28 Fevereiro 2022
A condenação da invasão da Ucrânia pela Igreja Ortodoxa pró-Rússia do país, o papel do "misticismo" de Putin e a atenção do Papa Francisco à invasão e às suas consequências: estas são as notas mais recentes do evento bélico do ponto de vista do comportamento das Igrejas.
A condenação das Igrejas Ocidentais e Orientais, com exceção das Igrejas Ortodoxas russa e sérvia, já é conhecida.
O comentário é de Lorenzo Prezzi, publicado por Settimana News, 27-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Lembro-me apenas aquela do anglicano Justin Welby, arcebispo de Canterbury, que o definiu como um "ato maléfico"; de Bartolomeu de Constantinopla ("um ato de flagrante violação de qualquer noção de legitimidade internacional"); e do patriarca da Romênia, Daniel ("uma guerra lançada pela Rússia contra um Estado soberano e independente").
A verdadeira novidade é a oposição explícita à invasão russa pela Igreja Ortodoxa pró-russa da Ucrânia. O bispo Onufrio revogou o prudente juízo expresso nos dias anteriores (já que a Ortodoxia russa se limitava a defender a causa dos civis e abrir as igrejas como abrigos antiaéreos) na noite entre 23 e 24 de fevereiro.
“Como primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana (pró-russa) dirijo-me aos indivíduos e a todos os cidadãos ucranianos. Para além dos problemas anteriores, a Rússia, infelizmente, lançou operações militares contra a Ucrânia. Neste momento trágico, exorto: não se deixem tomar pelo pânico, sejam corajosos e demonstrem amor pelo seu país e pelos outros. Em primeiro lugar, exorto-vos a intensificar a vossa oração penitencial pelo nosso país, pelo nosso exército e pelo nosso povo. Peço-vos que esqueçais os conflitos recíprocos e as incompreensões para nos unirmos no amor de Deus e da nossa pátria. (…) Defendendo até ao fim a soberania e a integridade da Ucrânia, apelamos ao Presidente da Rússia para que cesse imediatamente esta guerra fratricida”.
Houve também uma sua tomada de distância durante a ocupação da Crimeia (2014), mas nunca em termos tão claros. E isso apesar dos numerosos ataques de vândalos às igrejas das comunidades pró-russas por parte da população. A frente eslava ortodoxa favorável à Rússia se desfaz.
O patriarca de Moscou Cirilo, seu número dois, Hilarion, e toda a cúpula eclesiástica estão firmes: nenhuma condenação e nenhuma dúvida sobre a operação bélica. Eles só têm o cuidado de exortar a salvaguardar os civis e implementar o resgate de idosos e doentes. Nenhuma palavra explícita como invasão, guerra e, sobretudo, Putin.
"Os povos russo e ucraniano compartilham uma longa história comum de séculos". A afirmação foi feita repetidamente por Putin nos últimos meses. A isso Cirilo acrescenta a esperança de "superar as divisões e contradições que surgiram e que levaram ao atual conflito ". Ironicamente, na véspera (23 de fevereiro), o patriarca comemorou o Dia do Exército e em seu discurso prestou homenagem aos "feitos de armas daqueles que serviram no exército, protegendo as fronteiras de nossa terra natal e cuidando para fortalecer sua capacidade de defesa e de segurança nacional”.
Exalta a coragem, bravura e determinação dos exércitos e do serviço militar russos, "uma demonstração efetiva de amor evangélico ao próximo e um exemplo de fidelidade aos elevados ideais morais de verdade e bondade". “Infelizmente, também agora surgem ameaças. Todo mundo sabe o que está acontecendo nas fronteiras de nossa pátria. Acredito que cada um de nossos militares não deve ter dúvidas de que escolheu o caminho certo" em servir no exército.
Uma convicção muito cultivada. Cirilo, na época da guerra chechena, fez aprovar pelo Sobor mundial do povo russo, por ele idealizado e presidido, a resolução sobre a natureza sagrada do serviço militar criando um departamento sinodal para as relações entre a Igreja e o exército. Similar, ainda que menos exposta, a posição da Igreja Ortodoxa sérvia, que sempre esteve próxima às indicações de Moscou.
Em uma declaração do patriarca de Belgrado Porfírio é dito: "Toda guerra é uma tragédia e é doloroso para nós que dois Estados irmãos e dois povos pertencentes à mesma fé entrem em confronto". Ele deseja que o mais rápido possível "cessem as armas e o diálogo comece".
Especificamente, o patriarca, após uma reunião com o presidente da Sérvia, não condena a invasão russa e aprova a decisão do presidente Alexsander Vučić de não compartilhar a imposição de sanções à Rússia decidida pela União Europeia da qual a Sérvia é membro.
Sem reflexo político, mas indicativas, as tensões entre as três jurisdições ortodoxas na França, onde a condenação mais explícita da Igreja de tradição russa (a que nasceu dos exilados da revolução de 1915) se choca com o apoio à orientação do patriarca de Moscou de parte da mais recente eparquia diretamente dependente de Cirilo. Ilia II, Patriarca da Geórgia escreve: “Com base na amarga experiência da Geórgia (parcialmente ocupada pelos russos em 2008), sabemos quão importante é a integridade territorial de um país. É por isso que observamos a situação tensa na Ucrânia com um aperto no coração”. E em um de seus tuites ele acrescenta: "As hostilidades na Ucrânia devem terminar o mais rápido possível, caso contrário, elas se transformarão em uma tragédia mundial".
A decisão irada e teimosa de Putin de invadir a Ucrânia levou a escrever sobre seu messianismo e misticismo. A Santa Rússia como um espaço sagrado, como "novo Israel", povo escolhido, baluarte ético diante da corrupção ocidental seriam as premissas tácitas das ações do presidente russo.
É verdade que ao longo dos anos Putin assumiu as conotações de um certo misticismo russo, questionando-se sobre o sofrimento e a morte. É igualmente verdade que seu mentor espiritual é Mons. Tikhon e que ele participa das grandes funções da Ortodoxia. Mas sua adesão à fé ortodoxa não se desvincula de sua função predominante como plenipotenciário do país e de sua pregressa militância comunista e ateísta.
Em algumas franjas pró-monárquicas ele é visto como um cripto-monge de Athos, reencarnação do czar Nicolau II morto pelos bolcheviques em 1918. Nos mesmos círculos afirma-se que sua referência cultural seja Ilia Iline (1883-1954), filósofo antibolchevique e antiocidental, segundo o qual a Rússia renascerá quando reaparecer um altar para Deus e um trono para o czar. Mas não é por acaso que para Putin o desastre supremo do século passado para a Rússia tenha sido a deflagração do país em 1990 e não o fim dos Romanov em 1918, que não tenha levado em conta a crítica da Igreja Ortodoxa pró-russa na Ucrânia (primaz Onufrio ), que não se coíba de repropor a figura de Stalin como heroica mesmo nas imagens dentro das igrejas e organize novos monumentos ao ditador no Donbass e na Rússia.
A maioria dos observadores não percebe o peso da alma russa e da sua tradição religiosa e se contenta em ver em Putin os sinais de uma degradação mental, verbal, comunicativa, um estilo grotesco e uma desconexão com a realidade. Estaria assustado com a previsão de uma nova Nuremberg.
O Papa Francisco, depois de ter indicado um dia de oração pela paz na Ucrânia, propôs renová-lo por ocasião do início da Quaresma (2 de março).
Ele mostrou plena solidariedade com os católicos e o povo ucraniano, elogiou a decisão do arcebispo maior dos católicos de rito grego, Sviatoslasv Shevchuk, de retornar ao país para compartilhar o destino de sua população.
E, surpreendentemente, visitou a embaixada russa na Santa Sé para expressar claramente sua preocupação com a guerra. Se o Vaticano poderá desempenhar um papel de mediador só poderá ser visto no futuro.
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Ucrânia e “mística” russa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU