11 Abril 2022
Os anúncios do governo se sucedem para organizar a chegada de pessoas que fogem da Ucrânia. Após anos de recusa política para acolher exilados da África ou do Oriente Médio, as associações denunciam uma discriminação.
A reportagem é de Maïa Courtois e Simon Mauvieux, publicada por Basta!, 07-04-2022. A tradução é do Cepat.
“Ela está vindo...”. Cria-se um burburinho entre os presentes. Marlène Schiappa, ministra delegada encarregada da Cidadania junto ao ministro do Interior, aproxima-se para saudar uma fila de dirigentes de associações. Estamos no dia 23 de março. Todo mundo está ocupado aqui, neste salão do centro de exposições Porte de Versailles, em Paris, para receber refugiados da Ucrânia. “Vocês sempre recebem principalmente mulheres e crianças?”, pergunta a ministra. Desde a abertura do centro, em meados de março, 1.900 ucranianos, principalmente mulheres e crianças (os homens ucranianos com menos de 60 anos estão proibidos de deixar o país), foram alojados aí por uma ou duas noites. Encontraram ali um sistema inédito, que reúne no mesmo lugar serviços da prefeitura, o Escritório Francês de Imigração e Integração, o seguro saúde... Algo jamais visto na França.
Uma dúzia de salinhas em um salão barulhento se alinham. Aí as famílias ucranianas expõem, numa intimidade bastante relativa, a sua situação aos agentes do Estado. Primeiro passo para a entrada: o controle dos documentos de identidade pela prefeitura de Paris. Se tudo estiver em ordem, isto é, se as pessoas conseguirem provar que estão fugindo da Ucrânia, elas recebem imediatamente uma autorização temporária de residência. É por um período de seis meses, renovável por três anos.
“Emitimos cerca de 300 autorizações de residência temporária por dia”, explica um representante da prefeitura. Essas autorizações são a aplicação concreta, na França, da diretriz europeia sobre a proteção temporária criada em 2001 e ativada pela primeira vez em 3 de março de 2022. Elas proporcionam, entre outras coisas, o direito de trabalhar e obter cobertura de saúde imediatamente, aí onde os requerentes de asilo estão desde 2019 sujeitos a uma espera de três meses para ter acesso à Seguridade Social.
Nenhum outro exilado em território francês tem direito ao regime de proteção temporária. Nem mesmo os afegãos que fugiram da captura de Cabul pelo Talibã no verão passado. “A Europa não pode assumir sozinha as consequências da situação atual. Devemos nos antecipar e nos proteger contra os fluxos migratórios irregulares significativos”, declarou a este respeito Emmanuel Macron em agosto de 2021. Seis anos antes, em vista da crise síria, cerca de cinquenta organizações já pediam ao presidente Hollande e à Europa para que trabalhassem a favor da proteção temporária. Tudo em vão.
“Todos os requerentes de asilo devem ter direito a essa proteção. Existem dois pesos e duas medidas. Não tenhamos medo das palavras: isso é racismo. Essa diferença de tratamento é insuportável”, denuncia Yann Manzi, cofundador da associação Utopia 56. Ele vê nisso uma encarnação do duplo discurso “humanidade e firmeza”, martelado pelo governo Macron desde que chegou ao poder. “Para todas as populações do Magrebe, ou da África Subsaariana, usa-se firmeza; enquanto para os ucranianos, usa-se humanidade”.
O exemplo do transporte é revelador. O Estado fez uma parceria inédita com a SNCF para permitir que as famílias ucranianas se desloquem gratuitamente para as regiões onde lhes é oferecido alojamento ou para os países onde desejam ir. No centro Porte de Versailles, “estamos trabalhando com um guichê da SNCF”, explica Nordine Djebarat, diretora regional de Île-de-France da Coallia, uma associação especializada em acomodação e apoio social.
Para as outras nacionalidades, as estações e os trens permanecem o que sempre foram: locais de rastreamento e de controle. Em pleno centro do vale de Roya, um esquadrão da polícia móvel monitora permanentemente a área ao redor da cidade de Sospel e sua estação TER [Transporte Expresso Regional]. “Aqui, o trem só para por alguns minutos, mas isso é suficiente para os soldados checarem todos os vagões, onde não é incomum encontrar indivíduos que entraram irregularmente na França”, escreve, por exemplo, a mídia da polícia nacional Gend.Info. Em um comunicado de imprensa datado de 14 de março, a CGT Ferroviários explica que a direção da SNCF “pede que verifiquem a origem dos refugiados no trem (...) e para ‘agir com gentileza’ se forem ucranianos”. O que suscita “um profundo mal-estar entre alguns dos ferroviários, conscientes da diferença de tratamento entre os refugiados”.
Desde 2015, o acesso à moradia para os exilados é uma das principais batalhas travadas pelas associações. Houve ocupações na Praça da República ou em frente à prefeitura de Paris, requisições de prédios vagos, repetidos pedidos de atendimento sistemático das pessoas na rua após a evacuação dos acampamentos... O número de emergência 115 está sempre ocupado e as estruturas de alojamento estão cheias: as associações habituaram-se a receber estas respostas dos serviços do Estado.
Assim, no dia 23 de março, quando o primeiro-ministro Jean Castex anunciou a abertura de 100.000 lugares de alojamento para pessoas que fogem da guerra na Ucrânia [1], as associações que ajudam os exilados na rua obviamente saudaram o gesto… embora levantando algumas contradições. “Nós distribuímos mais de 800 refeições ontem à noite nas ruas de Paris e as condições de vida dos exilados são muito duras, testemunha Philippe Caro, da associação Solidarité Migrants Wilson. Podemos ver que as autoridades públicas são capazes de se mobilizar para acolher um grande número de refugiados ucranianos, ao passo que há anos nos dizem que o mesmo não é possível para os outros. A gente vê que quando tem vontade política, as coisas acontecem”, diz irritado.
Em Calais, o albergue da juventude, com 130 vagas, foi mobilizado para acomodar os ucranianos. Os exilados de outras nacionalidades continuam sobrevivendo em acampamentos informais (“selvas”), ao ritmo das expulsões a cada dois dias pela polícia. “Eles nos dizem: ‘É terrível o que está acontecendo na Ucrânia’. Mas quando lhes explicamos esta acolhida, eles ficam surpresos: ‘ah sim? E por que eles não estão na selva como nós?’”, relata Marguerite Combes, coordenadora da Utopia 56 no local. “Estamos felizes pelos ucranianos, mas se podemos fazer isso por eles, por que não por todos?”, suspira Alexandra Limousin, responsável pela Auberge des Migrants, uma associação histórica de Calais.
Apesar dessa mobilização inédita do Estado, as deficiências começam a ser evidenciadas. Em uma troca de correspondências, tradutores voluntários alertam a Cruz Vermelha sobre a falta de assistência médica, alimentação e água durante a primeira acolhida, na estação de Est, em Paris. A velocidade da concessão dos direitos também é “muito variável” dependendo da localização, explica Gérard Sadik, responsável pelo asilo de La Cimade. Mesmo no hub Porte de Versailles, “é por ordem de chegada. Às vezes, a partir das 9h, eles dizem às famílias ‘voltem amanhã’”, especifica.
Finalmente, as associações temem que em breve encontrem famílias ucranianas sem solução, como as outras. Atualmente, 26.000 refugiados ucranianos chegaram à França. Alguns estão em trânsito, mas é difícil prever o número de chegadas nas próximas semanas (mais de 4 milhões de pessoas deixaram a Ucrânia, até 30 de março). Num ginásio requisitado em Rennes, “na semana passada, chegaram seis pessoas da Ucrânia, e fomos nós que lhes pagamos o hotel, porque o ginásio estava cheio...”, diz Yann Manzi.
Na última instrução enviada aos prefeitos sobre o regime de alojamento e habitação para refugiados da Ucrânia, à qual Basta! teve acesso, os ministérios insistem em não colocar os públicos em concorrência entre si. “É essencial não degradar ou saturar os mecanismos do direito comum”, diz a instrução. Mas, no terreno, ocorrem formas de priorização. Em Rennes, 144 pessoas, incluindo cerca de quarenta crianças, ocupavam desde meados de janeiro um ginásio requisitado pelas associações que as acompanham há um ano. No dia 30 de março, a polícia evacuou o local. “Resta uma família de dez pessoas sem solução, assim como cerca de vinte homens que estão sozinhos”, indica Ludovine Colas, coordenadora da Utopia 56 em Rennes.
Ao mesmo tempo, “sabemos que existem espaços que foram abertos em Rennes para ucranianos, lugares livres”, sublinha Yann Manzi. Estes últimos podem aceder ao alojamento imediatamente após se apresentarem à prefeitura. Para os outros exilados, “você precisa passar pelo guichê exclusivo da Coallia para depois marcar um horário na prefeitura, depois a prefeitura o manda de volta para a Coallia, que vai encaminhá-lo para o alojamento”, descreve Ludivine Colas. O que prolonga os atrasos por vários meses… “A maioria dos ocupantes do ginásio eram assim recém-chegados, acolhidos nestes famosos prazos de marcação de entrevistas”, explica.
O fim das férias de inverno, no final de março, corre o risco de multiplicar essas situações, de acordo com as associações. “Há muitos territórios onde os desalojamentos estão sendo preparados. Onde houver apoio ou cobertura da mídia, podemos conseguir fazê-los voltar atrás. Mas em territórios menos visíveis, tudo será feito com muita discrição”, teme Yann Manzi, da Utopia 56. Diante da prioridade dada ao alojamento de famílias ucranianas, Agathe Nadimi, da associação Les Midis du MIE, que ajuda menores desacompanhados, teme a reformatação de acampamentos de milhares de pessoas nas periferias de Paris.
A priorização também se faz sentir na mobilização cidadã. Em Porte de Versailles, o Exército da Salvação coordena a distribuição dos alimentos. O centro pode acomodar até 400 pessoas por dia. “Temos capacidade para atender tantas pessoas graças a todas as doações recebidas, em particular de muitas empresas. Finalmente… destinadas para os ucranianos. Porque para os outros públicos, sírios, afegãos, é mais difícil. Às vezes, queremos dizer: existem todos os outros também”, suspira Emmanuel Ollivier, diretor da Fundação do Exército da Salvação. Marlène Schiappa enfatizou durante a sua visita: “Todos os dias, temos pessoas que querem ajudar, fazer doações, deixar um apartamento disponível... Por isso criamos uma plataforma para apadrinhamento”.
Por enquanto, pouca informação foi dada sobre os 100.000 lugares de alojamento anunciados por Jean Castex, exceto que grande parte deles são organizados por empresas privadas ou cidadãos. Isso levanta questões para muitas associações. “Insistimos muito na generosidade das pessoas, mas vamos estar extremamente atentos ao alojamento cidadão, que deve incluir o apoio social no longo prazo”, afirma Bruno Morel, diretor-geral da Emmaüs Solidarité. Gérard Sadik, de La Cimade, também lembra o óbvio: “O Estado tem o dever de fornecer abrigo, com obrigação de meios reforçados: ou seja, uma obrigação de ir ao alojamento de todas as pessoas. Não pode fiar-se na iniciativa privada…”.
Todos os atores associativos saúdam a reação rápida e massiva do Estado para acolher os ucranianos deslocados. Eles gostariam agora que esta crise fosse o choque elétrico que permitisse estabelecer um acolhimento digno e duradouro para todos os exilados. “Nunca vimos condições de recepção tão favoráveis. Isso deve ser visto como uma oportunidade de generalizá-los para quem fugiu da guerra ou de uma situação humanitária insuportável”, defende Bruno Morel, da Emmaüs Solidarité.
[1] 100.000 é o número de refugiados da Ucrânia que só a cidade de Berlim planeja acolher, enquanto toda a Alemanha já registrou mais de 300.000 pessoas vindas da Ucrânia. A Irlanda, que tem treze vezes menos habitantes que a França, também se comprometeu a acolher 100.000 pessoas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Existe uma “diferença insuportável de tratamento” entre refugiados da Ucrânia e de outros lugares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU