19 Fevereiro 2019
O arcebispo de Malta, Charles Scicluna, talvez um dos membros mais respeitados da hierarquia da Igreja Católica no que se refere ao enfrentamento do abuso sexual clerical, acredita que é possível que haja outros casos como o de Theodore McCarrick, que foi removido do estado clerical no sábado, depois que o Vaticano o considerou culpado de múltiplos crimes de natureza sexual.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 18-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Se ainda não os encontramos, isso significa que não sabemos onde eles estão”, disse Scicluna ao Crux na quinta-feira. “Eu acho que os casos em que em vez de cuidado pastoral, nós, bispos, oferecemos um cálice envenenado devem ser divulgados e enfrentados imediatamente como uma questão de urgência.”
Nomeado pelo Papa Francisco para liderar uma investigação vaticana sobre uma crise massiva de abusos na Igreja Católica no Chile, o prelado maltês também disse que o trabalho está “sendo feito constantemente” na “caixa de Pandora” que a investigação abriu, mas reconheceu que ele não está encarregado pela limpeza.
Scicluna conversou com o Crux na quinta-feira, antes da cúpula convocada por Francisco para os dias 21 a 24 de fevereiro para tratar da questão da proteção das crianças e antes da condenação de McCarrick.
Sem entrar nos detalhes do caso, podemos dizer que existem outros McCarricks?
Se ainda não os encontramos, isso significa que não sabemos onde eles estão. Eu acho que os casos em que, em vez de cuidado pastoral, nós, bispos, oferecemos um cálice envenenado devem ser divulgados e enfrentados imediatamente, com urgência.
Tem havido muitos rumores na preparação da reunião sobre se precisamos de uma mudança no direito canônico para abordar a responsabilização do bispo. Você pode nos ajudar a solucionar esse debate?
Eu acho que o princípio da responsabilização faz parte da missão de um bispo. Quando ele recebe uma missão, ele faz parte de um colégio, respondendo perante Deus, aos outros bispos e certamente ao Santo Padre. Ele também é responsável perante as pessoas. Eu acho que há muita sabedoria das Escrituras sobre isso, de que esse é um ponto inegociável... Eu acho que o nosso desafio hoje é entender como precisamos ser cuidadores em comunhão, uns com os outros e com o nosso povo. As estruturas são importantes, mas o que precisamos de modo radical é a motivação certa. Devemos fugir de qualquer tentação de considerar o bispo como um monarca, e ir rumo a ser um cosservo, um servo com os outros.
Eu gosto da frase do Novo Testamento em que o apóstolo chama a si mesmo de amigo, um cooperador da alegria do seu povo. Somos amigos, estamos cooperando com vocês para que vocês possam encontrar alegria no Senhor. Essa também é uma expressão da beleza de ser um cuidador junto com o seu povo e para o seu povo. Alguém precisa liderar, mas isso é um serviço. Você serve junto com outras pessoas. Aprendendo a ser bispo desde 2012, primeiro como auxiliar e, nos últimos quatro anos, como arcebispo, eu me convenço a cada dia de que não posso fazer isso sozinho. Precisamos fazer isso juntos. O que estamos tentando fazer não é nossa missão, mas a missão confiada a nós por Jesus Cristo. Garantir a segurança das nossas crianças é essencial. O Senhor diz: “Deixem as crianças vir a mim, não as proíbam”. Proteger os menores do abuso é uma maneira de garantir que as suas palavras se tornem verdade em todas as gerações.
Outro aspecto que precisa ser desenvolvido é que precisamos nos distanciar de qualquer percepção de que um bispo que ofende será tratado ou com leniência ou desfrutará de algum tipo de impunidade. Isso é um contratestemunho que é totalmente contra o Evangelho. Se há um critério no Evangelho, é quando Jesus diz a Pedro que quanto mais foi dado, mais será pedido. O padrão deve ser maior. Eu noto que estou falando de mim mesmo! Em primeiro lugar, eu me declaro indigno, nas sagradas palavras da Eucaristia, porque é isso que a Igreja me ensina a rezar. Quando eu me refiro a mim mesmo na missa, depois de mencionar o papa, eu digo: “E eu, vosso indigno servo”. Além disso, precisamos perceber que os bispos dos EUA respondem a um padrão mais elevado e que somos responsáveis pela nossa conduta.
Quando o caso McCarrick veio à tona, muitas pessoas disseram: “Todo mundo sabia”, e outros perguntaram: “Como ele chegou tão longe, sem que ninguém visse nada, escutasse nada, fizesse nada?”. As pessoas que sabiam serão responsabilizadas?
Eu não tenho a resposta para essa pergunta. Eu admitiria que é uma questão legítima. Mas… uma pessoa pode manipular o sistema a um estado em que ele possa realmente sobreviver a um campo minado de rumores? Essa é uma questão fundamental, que, felizmente, não pertence à competência da Congregação para a Doutrina da Fé.
Houve relatos sobre o levantamento das penalidades contra alguns padres que haviam sido removidos do estado clerical, mas depois retornaram ou tiveram suas penalidades suavizadas. Existe alguma verdade nesses boatos?
Há casos em que, no nível da revisão, as penalidades são revisadas. Mas isso é feito caso a caso, e há uma motivação para isso. É por isso que há uma segunda instância, como em um tribunal de apelações. Isso é algo que pertence à civilização. Uma vez condenado e punido, você tem uma instância de recurso. Mas o que precisa ser dito é que nenhuma decisão colocaria os menores em risco. Qualquer que seja o resultado, a política fundamental ditada e profeticamente expressada por São João Paulo II em 23 de abril de 2002, quando ele se dirigiu aos cardeais estadunidenses dizendo que não há lugar no sacerdócio ou na vida religiosa para quem prejudique os jovens, é um princípio que se sustenta.
Você pode nos atualizar sobre o que está acontecendo no Chile?
Eu sei que abrimos uma caixa de Pandora. Há inúmeros casos que estão sendo revisados. O material que nos foi dado durante aquelas duas missões no Chile é enorme, e cada caso precisa ser estudado em seus próprios méritos e receber o devido processo. Eu acho que há sinais de esperança, incluindo esse “Serviço de escuta” aberto pelos bispos chilenos é um serviço importante, dirigido por pessoas que merecem confiança e que são competentes. Esse é um sinal muito importante de esperança para a Igreja no Chile. Eu acho que a conscientização traz responsabilidade, e confrontar a verdade tende a ser traumático, mas somente a verdade nos libertará. E essa é a minha melhor esperança e oração pelo Chile. Um país abençoado por santos, como Alberto Hurtado e Teresa de los Andes e Francisco Valdez... eu rezo com frequência para eles.
Muitos no Chile estão frustrados porque veem bispos que tiveram suas renúncias aceitas, mas não houve nenhuma sequência a isso. Alguma coisa está sendo feita e ainda não sabemos?
O trabalho está sendo feito constantemente sobre eles. Uma das coisas que tenho certeza que você sabe é que a Santa Sé nunca daria o motivo pelo qual o papa aceitou a renúncia.
Todos esperamos saber o que aconteceu com McCarrick. Por que não o mesmo para os bispos chilenos? Eles não são grandes o suficiente? Os chilenos não têm dinheiro suficiente para fazer barulho suficiente para que o Vaticano seja compelido a ser transparente?
Eu não tenho conhecimento de nenhum processo, mas isso porque eu não acompanho todos os casos. Eu não tenho informações para confirmar ou negar. Eu abri a tampa, mas outras pessoas terão que limpar a bagunça.
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Abusos: abriu-se uma caixa de Pandora. Outros McCarricks podem aparecer. Entrevista com Charles Scicluna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU