Igreja opera”, pois o atual processo sinodal em curso realiza sessões de escuta com católicos de todo o mundo para discutir uma série de temas antes considerados tabus na vida da Igreja.
A irmã senegalesa Anne-Béatrice Faye, da Congregação de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Castres, ecoou a observação de Kluitmann, observando que a sinodalidade possibilita uma proximidade com o povo e enfatiza a natureza missionária da Igreja.
“A perspectiva do pontificado do Papa Francisco começa a partir de baixo, da atenção para as periferias”, disse Faye ao NCR. “Ele nos convida de fato a recuperar o frescor original do Evangelho, para que o amor de Jesus possa chegar ao mundo inteiro.”
“Felizmente, a Igreja está descobrindo os benefícios de ouvir uns aos outros”, acrescentou ela, “no reconhecimento de nossa condição cristã comum.”
Embora a sociedade esteja cada vez mais polarizada, com diferentes grupos fechados uns aos outros, a sinodalidade convida à escuta, para que a Igreja não “perca o contato com a realidade, com as pessoas”, disse Roche.
Em última análise, disse ele, é um chamado para que a Igreja seja “um instrumento de metanoia, não de paranoia”.
“A metanoia abre, leva para Deus, leva para os outros”, disse o cardeal. "A paranoia é obsessiva e nos fecha, e ficamos trancados dentro de nós mesmos.”
Quando os bispos da América Latina se reuniram em Aparecida, no Brasil, em 2007 – onde o então cardeal Bergoglio atuou como redator principal de seu documento final – eles escreveram que “estamos vivendo uma mudança de época, cujo nível mais profundo é cultural”.
A subjetividade individual reina de modo supremo, lamentavam eles, e a economia de mercado e a tecnologia, em vez da relação de cada pessoa com Deus, passaram a definir as relações humanas.
González, de Porto Rico, que participou de Aparecida, disse que essa realidade está “muito presente na mente e na missão do Papa Francisco”.
A teóloga argentina Emilce Cuda, que atua como cossecretária da Pontifícia Comissão para a América Latina, disse: “Em um mundo preso e sem saída, um líder religioso do fim do mundo conseguiu reunir todo um povo e motivá-lo a sair e a cruzar fronteiras existenciais”.
Francisco, disse Cuda, está levando a Igreja “para além de seus muros”.
E, para a teóloga Rowlands, a chave para entender o que Francisco tem feito nos últimos 10 anos e para onde ele pode estar indo – com os sínodos, com suas viagens ou com o modo como ele navega nas tensões sobre questões candentes da guerra cultural – é que ele está tentando iniciar novos processos com ênfase no encontro.
“Ele acredita que nos tornamos desligados, desengajados, mas simultaneamente uma geração raivosa”, disse ela ao NCR. “E ele acha que o único antídoto para esse vírus é o encontro, e isso deve ser sem mediação, deve ser imediato, face a face, em pequena escala e aumentando para uma escala maior ao longo do tempo.”
Para alguns, isso causou uma enorme reação. O falecido cardeal australiano George Pell definiu o papado de Francisco como uma “catástrofe” e o processo do Sínodo como um “pesadelo tóxico”.
Francisco, no entanto, parece imperturbável, respondendo que “a crítica é um direito humano”.
“Ele não tem medo dos conflitos”, disse Rowlands. “Embora ele saiba que nem todos os conflitos são bons, alguns darão frutos, e a Igreja deve discernir os conflitos de uma forma espiritualmente saudável.”
Isso permitiu que Francisco não fosse consumido pelas guerras culturais católicas que há muito tempo provocaram tantos debates na Igreja, disse ela.
“Ele está menos interessado na questão sobre ‘quem somos nós’” – que ela disse ser uma “questão geracional ansiosa” – e muito mais interessado em perguntar: “Onde está Deus no mundo?”.
Quanto à ansiedade e às críticas, Roche disse que é importante lembrar que Francisco é um “papa reformador”, e que, ao longo da história, “os papas reformadores estão sempre na linha de fogo”.
“Mudar é realmente um desafio”, reconheceu. “A maioria das pessoas gosta de segurança.”
Mas Roche não está disposto a ignorar aqueles que estão resistindo à mudança.
“Se você não está ouvindo Pedro, então algo está muito errado com o seu catolicismo, porque ele é o pastor universal”, disse Roche. “Ele foi escolhido pelo Espírito Santo. Ele tem a confiança da Igreja. Esse é o chamado de todo cardeal. Se isso não está acontecendo, não estamos levando nosso juramento a sério.”
Dez anos depois, Coleridge acredita que o fator crucial para a autenticidade de Francisco e seu sucesso é que “ele não tem medo e é livre”.
“Há muitos na Igreja que estão muito constrangidos pelo medo”, lamentou.
Para onde tudo irá a partir daqui está indeterminado e ficará a cargo do Espírito Santo, disse ele. Mas, por meio do testemunho pessoal do papa e de novos processos, Coleridge acredita que Francisco está traçando um novo rumo para a Igreja Católica.
“Francisco não tem medo do futuro. É aquela sensação de ir além do medo e a sensação de que realmente não temos muitas outras opções”, continuou Coleridge. “Ou nos tornamos o tipo de Igreja que o Espírito está nos chamando a ser, ou nos tornamos essa instituição raivosa, irrelevante e retraída.”
“Cada geração deve possuir e recuperar a tradição apostólica de maneiras novas e criativas”, disse ele. “Não é apenas um pacote que passamos adiante. É um processo em que cada geração deve assumir a tradição, mostrando o brilho do Evangelho e a verdade de Jesus.”
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Mudança de paradigma católico: 10 anos do Papa Francisco desmantelando a corte papal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU