11 Janeiro 2020
"Por mais importante que seja confessar as falhas e fazer justiça às vítimas, não se pode paralisar a missão mais ampla da Igreja ou impedir o catolicismo de mobilizar os seus recursos para o bem comum, especialmente quando se tem algo único a contribuir", escreve John L. Allen Jr., jornalista, em artigo publicado por Crux, 9-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Desde o início, duas coisas se mostraram verdadeiras em se tratando dos escândalos de abuso sexual clerical na Igreja Católica.
A primeira é que a Igreja falhou, e falhou miseravelmente, no dever de proteger os menores e os adultos vulneráveis confiados aos seus cuidados. Desenterrar estas falhas e fazer-lhes justiça é um desafio de longo prazo que longe está de acabar.
A segunda é que, apesar destas falhas, a Igreja Católica também carrega gerações de sabedoria sobre como criar com sucesso os filhos, sobre a parentalidade, educação e formação. No entanto, está sendo difícil levar estas coisas adiante em um contexto onde colocamos as palavras “menores” e “Igreja” dentro de uma mesma frase. Para a maioria das pessoas a terceira palavra que naturalmente vem à mente é “abuso”.
Na quinta-feira, 9 de janeiro, o Papa Francisco talvez desvelou uma estratégia para resolver este desequilíbrio, pondo a Igreja Católica de volta na ofensiva após décadas estando na defensiva.
A ideia veio em seu discurso anual ao corpo diplomático, o qual, em princípio, não é um ambiente onde podemos esperar reflexões papais sobre a crise de abusos. Este discurso é apontado como o mais importante do ano, voltando-se geralmente à política externa vaticana e, no atual contexto, a maioria dos analistas aguardavam algumas palavras do papa sobre as tensões entre EUA e Irã.
Certamente ele se manifestou nesse sentido, ao apelar a “todas as partes interessadas para que evitem um agravamento do conflito e mantenham ‘acesa a chama do diálogo e do autocontrole’, no pleno respeito da legalidade internacional”, citando o seu próprio discurso do Angelus proferido dias atrás.
Francisco tocou em outros tópicos também, incluindo aquele que chamou de uma “cultura do silêncio” em torno da guerra na Síria, o destino da Amazônia, a necessidade de uma “conversão ecológica” e outros.
Em meio a estes assuntos, no entanto, houve um longo tratamento dos escândalos de abuso sexual. “Trata-se de crimes que ofendem a Deus, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a vida de comunidades inteiras”, disse o papa.
Francisco referiu-se a um encontro extraordinário convocado por ele em fevereiro de 2019 com os presidentes dos episcopados de todo o mundo, que visou identificar as melhores práticas na luta contra o abuso clerical e promover uma cultura mundial uniforme de prevenção, detecção e acusação dos abusos. Entre outras coisas, foi este evento de fevereiro que levou Francisco a abolir, em dezembro, a exigência de sigilo pontifício em casos de abuso.
O que veio a seguir é a parte decisiva.
A gravidade das feridas causadas pelo abuso sexual infantil, disse o papa, torna ainda mais urgente que os adultos não “abdiquem da tarefa educativa que lhes cabe; antes pelo contrário, assumam tal compromisso com maior zelo para levar os jovens à maturidade espiritual, humana e social”. Por essa razão, Francisco planeja convocar um encontro mundial em 14 de maio chamado “Reconstruir o pacto educativo global”.
Não há novidade nesse anúncio, já que ele fora anunciado pelo próprio papa em 12 de setembro passado.
A novidade no discurso de quinta-feira foi a ligação explícita com os escândalos de abuso na Igreja. No passado, quando Francisco falou sobre o evento de maio, situou-o no contexto de sua encíclica Laudato Si’ (documento sobre a fraternidade humana que assinou em Abu Dhabi juntamente com o Grande Imã da Al-Azhar no Egito) e de outros marcos de seu papado e do ensino social católico.
A ideia por trás do evento é trazer representantes das grandes religiões mundiais, líderes de organizações internacionais, especialistas dos ambientes acadêmicos, políticos e culturais, que irão elaborar e então assinar um “Pacto Educacional Mundial” visando formar as jovens gerações na ideia de uma “casa fraterna comum”.
“Precisamos, pois, dum conceito de educação que englobe a ampla gama de experiências de vida e processos de aprendizagem e que permita aos jovens, individual e coletivamente, desenvolver a sua personalidade”, disse o papa quinta-feira.
“A educação não se esgota nos tempos de lição das escolas ou das universidades, mas é garantida principalmente respeitando e reforçando o direito primário da família a educar e o direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação dos filhos”, explicou.
Ao justapor tudo isso com os escândalos de abuso, Francisco talvez estava deixando uma mensagem indireta à Igreja de como ela pode recuperar sua imagem: por mais importante que seja confessar as falhas e fazer justiça às vítimas, não se pode paralisar a missão mais ampla da Igreja ou impedir o catolicismo de mobilizar os seus recursos para o bem comum, especialmente quando se tem algo único a contribuir.
Resta saber, é claro, como se dará o encontro de maio e se terá algum impacto duradouro na prática educativa em nível mundial. Em todo caso, isto tudo representa uma mudança preciosa para a que a Igreja Católica reconquiste parte de sua autoridade moral quando se trata de cuidar dos menores, catalisando um foco mundial renovado na educação.
Nesse meio tempo, o próprio fato de haver um encontro como este já sugere a possibilidade de que, talvez pela primeira vez em décadas, haverá frases compostas em 2020 destacando as palavras “Igreja” e “menores” sem acabar automaticamente evocando notas de amargura.
Nota da IHU On-Line:
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Papa sugere uma visão ampliada da “recuperação” dos escândalos de abuso sexual na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU