19 Fevereiro 2019
“O silêncio já não é aceitável, seja em forma de omertà [voto de silêncio] ou síndrome de negação. Devemos nos afastar de qualquer cumplicidade ou código de silêncio”. São as palavras-chave de uma semana chave no pontificado de Francisco. Quem as pronunciou foi o arcebispo maltês Charles Scicluna, ao apresentar o encontro sobre os abusos sexuais contra menores convocado pelo Papa de 21 a 24 de fevereiro. Um evento que reunirá 190 clérigos dos cinco continentes. Ao apresentar os detalhes, Scicluna foi categórico: “Não abandonaremos jamais a defesa dos inocentes. Eu não cederei nunca, sempre tentarei outra vez”.
A reportagem é de Andrés Beltramo Álvarez, publicado por Vatican Insider, 18-02-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
Diante da Sala de Imprensa do Vaticano lotada, com a atenção nas alturas, na manhã desta segunda-feira, 18 de fevereiro, compareceram diante da imprensa internacional os organizadores do “Encontro sobre a proteção dos menores na Igreja”: o cardeal arcebispo de Chicago, Blase Cupich; o moderador e presidente da Fundação Ratzinger, Federico Lombardi; o presidente do Centro para o Cuidado dos Menores da Universidade Gregoriana, Hans Zollner, e o próprio Scicluna.
Cupich e Scicluna marcaram o tom. Embora tenham sido introduzidos por Alessandro Gisotti, diretor da Sala de Imprensa vaticana. “É preciso o empenho de todos para olharmos na cara deste monstro”, explicou em uma peculiar declaração introdutória. Agradeceu às vítimas “por sua coragem” e ratificou a vontade da Santa Sé por conseguir que a Igreja católica se converta em uma “casa acolhedora” para todas as crianças. “Por nossos filhos”, concluiu.
“Nos reunimos porque queremos ser conscientes sobre a importância da proteção dos menores, de nossa responsabilidade como pastores”, explicou Scicluna. “Não podemos agir sozinhos, precisamos de ajuda”, acrescentou. E lembrou que o encontro girará em torno de três eixos: “responsabilidade, responsabilização [prestação de contas] e transparência”.
Reconheceu que a negação é “uma reação primitiva” que deve ficar no passado, e por isso se escolheu a transparência como um dos aspectos fundamentais do evento, porque existe a necessidade de “romper o código de silêncio”. “Devemos enfrentar os fatos, só isto nos trará a solução”, insistiu.
Por mais de 10 anos, o agora arcebispo de Malta foi o procurador do Vaticano para os delitos graves dos sacerdotes (delicta graviora). Nesse tempo, desenvolveu um particular sentido de realismo e se converteu em um dos homens mais respeitados, por sua seriedade na hora de enfrentar os mais escabrosos processos canônicos contra pederastas de diversas latitudes.
Depois de um inesperado exílio em tempos do Papa Bento XVI, pouco a pouco Francisco propiciou seu retorno à Cúria Romana. Com essa autoridade moral, sem dúvidas, nem estridências, Scicluna reconheceu neste dia que existe um sistema que permitiu o encobrimento dos abusos na Igreja e que, para desmontá-lo, se requer o compromisso da liderança mundial da própria Igreja. Por isso, continuou, juntar um grupo representativo dos líderes eclesiásticos em um mesmo salão e com o Papa “já é um passo muito importante”.
Nem Scicluna, nem Cupich foram exageradamente otimistas. Responderam com sobriedade e advertiram, várias vezes, que ir a fundo neste problema leva seu tempo. Não obstante, o cardeal arcebispo de Chicago considerou que depois do encontro desta semana iniciará uma “nova etapa” em matéria de transparência, um “ponto de ruptura”. “Não podemos dizer que acabarão os abusos no mundo e na Igreja, mas que este problema será nossa prioridade”, garantiu.
“É importante que se entenda que o Papa quer indicar a todos os bispos o fato de que devem assumir a própria responsabilidade. Também é preciso que se indiquem os passos concretos, porque é importante ter em conta o que se deve fazer. Os bispos agora devem entender quais são as responsabilidades e assumi-las, e esta é a ocasião para que as ideias fiquem claras”, apontou Cupich.
Além disso, revelou que o Papa Francisco tem acompanhado de perto os detalhes do encontro. “Quer que nos concentremos nas crianças, em dar voz aos que não têm voz. Se realizarmos bem este trabalho, será mais fácil solucionar outros problemas na Igreja”, continuou.
Tanto ele como Scicluna esclareceram que, na reunião, não haverá distrações do tema já estabelecido. Se tratará sobre a proteção das crianças e ponto. Os abusos a mulheres consagradas, a adultos vulneráveis, a sexualidade nos seminários e a homossexualidade no clero não concentrarão a atenção. Embora se tratem de assuntos de estrita atualidade, com escândalos na ordem do dia.
“Se compartilharão boas práticas e se ajudará os bispos a enfrentarem situações distintas. Não queremos subestimar as outras problemáticas, mas se fizermos bem nosso trabalho seguramente haverá um efeito benéfico em outras questões”, continuou o arcebispo maltês.
Para o pastor de Chicago, o objetivo principal é que todos os bispos assumam sua própria responsabilidade, não só os presidentes das conferências episcopais que estarão presentes em Roma. Por isso, destacou a importância de uma ampla cobertura midiática ao encontro, já que isso ajudará para que a mensagem chegue a toda a Igreja.
Os detalhes logísticos do encontro foram explicados por Federico Lombardi, que atuará como moderador. Cada dia começará com as orações da manhã e continuará com conferências ministradas por cardeais ou personalidades diversas, entre elas três mulheres. Cada tarde será dedicada a trabalhos por grupos linguísticos (quatro em inglês, três em espanhol, dois em italiano e em francês). Para a tarde de sábado está prevista uma cerimônia penitencial na Sala Régia do Palácio Apostólico Vaticano e no domingo uma missa no mesmo lugar, com um discurso conclusivo pronunciado por Francisco.
Um espaço estará reservado às vítimas, procedentes de diversos países. No início do primeiro dia de sessões será exibido um vídeo na sala e em outros momentos serão ouvidos testemunhos adicionais, de pessoas presentes. Mas não se conhecerão os nomes de quem tomará a palavra, “por respeito à sua vontade de não ser publicados”, esclareceu Lombardi.
Os organizadores deram grande importância ao “follow up”, ou seja, ao monitoramento e ao seguimento dos trabalhos destes dias. Porque, como explicou Scicluna, é pouco realista esperar que em poucos dias se obtenham resultados definitivos. Daí o chamado do Papa a não exagerar nas expectativas sobre o encontro.
E resumiu, categórico: “Quanto maior são as expectativas, maior é a frustração. Não se podem resolver todos os problemas em três dias, seria uma expectativa irracional. Ao contrário, esperamos a continuação depois do encontro, daí a expectativa se torna razoável”.
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Encontro sobre abusos no Vaticano: “o silêncio já não é aceitável” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU