19 Janeiro 2021
Entrevista com Jesús Morán Cepedano, co-presidente do Movimento dos Focolares desde 2014, responsável segundo os Estatutos da Obra de Maria pelas questões morais e disciplinares.
A entrevista é de Lorenzo Prezzi e Marcello Neri, publicada por Settimana News, 18-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como co-presidente do movimento dos Focolares, o senhor se encontrou as vítimas de abusos em Nantes, na França, no dia 18 de setembro passado. Pode contar o que aconteceu e suas reações?
Fomos convocados por três das vítimas de Jean-Michel Merlin, um membro dos focolares francês que cometeu abusos, isso depois de vários contatos que tivemos nos últimos anos, para fazer um balanço da situação e concluir a história dentro do possível e da maneira justa para elas. Foi uma experiência muito forte, para todos nós do movimento que estávamos lá e para mim de uma forma particular, porque foi um contato com a dor viva, a dor pura de quem foi abusado.
Não foi a primeira vez que tive contato com vítimas de abusos, mas antes nunca tinha tido uma experiência tão intensa de lidar com a dor. Além disso, foi uma oportunidade muito difícil para nós em constatar a extensão de nossas faltas - especialmente no que diz respeito ao caso Merlin. Isso no que diz respeito ao acompanhamento das vítimas, ao assumir a responsabilidade pelas situações, à desorientação que tivemos como movimento - e também, neste sentido, à demora em tomar as medidas adequadas à situação e aos fatos.
Foi uma experiência que, na minha opinião, representou um divisor de águas: a partir dessa relação pessoal com as vítimas, a visão desse drama mudou muito. O trabalho que já havíamos empreendido para tomar as medidas adequadas diante dos casos de abuso no movimento após o encontro de Nantes se acentuou ainda mais.
A presidente, Maria Voce, fez uso da palavra e manifestou o desejo de esclarecer totalmente os fatos. Em que ocasiões?
Segundo os estatutos da Obra de Maria, o copresidente é quem deve tratar das questões morais e disciplinares para que as formas de vida no movimento estejam de acordo com a doutrina da Igreja. Essa é sua tarefa específica, mas sempre em unidade e pleno acordo com a presidente. Nesse sentido, Maria Voce sempre apoiou todo o meu trabalho já há anos. Houve, além disso, duas ocasiões particulares em que nos expressamos juntos.
Uma primeira vez em 26 de março de 2019, com carta escrita a todos os membros do movimento em que foram reconhecidas publicamente as nossas faltas, o fato de os abusos terem ocorrido também na Obra de Maria: afirmando o nosso empenho vinculante, especialmente com as vítimas, de reparar tudo o que precisava ser reparado.
Uma segunda vez, mais recentemente, nos expressamos novamente juntos em um encontro mundial durante o qual pedimos publicamente perdão a todas as pessoas que sofreram abusos no movimento dos Focolares - tanto no campo sexual, contra os menores, quanto abusos de autoridade ou de poder.
Qual foi o impacto sobre os membros dos Focolares e do movimento diante da revelação de casos de abuso?
A primeira reação de muitos foi quase de incredulidade e assombro: foi um impacto muito forte, pois para muitos era impensável que esses dolorosos acontecimentos pudessem ter ocorrido em um movimento tão fortemente marcado pelo amor mútuo, onde a relação tem um relevo espiritual central. Existem alguns pontos firmes do movimento que vão em uma direção tão contrária a qualquer forma de abuso, como ver Jesus no outro, a vida de unidade, que nos leva a considerar impensáveis abusos dentro de nossas realidades.
Entrar naquela que Catarina de Siena chamava de "casa do conhecimento de si” foi um processo doloroso para os membros do movimento: isto é, descobrir nossa inadequação, também no que diz respeito a colocar em prática a vida de unidade, do carisma. Mas é um processo fundamental para descobrir a própria inadequação e recomeçar com uma confiança não mais ingênua em relação a Deus e aos outros. Essa foi basicamente a experiência de muitos no movimento - eles nos escreveram, nos relataram e comunicaram.
As demissões dos líderes franceses do movimento e o caso clamoroso de Jean-Michel Merlin são um sintoma de alguma fragilidade nos processos de formação interna?
Obviamente sim, também o disse numa comunicação recente aos membros do movimento: essas situações de abuso evidenciaram algumas fragilidades nos itinerários formativos e por isso devemos cuidar da formação em todas as fases com maior atenção às pessoas.
De modo particular, devemos fazer um discernimento vocacional sério e verdadeiro - e aqui me refiro não só às pessoas consagradas, mas também à vocação de qualquer pessoa que queira assumir empenhos fortes no Movimento.
Outro ponto é o de cuidar e acompanhar as pessoas a quem são confiadas funções de responsabilidade, garantindo que tenham uma formação integral, que tenham capacidades relacionais adequadas, de escuta e acolhimento, de respeito pela pessoa.
Em relação a tudo isto, trata-se então de estabelecer formas de verificação do percurso formativo.
Minha impressão é que por anos depositamos total confiança na força da espiritualidade e do carisma, mas isso às vezes nos levou a negligenciar de alguma forma alguns aspectos humanos de que agora temos consciência e que precisam ser mais cuidados. Isso olhando tanto para o progresso das ciências humanas quanto para os avanços nesse campo que estão sendo feitos dentro da Igreja.
Quando as comportas dos testemunhos se abrem, elas se multiplicam. O senhor tem a percepção de que isso também pode acontecer no movimento, ou seja, que depois do caso Merlin outras denúncias de abusos podem aparecer?
Sim, já estamos verificando e nos preparando para isso, porque outras denúncias estão chegando e aqui precisamos fazer um verdadeiro discernimento com as verificações necessárias. Em alguns casos, trata-se mais de tensões e conflitos relacionais que não podem ser configurados como verdadeiros abusos; noutros casos, trata-se de verdadeiros abusos de que não tínhamos conhecimento, que devem ser tratados como tais com o devido rigor e atenção. É um processo de “purificação da memória” que queremos viver com humildade e esperança.
Que ferramentas vocês implementaram para responder a essas denúncias de abuso dentro do movimento?
Temos duas comissões que cuidam de situações como estas: uma Comissão para o bem-estar e proteção de menores e pessoas vulneráveis, que já funciona há alguns anos com regulamentos internos que foram recentemente revisados, e também uma Comissão independente das estruturas de governo do movimento de proteção à pessoa, isto é, para adultos que podem sofrer abusos de autoridade, poder e até mesmo de natureza sexual.
Este segundo instrumento é mais recente, com menos experiência que a primeira Comissão, e justamente nestes dias, passados cerca de quatro anos de atividade, está redigindo um novo estatuto alimentado pelas experiências feitas até hoje, que será tornado público assim que for completada sua redação final.
Esses dois instrumentos atuam centralmente; depois, no que se refere à proteção de menores, há também as comissões regionais. Pode ser que a gente siga nessa direção também para a tutela da pessoa, em conexão com os órgãos centrais. Todo esse trabalho está sendo realizado em diálogo com o Dicastério para os Leigos, pois sentimos a necessidade de melhorar sempre os procedimentos para que fique claro como podemos dirigir-nos a esses órgãos, como verificar os vários casos, quando houver realmente abusos.
Devemos também criar órgãos de vigilância em todos os níveis. A comissão de proteção dos menores já a tem. Nesses órgãos de fiscalização haverá pessoas de fora do movimento para garantir maior transparência.
Poderia dizer algo sobre o mandato para a empresa britânica GCPS no que diz respeito a uma investigação sobre a totalidade dos possíveis abusos dentro do movimento?
Trata-se de um compromisso assumido com as vítimas, com as quais nos encontramos em Nantes, quando pediram uma comissão independente em sentido total, isto é, não só independente do governo da Obra composta por membros que não exercem alguma função de governo, mas também pela Obra como tal, isto é, formada por pessoas que estão fora do movimento.
Depois de pesquisas que duraram alguns meses, identificamos esta empresa britânica que, por enquanto, só tratará do caso Merlin - porque é um caso grave e exemplar. Veremos como as coisas evoluem, acabamos de dar o mandato à empresa britânica e estamos começando a trabalhar com eles. O processo de investigação provavelmente demorará um ano: tanto sobre os fatos, porque ainda não sabemos o número real de casos; tanto no que se refere às decisões a tomar e as responsabilidades a assumir.
Qual é o papel das vítimas nessa análise interna?
O papel das vítimas é fundamental: por exemplo, elas participarão na investigação que confiamos à GCPS Consulting - especialmente na elaboração da agenda operacional. O contato com as vítimas é permanente, nos últimos meses comuniquei a elas todos os passos que demos como movimento. Assim, as vítimas participam de todo o processo e estamos sempre em contato em todos os casos e em todas as situações, na medida do possível.
A próxima Assembleia Geral do movimento, que será iniciada no final de janeiro, prevê algum tipo de informação sobre esses fatos?
Sim, a questão dos abusos está incluída no relatório de seis anos do presidente que abrirá a Assembleia, e também está prevista uma intervenção ad hoc do copresidente. Nesse sentido, o tema não só será apresentado, mas também aprofundado e discutido durante a Assembleia.
O senhor ressaltou a grande confiança no carisma fundador de Clara, confiança que, por exemplo, na recente transmissão televisiva sobre Chiara Lubich, também foi testemunhada para um público muito amplo. Esse patrimônio é renovado, posto à prova por esses acontecimentos e como pode ser reproposto?
A transmissão sobre Chiara, apesar de ser uma ficção com os limites e méritos do gênero, foi um grande dom para todos nós, principalmente para os membros mais jovens do movimento que não conheceram uma Chiara Lubich jovem. Penso que a ficção tenha conseguido evidenciar o verdadeiro fruto do carisma da unidade, ou seja, um povo nascido do Evangelho que vive para a fraternidade universal, com ênfase na comunhão e na abertura à humanidade com atenção à dores do mundo. Acredito que sejam temas de grande atualidade.
Estamos diante de uma ficção, portanto, que pode ser um grande estímulo para avançar na encarnação do carisma na Igreja e na sociedade.
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Focolares e abuso: um divisor de águas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU